Quinta-feira, 11.06.09

Passado maleável

Revisionismos
 
Luis Fernando Verissimo
 
O passado não é um lugar seguro. Volta e meia aparecem revisionistas querendo mudar tudo, abalando antigas certezas e dizendo que o acontecido não aconteceu, ou não aconteceu bem assim. História, já se disse muito, é versão, mas gostamos de pensar que alguns fatos do passado são fatos mesmo e não interpretações convenientes. Os revisionistas não permitem. A função deles é não deixar o passado em paz. E sugerir que há sempre a possibilidade de uma versão nova para um fato velho.
 
As repetidas comparações do Obama com o Roosevelt provocaram uma reação nos Estados Unidos, segundo a qual não apenas o Baraca tem pouco a ver com o Roosevelt histórico como o próprio Roosevelt tem pouco a ver com o mito que se formou em torno do seu governo. Segundo a história - ou o mito, para os revisionistas - Roosevelt pegou um país arruinado pelos desmandos de um capitalismo fora de controle durante o governo Hoover, enfrentou os cachorros grandes das finanças e do conservadorismo e, com programas sociais acusados de bolchevistas, subsídios para a produção acusados de anti-americanos e uma mobilização popular acusada de populista e coisa pior - embora fosse um aristocrata - salvou os americanos. Os revisionistas dizem que muitas das medidas contra a crise dos anos 30 já tinham sido tomadas por Hoover, que até agora era o grande vilão da história, que Roosevelt aliou-se aos cachorros grandes, convencendo-os a aceitar seu pseudosocialismo com o argumento que, além de salvar os Estados Unidos, estava salvando o capitalismo, e que no fim sua política intervencionista não estava dando muito resultado. Um adendo inescapável à versão revisionista, nem sempre, compreensivelmente, citada, é que não foi a mobilização do New Deal de Roosevelt que tirou o país da crise, foi a mobilização para a Segunda Guerra Mundial.
 
O tempo é aliado do revisionismo. Com o tempo os fatos ficam maleáveis, como que mergulhados em solvente. Além de facilmente moldados, adquirem uma neutralidade que os absolve. Faz muita diferença, hoje, saber como o Simonal se comportou durante a ditadura? Se o revisionismo concluir que a única posteridade que ele merece é o de um bom cantor, está sendo justo. Enquanto isto, como a própria ditadura se comportou naqueles anos está posto a salvo de qualquer discussão, revisionista ou não.
 
 
 
© Luis Fernando Verissimo
publicado por ardotempo às 15:06 | Comentar | Adicionar
Domingo, 03.05.09

Coisas que não mudam

 

Minha lista
 
Luis Fernando Verissimo
 
Há dias assisti a um concerto de piano em que o pianista precisava ler a partitura. Portanto precisava de alguém ao seu lado para virar as páginas da partitura. "Mais uma!" pensei, entusiasmado, e já me explico.
 
Não fazia muito eu tinha começado uma lista de coisas que continuavam as mesmas através dos anos. Coisas que eram iguais, hoje, ao que eram no tempo dos nossos avós. Ou mais ou menos iguais. A técnica podia tê-las aperfeiçoado aqui e ali, mas, basicamente, continuavam as mesmas que antes, com o mesmo uso.
 
A primeira coisa na minha lista era papel higiênico. Pouco mudou o papel higiênico desde que alguém teve a idéia de vendê-lo enrolado num cilindro de papelão e - imagino que mais tarde - picotado, para fácil acesso e manuseio. A qualidade do papel melhorou desde que nossos avós comentavam a sua aspereza, que era igual para todos, sem sonhar que um dia haveria mais suavidade para quem pudesse pagar por ela. Hoje há uma grande escolha de texturas e cores - mas o velho rolo continua o mesmo, e colocado no mesmo lugar. Certa vez tivemos a idéia de fazer histórias em quadrinhos impressas em papel higiênico. A pessoa iria puxando o papel e acompanhando a historinha. Havia o risco do consumidor se interessar pela história e desenrolar mais papel do que o necessário, mas as pessoas sensatas deixariam para ver a continuação na próxima, no próximo... Enfim, depois. A idéia não foi adiante, apesar da perspectiva de ganharmos muito dinheiro, porque ninguém agüentou a idéia de ver seu desenho passando por isso. Ou, no caso, aquilo.
 
Outra coisa que pouco mudou é guarda-chuva. Claro, hoje existem guarda-chuvas bem melhor estruturados do que aqueles que, a qualquer ventania, se transformavam em urubus atropelados. Há guarda-chuvas dobráveis que ficam tão pequenos que cabem no bolso da camisa. Mas, em essência, o guarda-chuva continua sendo uma tendinha portátil para guardá-lo da chuva - quando você esperava que já tivessem desenvolvido, sei lá, alguma espécie de domo de laser invisível, controlado pelo movimento das sobrancelhas, que lhe protegesse da chuva sem o perigo de ser esquecido em táxis e restaurantes. Mas não há nenhum aperfeiçoamento previsível no futuro do guarda-chuva.
 
 
O problema com a minha lista era que ficara muito curta. Pensei em incluir o lápis, que também continua o mesmo desde que foi inventado - mas o que mais? Foi quando vi o moço virando as páginas da partitura para o pianista. Sua função era antiga como o piano e não mudara com o tempo. Ele poderia estar virando as páginas para o Lizst. Não aparecera nada, como uma partitura eletrônica sensível ao som cujas páginas virassem sozinhas de acordo com a música, no momento certo, para substituir o virador. Mais uma coisa para a minha lista!
 
Outra coisa que não muda, claro, é a compulsão de fazer listas.
 
Repúdio
 
É compreensível o repúdio da comunidade judaica à visita do presidente do Irã Ahmadinejad ao Brasil. Ahmadinejad prega a aniquilação de Israel. Com o histórico empenho da nossa diplomacia em ajudar a apagar o fogo no Oriente Médio não se entende que seja recebido com honras oficias o mais notório incendiário da região
 
© Luis Fernando Verissimo

 

 

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Sexta-feira, 01.05.09

Descendo a escada

“Ah é, é?”
 
Luis Fernando Verissimo
 
Você eu não sei, mas quando há um bate-boca como aquele entre os ministros Mendes e Barbosa eu sempre lamento a falta de um texto melhor. Claro, no calor da briga ninguém pode escolher as palavras ou cuidar do valor literário dos seus insultos, mas é impossível deixar de imaginar o que um bom roteirista teria feito com a cena, escrevendo para os dois lados.
 
 
Certa vez criei um personagem para um antigo programa do Jo, na Globo. Era o cara que só pensava numa boa resposta quando não adiantava mais. Ele estava caminhando na rua, dentro de um ônibus ou numa reunião com amigos e de repente soltava uma frase, como “Só se a sua mãe for junto!” Depois explicava que dias antes alguém lhe dissera para ir tomar banho (no tempo em que mandar alguém se lavar era insulto pesado) e só agora lhe ocorria uma boa resposta. Na hora, ficara só dizendo “Ah é, é? Ah é, é?” enquanto pensava numa frase devastadora que nunca vinha.
 
Há profissionais da resposta pronta, repentistas que retrucam não só no ato como rimado, mas a maioria só pensa no que poderia ter dito muito depois. Humoristas, e supostos humoristas, padecem mais do que os outros com a expectativa de que terão a boa resposta na ponta da língua. Como têm que zelar por uma reputação de tiradas espontâneas, são os que mais precisam pensar na frase, revisá-la e burilá-la para apresentá-la, de preferência uma ou duas semanas depois.
 
O sentimento de insuficiência na retaliação verbal é tão comum que deveria existir uma expressão, talvez uma daquelas intermináveis palavras compostas com que os alemães transmitem o máximo de sensações possíveis sem o uso de vírgula, hifen ou violino ao fundo, que a descrevesse. E a expressão existe. Mas não é alemã. Diderot, o mais enciclopédico dos enciclopedistas franceses, pois aparentemente dava palpite sobre tudo, chamava a frase que só vem depois de “esprit d´escalier”. Perfeito: o espírito que só nos socorre quando já estamos descendo a escada.
 
Nos bate-bocas brasileiros predomina o “esprit d´escalier”. O que vem na hora raramente passa do “Ah é, é? Ah é, é?” ou equivalente.
 
 
© Luis Fernando Verissimo
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Domingo, 26.04.09

O poder muda (mas não muda)?

Gordos e magros
 
Luis Fernando Verissimo
 
O filme Spartacus, sobre a revolta de escravos que ameaçou o império romano, foi dirigido por Stanley Kubrick, mas o projeto não era dele. Kubrick foi chamado quando as filmagens já tinham começado, sob direção do Anthony Mann, que desistiu. Assim, embora não o envergonhasse, Spartacus não era um filme kubrickiano. Cabem a Howard Fast, autor do livro em que se baseou o roteiro, e a "Sam Jackson", autor do roteiro, as palmas pelo maior mérito de Spartacus, que é o de ser um dos melhores filmes políticos de todos os tempos. "Sam Jackson" era o pseudônimo de Dalton Trumbo, uma das vítimas do macartismo que não podia trabalhar sob o seu próprio nome. Além de ser uma epopéia libertária, o Spartacus de Fast e Trumbo é também uma sutil reflexão sobre o poder na Roma antiga, e o poder desde então.
 
As duas forças em confronto no coração do império são representadas no filme pelo aristocrata Crassius, ou Lawrence Olivier, e o populista Gracchus, Charles Laughton, que só têm em comum o fato de serem membros do mesmo patriciado. É a gente como Gracchus e Crassius que o Julio César do Shakespeare se refere quando diz que prefere estar rodeado por homens gordos que dormem bem a magros que pensam demais. O Crassius de Lawrence Olivier é a personificação da auto-proclamada virtude cívica da sua casta, destinada desde o berço a impedir que sua Roma idealizada seja conspurcada pela ralé. Para Crassius, a maior ameaça da revolta dos escravos é o seu exemplo. Se a idéia de insubordinação for contagiosa, nada salva o poder da sua classe. Crassius também é a personificação dos magros dissimulados temidos pelo Julio César de Shakespeare. Já na barriga e na cara do Charles Laughton está toda a decadência de Roma, mas sua corrupção o humaniza e sua oposição a tudo que Crassius representa o enobrece. No fim, é a ajuda do devasso Gracchus que salva a mulher e o filho de Spartacus da morte. Gracchus se suicida, Crassius vence o confronto e sua classe mantém o poder. E Spartacus é crucificado, mas o exemplo não morre com ele.
 
 
Através da história os magros e os gordos têm se enfrentado com diferentes disfarces, Gracchus e Crassius com outras caras. Os "magros" nem sempre são magros e os "gordos" nem sempre são gordos, mas as oposições se repetem. Autoritarismo contra transigência, moralismo contra deixa-pra-láismo e a questão antiga como Roma: a corrupção pode ser um mal menor, comparada com as más intenções que a virtude muitas vezes esconde?
 
© Luis Fernando Verissimo
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Quinta-feira, 23.04.09

Pedalando a bicicleta

Ela e suas alternativas
 
Luis Fernando Verissimo
 
Prometo não citar de novo aquela frase do Churchill segundo a qual a democracia é o pior regime político que existe com exceção de todos os outros, mas talvez seja bom, neste momento em que nosso Congresso tanto se empenha em desmoralizá-la, pensar um pouco nas alternativas à nossa democracia representativa. Já se falou que o Senado deveria ser extinto, lamenta-se o custo para a nação da farra do legislativo, não passa dia sem que apareça outro escândalo dos nossos eleitos, e caminhamos para um paradoxo: enquanto as ditaduras fecham parlamentos para livrarem-se da democracia, nós podemos acabar liquidando-a para proteger seu bom nome. Um pouco como pais antigos que preferiam ver a filha morta a vê-la desonrada.
 
Quais seriam as alternativas a uma democracia sem políticos venais? Conhecemos algumas. Um governo militar, forte, honesto - ou desonesto, não faria diferença, pois sua venalidade nunca seria exposta. Uma volta ao ideal ciceroniano de um governo de notáveis, com a probidade e a competência asseguradas pelo berço e isentos da aprovação da plebe? Bom, mas difícil de organizar, assim, em tão pouco tempo, ainda mais com as elites que temos. Na Roma do Cícero não tinha escuta telefônica, o que tornava mais fácil presumir a honorabilidade dos notáveis só por serem notáveis.Ou quem sabe a gente esquece tudo isto e parte para a solução mais à mão e potencialmente mais divertida: Lula imperador? Assim, em vez de nos preocuparmos com os desmandos de 400, nos preocuparíamos com um só.
 
Alguém já disse que exercer a democracia é como andar de bicicleta: se você pára, fatalmente cai, para a esquerda ou para a direita. A solução, tanto para ciclistas quanto para democratas convictos, é continuar pedalando. Que este é um dos piores congressos da nossa história ninguém discute. Que confiar na sua auto-regeneração é levar a fé na humanidade um pouco longe demais também é indiscutível. Mas não desesperemos - e pedalemos. O aperfeiçoamento de uma democracia requer prática e tempo, e a função deste Congresso pode muito bem ser a de educar a nação: pior do que este não pode ser, mandem um melhorzinho da próxima vez. E da próxima, e da próxima.
 
Não ajuda muito generalizar e demonizar toda uma classe política, esquecendo dos Simons e similares que honram seus mandatos, nem o tom extremo de certo denuncismo. O mais importante é preservar a democracia do seu mau uso.
 
A não ser, claro, que você prefira uma das alternativas.
 
 
© Luis Fernando Verissimo
Fotografia de Leopoldo Plentz
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Domingo, 19.04.09

A oportunidade (aos amigos) e a crise (para os...)

Crise e consequência
 
Luis Fernando Verissimo
 
"Crise" e "oportunidade" são representadas pelos mesmos ideogramas chineses, como se ouve muito em palestras inspiradoras para empresários. Segundo a velha sabedoria chinesa o azar de uns pode ser a sorte de outros, o que para uns é desastre para outros é benção.
 
Quando querem dar uma idéia da crise econômica na Alemanha durante a república de Weimar sempre recorrem à mesma imagem: a hiperinflação era tamanha que para se comprar um pão na padaria era preciso levar marcos num carrinho de mão. O valor de tudo era medido em carrinhos de mão cheios de marcos, e eram necessários cada vez mais carrinhos de mão para carregar os marcos cada vez mais desvalorizados. Pode-se imaginar os carrinhos de mão engarrafando o transito nas ruas de Berlim. E todos se queixando da situação, dizendo que aquilo não podia continuar, que era preciso um governo forte para acabar com aquilo, que assim não dava mais, etc.
 
Todos, menos o Kurt. O Kurt estava feliz. Enquanto à sua volta os outros perdiam dinheiro e se lamentavam, o Kurt prosperava e exultava. Sua pequena indústria crescera, e não parava de crescer. Em vez de desempregar, Kurt empregava. E enriquecia em meio à crise. Como aquilo era possível? 
 
Kurt, claro, tinha a única fábrica de carrinhos de mão da Alemanha.
 
Li que em Nova York tem uma empresa prosperando como a do Kurt na parábola acima. Ela faz sacolas elegantes mas simples, de aspecto neutro e sem nenhuma inscrição, para substituir as sacolas que as lojas de grife davam para seus clientes levarem as compras. Assim os clientes podem andar na rua sem o risco de serem confundidos com banqueiros de Wall Street, ou suas mulheres, gastando suas gratificações imerecidas pagas pelo contribuinte, enquanto o contribuinte pena. Crise e oportunidade.
 
Na Idade Média era comum os padres mandarem os pecadores jogarem cinza sobre a cabeça, em sinal de contrição, depois de se confessarem. Desenvolveu-se um rico comércio de cinza na saída das igrejas. Em todos os últimos governos do Estados Unidos tinha gente da financeira Goldman Sachs cuidando da economia. Um ex-diretor da Goldman Sachs, Henry Paulson, era o secretário do Tesouro do Bush quando a crise estourou. Receitou ajuda do governo para todos os bancos combalidos, menos para o Lehman Brothers, grande rival do Goldman Sachs, que deixou quebrar. Agora o Goldman Sachs é o primeiro dos combalidos a declarar que saiu da crise. Há quem diga que a primeiro dever de qualquer secretário do Tesouro americano, incluindo o do Baraca, é proteger o Goldman Sachs. Mas é o mesmo tipo de gente maliciosa que desconfiava que a igreja lucrava com o comércio de cinza.
 
© Luis Fernando Verissimo
publicado por ardotempo às 18:23 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 26.03.09

Câmera Especular

Faíscas
 
Luis Fernando Verissimo
 
Num livro chamado “Maomé e Carlomagno", publicado em 1939, o historiador belga Henri Pirenne dizia que as primeiras conquistas do mundo árabe/islâmico, a partir do sétimo século, tinham acabado com a unidade da civilização mediterrânea dominada pela Roma Cristã e propiciado a ascensão dos nórdicos, dos germanos e da França carolíngia – ou seja, dos ex-bárbaros.
 
As cruzadas para a liberação da Terra Santa do domínio árabe não foram mais do que manobras na guerra pela hegemonia num pretendido estado imperial europeu entre papas, príncipes e reis, e tiveram mais efeito na história da Europa do que sobre os árabes. E a expulsão dos árabes da península ibérica foi por uma igreja mobilizada e mobilizadora que depois não parou mais: a reconquista da Espanha foi o preambulo da conquista da América.
 
Portanto a atual intervenção explosiva dos islâmicos na nossa história faz parte de uma constante, a dos árabes como catalizadores dos destinos do Ocidente. O “choque de civilizações” do Samuel Huntington não seria uma metáfora apropriada para atual relação entre o Islã e o que o Immanuel Wallerstein chama de “pan-Europa”, ou o Ocidente. Mais certo seria falar num continuado atrito de civilizações do qual vez por outra salta uma faísca detonadora. Deveríamos o nosso mundo e seus sobressaltos a estas faíscas.

Metafísica difusa
 
Quem primeiro usou a palavra "ideologia" no seu sentido moderno foi Napoleão Bonaparte. Referia-se aos críticos do seu despotismo e defensores da democracia e chamou a ideologia de "metafísica difusa" que procurava fundamentar o governo em causas abstratas em vez de adapta-las "a um conhecimento do coração humano e das lições da História". A ela, segundo Napoleão, se devia "todos os infortúnios da França".
 
Desde então os liberais acusam os ideólogos da esquerda de desconhecerem a realidade dos desejos humanos e defenderem causas abstratas. Mas hoje, com a Crise, a esquerda tem todo o ditreito de adotar o julgamento de Napoleão e chamar os liberais de metafísicos difusos, ao desprezarem os fatos que desmentem sua ideologia. Com o liberalismo neo-clássico sendo desmoralizado a cada nova má notícia da economia mundial, a persistência da sua ideologia só pode ser atribuída a uma impermeabilidade dogmática maior do que jamais foi atribuída à esquerda.
 
 
© Luis Fernando Verissimo

 

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Domingo, 08.03.09

Baleias unidas

Darwin e a baleia
 
Luis Fernando Verissimo
 
O companheiro Zuenir tocou neste assunto há dias. O assunto é vasto e volta a ser discutido, entre outras razões, porque este é o ano do bicentenário de nascimento do homem. E porque ele continua controvertido.
 
A teoria da evolução de Charles Darwin ainda não convenceu todo o mundo.
 
Nos Estados Unidos alguns estados proíbem que ela seja ensinada nas escolas ou exigem que o criacionismo, ou a versão bíblica da origem da nossa espécie, também seja ensinada, para o aluno escolher a mais plausível. Fala-se em fazer a mesma coisa por aqui. De acordo com pesquisas a maior parte da população americana - e no resto do mundo a proporção não deve ser diferente - prefere ser descendente de Adão e Eva do que de macacos. Eu não tenho problemas com a teoria de Darwin: acho que todos os humanos descendem, sim, de um remoto casal de primatas, menos os meus antepassados, que foram adotados.
 
É surpreendente como Darwin resistiu a todas as novidades da genealogia nos 150 anos desde a publicação do seu “A origem das espécies”, inclusive as últimas revelações sobre DNA e códigos genéticos. Um pouco como Einstein, Darwin intuiu muita coisa que não tinha como comprovar e - com o pouco que se sabia sobre os genes na ápoca - grande parte da sua teoria pode ser descrita mais como sacada do que como dedução. Uma sacada que o tempo não desmentiu.
 
Mas um texto que li não faz muito destaca um engano de Darwin corrigido pela moderna biologia molecular: seu palpite sobre a evolução da baleia. Darwin observara que os ursos se comportavam, na água, como as baleias, nadando com a boca aberta para se alimentar do que aparecesse, e concluiu que eram da mesma família.
 
 
Hoje se sabe que a baleia pertence ao mesmo grupo de mamíferos que inclui porcos e vacas, e que o que deu em patas dianteiras no hipopótamo se transformou em nadadeiras na baleia, que também conserva, embutidos, vestígios das patas traseiras dos seus parentes terrestres e anfíbios. Porque a baleia é um caso único de vertebrado que reverteu o trajeto da água para a terra feito pelos outros e não apenas preferiu ficar no mar como readquiriu muitas das características aquáticas abandonadas pela categoria. Um exemplo de conservadorismo sentimental, como o daquelas pessoas que renunciam à agitação urbana para voltar a viver no lugar em que nasceram, e conhecem bem. O que talvez explique aquele seu ar filosófico.
 
Foi um engano de Darwin. Nada que justifique transformar a baleia num símbolo das forças criacionistas, se é que alguém estava pensando nisto.
 
© Luis Fernando Verissimo
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Sexta-feira, 27.02.09

Olhando de longe

O risco
 
Luis Fernando Verissimo
 
Um dos meus dezessete leitores, o Leitor Mais Atento, deve ter desconfiado que eu não estava aqui nas últimas semanas. Pelo menos o temível LMA, que nota tudo, deve ter notado que meus perspicazes, pertinentes e sempre atuais comentários sobre os fatos do mundo foram substituídos por textos sobre nada, que deixei prontos para poder viajar. O risco deste recurso, claro, é acontecer alguma coisa como a morte de um papa na nossa ausência e o leitor estranhar a solene indiferença do colunista ao fato. Uma vez fui passar duas semanas fora do Brasil, começando com uma semana em Nova York, e deixei as colunas prontas.
 
Chegamos a NY num domingo e na terça-feira derrubaram as torres do World Trade Center. “O Globo” e o “Zero Hora” de Porto Alegre aproveitaram as matérias que passei a mandar de lá, mas outros jornais do país continuaram a publicar as que eu tinha deixado, sobre nada, e até poder me explicar fui visto como o jornalista mais alienado do mundo. O lado positivo desse estratagema perigoso é que ele tem sido responsável pela minha regeneração espiritual. Cada vez que viajo e deixo colunas adiantadas, começo a rezar com fervor pela boa saúde do papa.
 
CORRENTES
 
Uma das razões da minha última ausência foi a participação na Correntes d´Escritas, um encontro literário que acontece todos os anos em Póvoa de Varzim, a poucos quilômetros de Porto, Portugal, e que este ano reuniu mais de 100 escritores, editores, agentes e pessoas ligadas aos livros e às artes editoriais para comemorar seus dez anos de existência.
 
Póvoa de Varzim, além de ser a terra natal do Eça de Queiroz, já tem esta tradição de reunir gente de Portugal, da Espanha, da América Latina e da África para tratar de literatura e conviver à beira-mar plantados. Neste ano o time brasileiro incluía Moacyr Scliar, Luiz Antonio de Assis Brasil, Adriana Lisboa, Antonio Cícero, Amílcar Bettega, Lêdo Ivo, Daniel Galera, Eucanaã Ferraz, Ivan Junqueira, João Paulo Cuenca e eu. Dias lindos, pouco frio, e não envergonhamos a pátria.
 
PRESSÁGIOS
 
Não sei se é novidade mas o que mais me impressionou no desfile das Escolas de Marcha na Sapucaí este ano foi o ativismo nas alegorias. Os figurantes que antes ficavam nos seus lugares sobre os carros alegóricos com a única obrigação de rebolar agora entram e saem e descem e sobem e interagem o tempo todo com o cenário e com o pessoal do chão. Acabou a folga das estátuas vivas. Fora isso, nada nos desfiles prenunciava a crise que se aproxima.
 
Me perguntaram se o luxo das escolas não lembrava, na sua ostensiva indiferença a maus presságios, o último baile da Ilha Fiscal. A analogia é boa mas não é exata. O baile simbolizou o fim de um regime que não se reconhecia em crise, de um carnaval inconsciente. O que as Escolas de Marcha, porque aquilo não é samba, repetem todos os anos é que as crises vem e vão e os presságios sempre são ruins, mas não interessa. Interessa é brilhar.
 
© Luis Fernando Verissimo 
publicado por ardotempo às 01:07 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Quinta-feira, 26.02.09

Escritor. Cronista. Jornalista. Desenhista. Artista

Luis Fernando Verissimo

 

 

 

Fotografia: Ney Gastal 

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Domingo, 22.02.09

Muitos sapos

Versões
 
Luis Fernando Verissimo
 
Era uma vez uma donzela que caminhava pela beira de um rio quando ouviu um "psiu". Era um sapo, que lhe contou que na verdade era um príncipe amaldiçoado, transformado em sapo por uma bruxa malvada com poderes mágicos. Se a donzela o beijasse, o sapo voltaria a ser príncipe. A donzela acreditou no sapo, beijou-o, ele se transformou de novo em príncipe e os dois se casaram e viveram felizes para sempre.
 
Anos depois outra donzela teve a mesma experiência. Ouviu a mesma história, sobre a maldição da bruxa que transformava qualquer coisa em outra coisa e fizera o príncipe virar sapo. A donzela concordou em beijar o sapo para livrá-lo da maldição, com uma condição:
- Beijo de língua, não.
E viveram felizes para sempre.
 
Muitos anos mais tarde, depois da revolução industrial, uma donzela desempregada caminhava pela beira do rio e ouviu a mesma história de um sapo. Concordou em beijá-lo, mas o sapo se transformou num príncipe muito feio, talvez devido à poluição do rio. A donzela protestou e ouviu do príncipe:
- Ué, pra quem já beijou sapo!
Mas casaram-se e tiveram uma vida difícil para viver, porque o príncipe, inclusive, perdera tudo com o fim do feudalismo.
 
Já neste século, a mesma história. "Psiu", sapo, bruxa com poderes mágicos, beijo, tudo igual. Com apenas um instante de hesitação até que se esclarecesse um ponto:
- Precisa ser donzela?
Não precisava. Casaram-se e viveram etc.
 
Anos sessenta. A mesma história, com uma variação: a moça era feminista. Ouviu o que a bruxa com poderes mágicos que transformava qualquer coisa em outra coisa fizera com o príncipe, e concluiu:
- Alguma você andou aprontando!
E solidarizou-se com a bruxa e chutou o sapo.
 
Jovem empresária caminhando pela beira do rio artificial do seu condomínio fechado ouve o "psiu", depois a conversa do sapo, e - diante dos protestos do sapo - raciocina em voz alta:
- Um príncipe, hoje, não vale muita coisa. Mas imagina o que eu posso ganhar com um sapo falante, só em cachês!
E ela fez muito dinheiro e viveu feliz com o sapo numa gaiola para sempre.
 
Anteontem. Jovem ouviu a proposta do sapo, mas não decidiu em seguida. Procurou seu consultor financeiro, que lhe lembrou que nada é mais valioso no mercado, hoje, do que informação privilegiada como a que o sapo lhe passara.
E aconselhou:
- Esqueça o sapo e encontre essa bruxa!
Com seus poderes mágicos a bruxa poderia transformar moeda fraca em moeda forte, nominativas em preferenciais...
 
© Luis Fernando Verissimo

 

publicado por ardotempo às 17:29 | Comentar | Adicionar
Domingo, 08.02.09

1+1+1+1=5

O outro
 
Luis Fernando Verissimo
 
"Quem é o terceiro que caminha sempre a seu lado?
Quando eu conto, há apenas você e eu juntos.
Mas quando olho adiante a estrada branca
Há sempre um outro caminhando ao seu lado
Envolto num manto marrom, encapuzado.
Não sei se homem ou mulher.
Mas quem é esse do seu outro lado?"
T.S. Eliot escreveu esta parte do seu poema "The waste land" baseado no relato de uma das primeiras expedições à Antártica, quando os exploradores no fim das suas forças tinham a constante ilusão de que havia uma pessoa a mais no grupo do que as que podiam ser contadas.
 
Quatro na mesa. Todos decididamente mais pra lá do que pra cá. Tinham combinado que pediriam a última rodada de chopes, porque o dono já ameaçava virar as cadeiras sem esperar que eles as desocupassem. Um deles chama o garçom e pede.
- Mais cinco. Para terminar.
 
O garçom vai buscar os chopes e os quatro ficam em silêncio. Até que um deles pergunta:
- Por que cinco?
- Um pra cada um, ora.
- Mas nós somos quatro.
- Como, quatro?
- Quatro. Um, dois, três, quatro.
- Você esqueceu de contar você mesmo.
- Esqueci não. Olhe só. Eu, um. Você, dois. Três e quatro.
- Assim não dá. Cada um grita um número. Eu sou um.
- Dois.
- Três.
- Dezessete.
- Mas o que é isso? Que dezessete?
- Não era para escolher um número?
- Sua besta. De um a quatro, ou cinco, para saber quantos nós somos.
- Mas isso é fácil. É só contar. Um, dois, três, quatro.
- Você contou você mesmo?
- Contei. Ou não contei? Não me lembro mais.
 
O garçom traz os cinco chopes.
 
- Tenho uma idéia - diz um deles. - Cada um toma o seu chope. Se sobrar um, é porque nós somos quatro.
Todos bebem. Um dos chopes permanece intocado. Os quatro ficam em silêncio, olhando o copo cheio.
 
Finalmente alguém diz:
- Viu? Nós somos quatro.
- Ou tem um quinto, mas ele não quer beber conosco...
Mais silêncio.
 
- Por que será?
 
Estão todos ainda olhando para o copo cheio, quietos e desconsolados, quando o dono vem virar as cadeiras.
 
© Luis Fernando Verissimo
publicado por ardotempo às 20:01 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Domingo, 21.12.08

Na pegada, há um rastro de óleo

A Razão Cínica
 
Luis Fernando Verissimo
 
Sei não, mas o Bush se esquivou muito bem daquele sapato. O primeiro, que passou rente à sua cabeça, não o segundo, que não chegou perto. Todo presidente americano deve estar sempre pronto para se abaixar, rápido. O reflexo condicionado é transmitido junto com o cargo desde o sucessor do Lincoln. Bush certamente não esperava ser alvejado numa entrevista coletiva em Bagdá, cercado por tropas americanas. Ainda mais habituado como está com os correspondentes na Casa Branca, que raramente lhe atiram uma pergunta mais pesada. Mas o reflexo funcionou. Depois ele declarou que só podia dizer que o sapato não era do seu tamanho e pediu que não castigassem o atirador. Uma boa piada, um simpático apelo à tolerância.
 
É difícil escolher o que é mais grotesco no episódio. A sapatada - compreensível, mas fruto de uma extrapolação, digamos, desaconselhável do papel crítico da imprensa - ou a bonomia do Bush. Não sei quantos americanos e iraquianos já morreram depois da invasão do Iraque por ordem do Bush. Mas o Bush é um bom sujeito, faz piada sobre o seu susto, pede clemência para o agressor. Vez que outra vemos fotos de alguns dos milhares de soldados americanos que voltaram do Iraque em pedaços, sem membros, sem rosto, e só podemos imaginar os muitos milhares de iraquianos, incluindo crianças, mutilados pela guerra do Bush. Mas o Bush é simpático e democrático. Poderia dizer que foi pelo direito de os iraquianos irem à rua se manifestar a favor da sapatada, como está acontecendo, que a carnificina continua. Nem sei se até não pediu que devolvessem os sapatos do rapaz.
 
Li, não faz muito, um artigo sobre a chamada "razão cínica" - em contraste com as razões oficiais fictícias e as geopolíticas sinceras - da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, nada mais simples do que o acesso garantido ao seu petróleo. Uma obviedade negada tanto pelos que a apoiavam como uma ação altruísta contra a tirania quanto pelos que denunciavam interesses ainda mais obscuros do que o petróleo. E o artigo acabava sendo uma defesa do Bush. A "razão cínica" era a única razão lógica e plausível, mesmo que amoral, que lhe restava. As armas de destruição em massa prestes a serem usadas por Saddam Hussein não existiam. A ligação do regime iraquiano com a al-Qaeda não existia. Ninguém mais nega que a invasão foi preparada e lançada baseada em mentiras e informação deturpada. Nem o Bush, embora ele chame o engodo de "inteligência falha". E se o objetivo era apenas livrar o mundo de um tirano, por que começar, ou parar, com Saddam? Já a carnificina para assegurar o petróleo num mundo em que o acesso à energia ditará a História, pelo menos faz sentido.
 
Bush está perto de se aposentar no seu rancho do Texas. Não há nada parecido com um tribunal por crimes de guerra no seu futuro, ou no de Cheney, Rumsfeld e os outros. Todos, com maior ou menor grau de simpatia, sabem se esquivar.
 
 
 
© Luis Fernando Verissimo
publicado por ardotempo às 14:21 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 28.08.08

Quente e frio

O fim da teoria do leão

 

Os números finais das Olimpíadas costumam provocar o que pode ser chamado de sociologia de resultados. Surgem teses sobre as causas sociais e políticas de triunfos e fracassos e a quantidade de medalhas ganhas passa a ser um medidor de virtudes nacionais. Mas, como toda sociologia instantânea, esta tem dificuldade em lidar com o que não é óbvio. É óbvio que ganham mais medalhas os países mais bem alimentados e ricos, que podem investir mais em esportes e preparação de atletas.

 

Se uma Cuba ganha medalhas em desproporção ao seu poderio econômico e à sua dieta alimentar, a explicação também é óbvia. Países socialistas tradicionalmente usam o esporte como propaganda, seu investimento desproporcional é na competição ideológica. Mas outras exceções ao óbvio desafiam as teses. E muitas vezes levam a fantasias, como a teoria do leão.

 

 

Sociólogos de ocasião desenvolveram a tese de que o sucesso de atletas africanos em corridas de fundo devia-se ao fato de terem se criado num ambiente em que poder fugir do leão era condição para a sobrevivência. Uma condição que se sobrepunha a todas as outras. O leão predador, claro, quando não era um leão de verdade, era uma metáfora para todos os perigos da floresta que obrigavam as pessoas a terem pernas ligeiras, e agilidade para não morrer.

 

Havia vestígios da teoria do leão na velha idéia de que a ascendência africana explicava a habilidade dos brasileiros para o futebol, que ninguém no mundo igualava. Qualquer jogada do Pelé teria, entre os seus antecedentes remotos, um meneio para escapar do leão.

 

A teoria do leão, que é uma teoria sobre a inevitabilidade, pois diz que um certo tipo de ambiente só pode produzir um certo tipo de atleta, sofreu um duro golpe quando apareceu, numa Olimpíada de inverno, aquela equipe de trenó — da Jamaica! A importância do leão na vocação para o futebol é desmentida cada vez que se vê um Messi fazer em campo o que se esperava que o Ronaldinho fizesse. E se ainda fosse preciso um dado para mostrar como a teoria do leão é furada, basta lembrar que o país que tem a maior costa contínua e algumas das piores estradas do mundo produz mais campeões de automobilismo do que de natação.

 

Não fomos tão mal assim nas Olimpíadas. Nos casos em que poderíamos ter ido melhor, perdemos para o nosso emocionalismo. E ganhamos de todos nas categorias choro convulsivo e lamentação em equipe. No fim — esta é a minha teoria — os Jogos Olímpicos são entre os de sangue quente e os de sangue frio. Os de sangue frio ganham sempre, mas os de sangue quente são muito mais simpáticos.

 

Luis Fernando Verissimo

publicado por ardotempo às 17:52 | Comentar | Ler Comentários (3) | Adicionar
Quinta-feira, 21.08.08

Clarins

Lembrando Caymmi

 

Luis Fernando Verissimo

 

Lembrança remotíssima do Dorival Caymmi: ele na nossa casa. Naquela época, pré-televisão, pré-cadeias de rádio, os artistas viajavam e faziam programas nas rádios locais. Ele foi nos visitar depois de um programa numa rádio de Porto Alegre. Levou o violão e cantou. Lembro de alguém que o tinha ouvido no rádio comentar: ele tem a cara da voz. Aquela cara não podia ter outra voz, aquela voz não podia ter outra cara. Nunca ouvi voz parecida - até conhecer outro baiano, o João Ubaldo Ribeiro. A voz do João Ubaldo é plágio da voz do Caymmi. Agora o João Ubaldo tem um dever para com a nação: falar, falar mais do que fala, e até cantar de vez em quando, pra gente ter a ilusão de que ainda é o Caymmi.

Lembrança não tão remota (só 44 anos) do Dorival Caymmi: Lucia e eu num sítio em Araras emprestado ao jovem casal para sua lua de mel pelo escritor Vianna Moog. Na eletrola, durante toda a nossa estada, rodou um long-play do Caymmi. Faixa mais repetida: Dora. A rainha do frevo e do maracatu. Que contém uma daquelas frases musicais do compositor guardadas no arquivo especial das grandes frases musicais que cada um tem no peito. Para muitos o trecho definitivo do Caymmi é o “ah insensato coração, por que me fizeste sofrer”, da “Só louco”. Para outros é o “e assim adormece esse homem”, de “João valentão”. Pra mim a frase musical declaratória sem igual do Caymmi é “os clarins da banda militar, tocam para anunciar, que a dona Dora agora vai passar...

Nos nossos poucos dias no sitio de Araras os clarins não pararam de tocar e a dona Dora não parou de passar.

______________________________________________________________

Essa questão de julgar ou não os crimes dos anos ruins que agita os militares e divide o governo é, no fundo, uma briga pela nossa História. A quem pertence a História daqueles anos? Quem tem a exclusividade de interpretá-la e o poder de dizer o que aconteceu e o que não aconteceu, ou o que convém e não convém lembrar? Nem a velha sentença cínica de que a História é sempre a versão dos vencedores cabe. No fim quem venceu não foi o arbítrio, foi a democracia, mas a versão democrática da História daqueles anos ainda está para ser escrita. É boicotada por quem devolveu o país aos seus donos mas ainda pretende mandar na sua memória.

_______________________________________________________________

Da série “Poesia numa hora destas?!"

 

Abri a velha gaveta

com meus poemas guardados

- anos de amor rimado

e odes ao espírito alado

- e descobri, abismado

que tinha tudo azedado!

 

 

© Luis Fernando Verissimo 

publicado por ardotempo às 18:19 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 04.07.08

Contornando o assunto

Desconversa

 

Crônica - Luis Fernando Verissimo

 

 

Duas pessoas que não se conhecem, obrigadas a passar algum tempo juntas (motorista de táxi e passageiro, viajantes sentados lado a lado em avião, ônibus ou trem, dois numa fila), sobre o que conversam? Em 77% dos casos, sobre o tempo.

 

‹– Quente, né?

 

‹– Acho que vai chover.

 

‹– É, tá com cara...

 

O tempo é um assunto seguro. De todas as coisas que as duas pessoas têm presumivelmente em comum (falam a mesma língua, estão ali com um destino ou um objetivo igual ou parecidos, são contemporâneas e são seres humanos) o fato de experimentarem as mesmas condições climáticas é a mais indiscutível de todas.

 

‹– Ontem deu uma refrescadinha.

 

‹– É verdade. Pelo fim da tarde.

 

‹– Isso.

 

Nenhum desacordo é possível, quando se começa conferindo o sentimento de cada um a respeito da temperatura vigente, sua memória do tempo que fez e seu palpite sobre o tempo que fará. Falar sobre futebol é arriscado. As probabilidades de torcerem pelo mesmo time não são boas. E se torcerem por times diferentes, por mais que tentem minimizar essa diferença, ela estará sempre lá, como lava incandescente sob a conversa, ameaçando irromper por

uma brecha. Política, nem pensar. E não caberia comentarem apenas suas afinidades básicas como espécie. Respirar fundo e dizer:

 

‹– Coisa boa, oxigênio, né?

 

‹– Nem me fala. Felizmente, ele compõe boa parte da vida terrestre.

 

Se não fosse isso...

 

‹– Não quero nem pensar.

 

Ou:

 

‹– Não pude deixar de observar que a senhora é uma bípede mamífera de sangue quente, como eu.

 

‹– Que coincidência!

 

Melhor falar sobre o tempo. É o assunto mais à mão, e o único com cem por cento de garantia de interessar a todos e fazer parte de uma experiência universal.

 

Se chover, talvez refresque de novo.

 

‹– Geralmente é assim.

 

A partir daí, a conversa pode derivar para outros tópicos de interesse geral, como a atividade de cada um, ou de universalidade garantida, como comida e novela das oito.

 

Existe outro assunto comum a toda a espécie, talvez o assunto prioritário da espécie, que só não inaugura todas as conversas porque também é o seu principal terror. A morte. Falamos do tempo para não falarmos da nossa outra afinidade óbvia, além da experiência do mesmo clima: a mortalidade. Imagine como seria.

 

Você sabe que nós vamos morrer, não sabe?

 

Sei. Todos sabem. É inescapável.

 

‹– O jeito é viver como se não soubéssemos. Você concorda?

 

‹– Sim. Seria impossível levar uma vida normal se não conseguíssemos conviver com nossa mortalidade, e acomodá-la, como uma hérnia inoperável.

 

Temos é que negociar com a morte o tempo todo, como se negocia um armistício. Reconhecendo a sua vitória e o seu domínio, mas exigindo tratamento digno, como é o direito de todo prisioneiro.

 

Mas não se pode racionalizar com a morte. A morte está além de qualquer racionalização. Ela não tem nenhum acordo para oferecer, nenhuma saída, nenhum meio-termo. Não tem nem uma explicação para nos dar. A única maneira de tratar a morte é nos seus próprios termos: ignorá-la, e tentar viver como se ela não existisse. Ou matá-la. O que você pensa do suicídio?

 

Sei não. É o nosso corpo que nos mata. Matá-lo primeiro, francamente, me parece uma forma de colaboracionismo).‹ Mas negociar com a morte significa reduzir toda a nossa vida a um pedido de clemência, a uma lamúria interminável. Não é só a vida que fica inviável, é a conversa. Pois, tudo que não é com ou sobre a morte, é desconversa.

 

Por sinal, você acompanha a novela?

 

Mas há quem diga que toda conversa, no fundo, é sobre sexo, outro assunto universal da espécie. O tempo é apenas um disfarce. Ou um código.

 

Quente, né? (Topas?) 

 

 

Luis Fernando Verissimo 

publicado por ardotempo às 20:11 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Segunda-feira, 23.06.08

O apagador

Crônica - Luis Fernando Verissimo

 

No filme "La Chinoise", de Jean-Luc Godard, um personagem se vê diante de um quadro-negro em que estão escritos os nomes de todos os principais escritores, compositores, pensadores e artistas da História - e começa a apagá-los, nome por nome, até sobrar só um. Está fazendo uma espécie de purgação intelectual.

Experimente fazer o mesmo. Encha um quadro-negro com todos os nomes que lhe ocorrerem, em nenhum tipo de ordem. Uma seqüência pode ser, por exemplo, "Heródoto, Nietzsche, São Tomaz de Aquino e Charlie Parker", outra "Villa-Lobos, Steinberg, Marques De Sade, Platão e Frida Kalo". Quando não sobrar espaço no quadro negro nem para um nome curto ("Meu Deus, esqueci o Rilke!"), comece a apagar. Nome por nome.

O importante é não racionalizar. Não estabelecer critério ou hierarquia. Deixar a apagador fazer seu trabalho sem interferência da sua consciência ou da sua emoção. Apenas ir apagando. Você pode descobrir coisas surpreendentes a seu próprio respeito. Nomes que, até aquele momento, faziam parte da sua galeria de veneráveis se revelarão apagáveis, outros serão poupados até quase o fim.

E no fim, o nome que sobrar, o único nome que você não apagar, poderá ser a maior revelação de todas. Não será, necessariamente, o nome de quem você considera o mais importante, influente, valioso ou simpático da história das idéias ou das artes. Será apenas o nome que, por alguma razão, você não conseguiu apagar. Depois você só precisará se explicar para você mesmo.

No filme do Godard, o único nome que ficava no quadro-negro era o de Brecht. 

 

publicado por ardotempo às 22:34 | Comentar | Adicionar
Sábado, 12.04.08

carros+carros+carros

O último engarrafamento

A boa notícia é que nunca se viu tantos carros nas ruas.
A má notícia é que nunca se viu tantos carros nas ruas.

Carros sendo produzidos e comprados como nunca significam fábricas e fornecedores funcionando e empregando mais, mais gente com mais dinheiro ou crédito no mercado, uma classe média em expansão, uma economia em crescimento. Carros sendo produzidos e comprados como nunca significam engarrafamentos inéditos e acidentes de trânsito em níveis de massacre, sem falar no aumento da poluição do ar que respiramos e no agravamento generalizado das neuroses.

É bom que muitas pessoas que não tinham condições de comprar seu carro agora tenham, é ruim que em todas as grandes cidades brasileiras hoje exista uma grande nostalgia pelas chamadas horas do rush, ou os horários de pique no trânsito, de antigamente, pois agora toda hora é hora do rush.

O que há é que, na surrada analogia de uma Bélgica dentro de uma Índia para descrever o Brasil, a Bélgica cresceu e os belgas e neobelgas têm mais carros, mas continuam obrigados a circular nas ruas e estradas da Índia. Quanto mais cresce a Bélgica, mais aparecem as precariedades da Índia. A publicidade dos carros sendo lançados prefere ignorar esta realidade e anunciar máquinas flamantes feitas para zunir por ruas e estradas de um país que não apenas não é a Índia como não é nenhuma Bélgica reconhecível, mas uma terra fantástica onde o trânsito sempre flui
e os carros voam.

Uma ironia que se repete diariamente: o cara chega em casa depois de algumas horas preso num engarrafamento de qualquer grande cidade brasileira, liga a televisão e, entre notícias de terríveis acidentes com morte em estradas inadequadas por excesso de velocidade, só vê propagandas de carros vendendo a grande aventura da velocidade. E da potência sem impedimentos, muito menos de carros na frente
e dos lados.

Como fica cada vez mais improvável que conheceremos essa terra de sonho, resta esperar que a indústria automobilística se prepare para o engarrafamento final que vem aí, quando o trânsito se tornará, literalmente, impossível. Esqueçam velocidade e potência. Interiores com beliches, quitinete e mesas para carteado, para passar o tempo. Rojões de sinalização, para pedir o resgate por helicóptero. Sei lá.


© Luis Fernando Verissimo - Publicado no Blog do Noblat - 10.04.2008
publicado por ardotempo às 00:28 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 04.04.08

Quando o ser humano deseja fazer o papel de deus

Babaus

E agora essa. Li que duas pessoas recorreram à justiça para impedir que o Centro Europeu de Pesquisa Nuclear ponha em funcionamento o gigantesco acelerador de partículas que está construindo há 14 anos perto de Genebra, alegando que um dos resultados da colisão de prótons em escala inédita que acontecerá dentro do acelerador pode ser a criação de um buraco negro que engoliria a Terra - e talvez o Universo.

A inauguração do acelerador está marcada para este verão europeu. Por via das dúvidas, enquanto não se resolver a questão, não faça planos para depois de julho.

A colisão dos prótons dentro do super acelerador recriará energias e condições que ocorreram pela primeira (e última) vez na fração de segundo depois do Big Bang que deu origem a, literalmente, tudo. Pesquisadores estudarão os efeitos destes choques atrás de novas pistas sobre a natureza da massa e das forças que formam o Universo. Calcula-se que quase 90 por cento da matéria do Universo é chamada pelos cientistas de “matéria negra” para não precisarem chamá-la de “mistério”, ou de “seja lá o que for”.  Com o novo acelerador se estaria avançando alguns passos importantes nessa escuridão. Mas como as partículas sub-atômicas são notoriamente imprevisíveis, o resultado de mais este exemplo da bisbilhotice humana poderia ser uma grande surpresa, a surpresa final.

Em vez de um Big Bang, teríamos um Big Slurp, que nos chuparia - você, eu e todas as galáxias - para o nada, ou seja lá o que exista do outro lado do buraco.

Quase todos os cientistas ouvidos sobre a questão dizem que não há perigo. Os buracos negros, se aparecerem, serão pequenos (engolindo, presumivelmente, só a Suiça). O alarmismo atual é equiparado ao que acompanhou a construção da bomba atômica em Los Alamos, quando se especulava que uma única explosão nuclear poderia incendiar toda a atmosfera terrestre. E os alarmistas de hoje não parecem merecer muito crédito. Um é espanhol, o outro mora no Havaí, de onde partiu a ação judicial, e nenhum dos dois é físico praticante. Mas o que assusta é que alguns cientistas, inclusive um tal Mangano ligado ao CEPN, não acham a hipótese tão fantástica assim, e o próprio CEPN montou um grupo de avaliação de segurança para rever o projeto antes de ligar o acelerador.

Quer dizer, não quero estragar o dia de ninguém, mas nosso velho Universo pode estar dando suas últimas voltas.

Haverá tempo para uma última especulação, antes de sermos chupados. Talvez o significado de um dos fenômenos mais misteriosos do Universo, o de astros longínquos que desaparecem para dentro de si mesmos, seja que em algum lugar do cosmo os cientistas locais foram curiosos demais, e deram um passo que não era para dar.

© Luis Fernando Verissimo - Publicado no Blog do Noblat - 03.04.2008
publicado por ardotempo às 17:06 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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