O fim da teoria do leão
Os números finais das Olimpíadas costumam provocar o que pode ser chamado de sociologia de resultados. Surgem teses sobre as causas sociais e políticas de triunfos e fracassos e a quantidade de medalhas ganhas passa a ser um medidor de virtudes nacionais. Mas, como toda sociologia instantânea, esta tem dificuldade em lidar com o que não é óbvio. É óbvio que ganham mais medalhas os países mais bem alimentados e ricos, que podem investir mais em esportes e preparação de atletas.
Se uma Cuba ganha medalhas em desproporção ao seu poderio econômico e à sua dieta alimentar, a explicação também é óbvia. Países socialistas tradicionalmente usam o esporte como propaganda, seu investimento desproporcional é na competição ideológica. Mas outras exceções ao óbvio desafiam as teses. E muitas vezes levam a fantasias, como a teoria do leão.
Sociólogos de ocasião desenvolveram a tese de que o sucesso de atletas africanos em corridas de fundo devia-se ao fato de terem se criado num ambiente em que poder fugir do leão era condição para a sobrevivência. Uma condição que se sobrepunha a todas as outras. O leão predador, claro, quando não era um leão de verdade, era uma metáfora para todos os perigos da floresta que obrigavam as pessoas a terem pernas ligeiras, e agilidade para não morrer.
Havia vestígios da teoria do leão na velha idéia de que a ascendência africana explicava a habilidade dos brasileiros para o futebol, que ninguém no mundo igualava. Qualquer jogada do Pelé teria, entre os seus antecedentes remotos, um meneio para escapar do leão.
A teoria do leão, que é uma teoria sobre a inevitabilidade, pois diz que um certo tipo de ambiente só pode produzir um certo tipo de atleta, sofreu um duro golpe quando apareceu, numa Olimpíada de inverno, aquela equipe de trenó — da Jamaica! A importância do leão na vocação para o futebol é desmentida cada vez que se vê um Messi fazer em campo o que se esperava que o Ronaldinho fizesse. E se ainda fosse preciso um dado para mostrar como a teoria do leão é furada, basta lembrar que o país que tem a maior costa contínua e algumas das piores estradas do mundo produz mais campeões de automobilismo do que de natação.
Não fomos tão mal assim nas Olimpíadas. Nos casos em que poderíamos ter ido melhor, perdemos para o nosso emocionalismo. E ganhamos de todos nas categorias choro convulsivo e lamentação em equipe. No fim — esta é a minha teoria — os Jogos Olímpicos são entre os de sangue quente e os de sangue frio. Os de sangue frio ganham sempre, mas os de sangue quente são muito mais simpáticos.
Luis Fernando Verissimo
Lembrando Caymmi
Luis Fernando Verissimo
Lembrança remotíssima do Dorival Caymmi: ele na nossa casa. Naquela época, pré-televisão, pré-cadeias de rádio, os artistas viajavam e faziam programas nas rádios locais. Ele foi nos visitar depois de um programa numa rádio de Porto Alegre. Levou o violão e cantou. Lembro de alguém que o tinha ouvido no rádio comentar: ele tem a cara da voz. Aquela cara não podia ter outra voz, aquela voz não podia ter outra cara. Nunca ouvi voz parecida - até conhecer outro baiano, o João Ubaldo Ribeiro. A voz do João Ubaldo é plágio da voz do Caymmi. Agora o João Ubaldo tem um dever para com a nação: falar, falar mais do que fala, e até cantar de vez em quando, pra gente ter a ilusão de que ainda é o Caymmi.
Lembrança não tão remota (só 44 anos) do Dorival Caymmi: Lucia e eu num sítio em Araras emprestado ao jovem casal para sua lua de mel pelo escritor Vianna Moog. Na eletrola, durante toda a nossa estada, rodou um long-play do Caymmi. Faixa mais repetida: Dora. A rainha do frevo e do maracatu. Que contém uma daquelas frases musicais do compositor guardadas no arquivo especial das grandes frases musicais que cada um tem no peito. Para muitos o trecho definitivo do Caymmi é o “ah insensato coração, por que me fizeste sofrer”, da “Só louco”. Para outros é o “e assim adormece esse homem”, de “João valentão”. Pra mim a frase musical declaratória sem igual do Caymmi é “os clarins da banda militar, tocam para anunciar, que a dona Dora agora vai passar...”
Nos nossos poucos dias no sitio de Araras os clarins não pararam de tocar e a dona Dora não parou de passar.
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Essa questão de julgar ou não os crimes dos anos ruins que agita os militares e divide o governo é, no fundo, uma briga pela nossa História. A quem pertence a História daqueles anos? Quem tem a exclusividade de interpretá-la e o poder de dizer o que aconteceu e o que não aconteceu, ou o que convém e não convém lembrar? Nem a velha sentença cínica de que a História é sempre a versão dos vencedores cabe. No fim quem venceu não foi o arbítrio, foi a democracia, mas a versão democrática da História daqueles anos ainda está para ser escrita. É boicotada por quem devolveu o país aos seus donos mas ainda pretende mandar na sua memória.
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Da série “Poesia numa hora destas?!"
Abri a velha gaveta
com meus poemas guardados
- anos de amor rimado
e odes ao espírito alado
- e descobri, abismado
que tinha tudo azedado!
© Luis Fernando Verissimo
Desconversa
Crônica - Luis Fernando Verissimo
Duas pessoas que não se conhecem, obrigadas a passar algum tempo juntas (motorista de táxi e passageiro, viajantes sentados lado a lado em avião, ônibus ou trem, dois numa fila), sobre o que conversam? Em 77% dos casos, sobre o tempo.
– Quente, né?
– Acho que vai chover.
– É, tá com cara...
O tempo é um assunto seguro. De todas as coisas que as duas pessoas têm presumivelmente em comum (falam a mesma língua, estão ali com um destino ou um objetivo igual ou parecidos, são contemporâneas e são seres humanos) o fato de experimentarem as mesmas condições climáticas é a mais indiscutível de todas.
– Ontem deu uma refrescadinha.
– É verdade. Pelo fim da tarde.
– Isso.
Nenhum desacordo é possível, quando se começa conferindo o sentimento de cada um a respeito da temperatura vigente, sua memória do tempo que fez e seu palpite sobre o tempo que fará. Falar sobre futebol é arriscado. As probabilidades de torcerem pelo mesmo time não são boas. E se torcerem por times diferentes, por mais que tentem minimizar essa diferença, ela estará sempre lá, como lava incandescente sob a conversa, ameaçando irromper por
uma brecha. Política, nem pensar. E não caberia comentarem apenas suas afinidades básicas como espécie. Respirar fundo e dizer:
– Coisa boa, oxigênio, né?
– Nem me fala. Felizmente, ele compõe boa parte da vida terrestre.
– Se não fosse isso...
– Não quero nem pensar.
Ou:
– Não pude deixar de observar que a senhora é uma bípede mamífera de sangue quente, como eu.
– Que coincidência!
Melhor falar sobre o tempo. É o assunto mais à mão, e o único com cem por cento de garantia de interessar a todos e fazer parte de uma experiência universal.
– Se chover, talvez refresque de novo.
– Geralmente é assim.
A partir daí, a conversa pode derivar para outros tópicos de interesse geral, como a atividade de cada um, ou de universalidade garantida, como comida e novela das oito.
Existe outro assunto comum a toda a espécie, talvez o assunto prioritário da espécie, que só não inaugura todas as conversas porque também é o seu principal terror. A morte. Falamos do tempo para não falarmos da nossa outra afinidade óbvia, além da experiência do mesmo clima: a mortalidade. Imagine como seria.
– Você sabe que nós vamos morrer, não sabe?
– Sei. Todos sabem. É inescapável.
– O jeito é viver como se não soubéssemos. Você concorda?
– Sim. Seria impossível levar uma vida normal se não conseguíssemos conviver com nossa mortalidade, e acomodá-la, como uma hérnia inoperável.
– Temos é que negociar com a morte o tempo todo, como se negocia um armistício. Reconhecendo a sua vitória e o seu domínio, mas exigindo tratamento digno, como é o direito de todo prisioneiro.
– Mas não se pode racionalizar com a morte. A morte está além de qualquer racionalização. Ela não tem nenhum acordo para oferecer, nenhuma saída, nenhum meio-termo. Não tem nem uma explicação para nos dar. A única maneira de tratar a morte é nos seus próprios termos: ignorá-la, e tentar viver como se ela não existisse. Ou matá-la. O que você pensa do suicídio?
– Sei não. É o nosso corpo que nos mata. Matá-lo primeiro, francamente, me parece uma forma de colaboracionismo). Mas negociar com a morte significa reduzir toda a nossa vida a um pedido de clemência, a uma lamúria interminável. Não é só a vida que fica inviável, é a conversa. Pois, tudo que não é com ou sobre a morte, é desconversa.
– Por sinal, você acompanha a novela?
Mas há quem diga que toda conversa, no fundo, é sobre sexo, outro assunto universal da espécie. O tempo é apenas um disfarce. Ou um código.
– Quente, né? (Topas?)
Luis Fernando Verissimo
Crônica - Luis Fernando Verissimo
No filme "La Chinoise", de Jean-Luc Godard, um personagem se vê diante de um quadro-negro em que estão escritos os nomes de todos os principais escritores, compositores, pensadores e artistas da História - e começa a apagá-los, nome por nome, até sobrar só um. Está fazendo uma espécie de purgação intelectual. Experimente fazer o mesmo. Encha um quadro-negro com todos os nomes que lhe ocorrerem, em nenhum tipo de ordem. Uma seqüência pode ser, por exemplo, "Heródoto, Nietzsche, São Tomaz de Aquino e Charlie Parker", outra "Villa-Lobos, Steinberg, Marques De Sade, Platão e Frida Kalo". Quando não sobrar espaço no quadro negro nem para um nome curto ("Meu Deus, esqueci o Rilke!"), comece a apagar. Nome por nome. O importante é não racionalizar. Não estabelecer critério ou hierarquia. Deixar a apagador fazer seu trabalho sem interferência da sua consciência ou da sua emoção. Apenas ir apagando. Você pode descobrir coisas surpreendentes a seu próprio respeito. Nomes que, até aquele momento, faziam parte da sua galeria de veneráveis se revelarão apagáveis, outros serão poupados até quase o fim. E no fim, o nome que sobrar, o único nome que você não apagar, poderá ser a maior revelação de todas. Não será, necessariamente, o nome de quem você considera o mais importante, influente, valioso ou simpático da história das idéias ou das artes. Será apenas o nome que, por alguma razão, você não conseguiu apagar. Depois você só precisará se explicar para você mesmo.
No filme do Godard, o único nome que ficava no quadro-negro era o de Brecht.