Segunda-feira, 24.01.11

Teresópolis, Nova Friburgo, Florianópolis, Palhoça


José Saramago escreveu sobre o passado, sobre o presente, sobre o futuro...


Quantos Haitis?


José Saramago


No Dia de Todos os Santos de 1755 Lisboa foi Haiti. A terra tremeu quando faltavam poucos minutos para as dez da manhã. As igrejas estavam repletas de fiéis, os sermões e as missas no auge… Depois do primeiro abalo, cuja magnitude os geólogos calculam hoje ter atingido o grau 9 na escala de Richter, as réplicas, também elas de grande potência destrutiva, prolongaram-se pela eternidade de duas horas e meia, deixando 85% das construções da cidade reduzidas a escombros. Segundo testemunhos da época, a altura da vaga do tsunami resultante do sismo foi de vinte metros, causando 600 vítimas mortais entre a multidão que havia sido atraída pelo insólito espectáculo do fundo do rio juncado de destroços dos navios ali afundados ao longo do tempo.

 

Os incêndios durariam cinco dias. Os grandes edifícios, palácios, conventos, recheados de riquezas artísticas, bibliotecas, galerias de pinturas, o teatro da ópera recentemente inaugurado, que, melhor ou pior, haviam aguentado os primeiros embates do terramoto, foram devorados pelo fogo. Dos 275 mil habitantes que Lisboa tinha então, crê-se que morreram 90 mil.


Conta-se que à pergunta inevitável “E agora, que fazer?”, o secretário de Estrangeiros Sebastião José de Carvalho e Melo, que mais tarde viria a ser nomeado primeiro-ministro, teria respondido “Enterrar os mortos e cuidar dos vivos”. Estas palavras, que logo entraram na História, foram efectivamente pronunciadas, mas não por ele. Disse-as um oficial superior do exército, desta maneira espoliado do seu haver, como tantas vezes acontece, em favor de alguém mais poderoso.


A enterrar os seus cento e vinte mil ou mais mortos anda agora o Haiti, enquanto a comunidade internacional se esforça por acudir aos vivos, no meio do caos e da desorganização múltipla de um país que mesmo antes do sismo, desde gerações, já se encontrava em estado de catástrofe lenta, de calamidade permanente. Lisboa foi reconstruída, o Haiti também o será. A questão, no que toca ao Haiti, reside em como se há-de reconstruir eficazmente a comunidade do seu povo, reduzido não só à mais extrema das pobrezas como historicamente alheio a um sentimento de consciência nacional que lhe permitisse alcançar por si mesmo, com tempo e com trabalho, um grau razoável de homogeneidade social. De todo o mundo, de distintas proveniências, milhões e milhões de euros e de dólares estão sendo encaminhados para o Haiti. Os abastecimentos começaram a chegar a uma ilha onde tudo faltava, fosse porque se perdeu no terramoto, fosse porque nunca lá existiu. Como por acção de uma divindade particular, os bairros ricos, em comparação com o resto da cidade de Porto Príncipe, foram pouco afectados pelo sismo.


Diz-se, e à vista do que aconteceu no Haiti parece certo, que os desígnios de Deus são inescrutáveis. Em Lisboa as orações dos fiéis não puderam impedir que o tecto e e os muros das igrejas lhes caíssem em cima e os esmagassem. No Haiti, nem mesmo a simples gratidão por haverem salvo vidas e bens sem nada terem feito para isso, moveu os corações dos ricos a acudir à desgraça de milhões de homens e mulheres que não podem sequer presumir do nome unificador de compatriotas porque pertencem ao mais ínfimo da escala social, aos não-ser, aos vivos que sempre estiveram mortos porque a vida plena lhes foi negada, escravos que foram de senhores, escravos que são da necessidade. Não há notícia de que um único haitiano rico tenha aberto os cordões ou aliviado as suas contas bancárias para socorrer os sinistrados. O coração do rico é a chave do seu cofre-forte.


Haverá outros terramotos, outras inundações, outras catástrofes dessas a que chamamos naturais. Temos aí o aquecimento global com as suas secas e as suas inundações, as emissões de CO2 que só forçados pela opinião pública os governos se resignarão a reduzir, e talvez tenhamos já no horizonte algo em que parece ninguém querer pensar, a possibilidade de uma coincidência dos fenómenos causados pelo aquecimento com a aproximação de uma nova era glacial que cobriria de gelo metade da Europa e agora estaria dando os primeiros e ainda benignos sinais.

 

 

 

 

Não será para amanhã, podemos viver e morrer tranquilos. Mas, di-lo quem sabe, as sete eras glaciais por que o planeta passou até hoje não foram as únicas, outras haverá. Entretanto, olhemos para este Haiti e para os outros mil Haitis que existem no mundo, não só para aqueles que praticamente estão sentados em cima de instáveis falhas tectónicas para as quais não se vê solução possível, mas também para os que vivem no fio da navalha da fome, da falta de assistência sanitária, da ausência de uma instrução pública satisfatória, onde os factores propícios ao desenvolvimento são praticamente nulos e os conflitos armados, as guerras entre etnias separadas por diferenças religiosas ou por rancores históricos cuja origem acabou por se perder da memória em muitos casos, mas que os interesses de agora se obstinam em alimentar.


O antigo colonialismo não desapareceu, multiplicou-se numa diversidade de versões locais, e não são poucos os casos em que os seus herdeiros imediatos foram as próprias elites locais, antigos guerrilheiros transformados em novos exploradores do seu povo, a mesma cobiça, a crueldade de sempre.

 

Esses são os Haitis que há que salvar. Há quem diga que a crise económica veio corrigir o rumo suicida da humanidade. Não estou muito certo disso, mas ao menos que a lição do Haiti possa aproveitar-nos a todos. Os mortos de Porto Príncipe foram fazer companhia aos mortos de Lisboa. Já não podemos fazer nada por eles. Agora, como sempre, a nossa obrigação é cuidar dos vivos.


José Saramago - Texto publicado em 08 de Fevereiro de 2010

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Segunda-feira, 19.07.10

Um país chamado Saramago

Viaje por Saramago

 

Pilar del Rio

 


 


José Saramago escribía libros y abría puertas por las que transitamos hacia una cultura, otros escritores, un modo de entender la vida, un país.

 

Supimos un día que Portugal tiene el tamaño adecuado para que una mujer, Blimunda, lo recorra a pie buscando a su hombre, al que acabará encontrando minutos antes de que la Santa Inquisición lo queme vivo por el nefando crimen de haber ayudado a juntar voluntades humanas y así volar en una pasarola que recorrió los cielos de Lisboa, Mafra, la sierra de Montejunto y los mares de Ericeira en un viaje único porque un fraile culto, un hombre manco y una mujer con poderes juntaron pensamiento y arrojo, valores humanos a los que no renunciaron pese a la amenaza de pagar por ello un precio tan alto como alta es la propia vida, la de cada uno, la de todos. La trinidad laica que formaban Blimunda, Baltasar y Bartolomeu entre sueños y estrecheces oyó tocar a Scarlatti porque la música es aérea y él cómplice en la elevación de los seres humanos, mientras, más allá de los acordes, trabajadores reclutados a la fuerza por el ejército de Don João V construían un convento palacio para conmemorar el nacimiento de Maria Bárbara, y por el que hoy pasean los turistas con Memorial del convento bajo el brazo. Y por llevar el libro entienden mejor la arquitectura y la naturaleza humana. Íntimamente mejor.


En la raya con Extremadura está el Alentejo.

 

Dice Saramago, por haber mirado tal vez desde la moderna altura de un avión, o desde su estatura, quién sabe, que lo que más hay en la tierra es paisaje, a no ser, añade, la abundancia de penas y tantos sueños sin cumplir de gente que él ha conocido bien, los campesinos sin tierra del Alentejo que cruzaron su tiempo esperando el día levantado y principal en el que pudieran decir, por fin, aquí estamos, somos y merecemos lo que la historia nos viene negando. Ese día en que los vivos y los muertos se juntarían en un desfile alegre, al que no faltaría el perro Constante, ni los Maltiempo que se sucedieron en una dinastía siempre pobre, de trabajar de sol a sol, de mudarse de un lugar a otro, estos olivos, estos campos sin sembrar, esta lluvia, el ajuar sobre un burro, el colchón, la olla, poco más tenemos que estos hijos, van al desfile Juan y su mujer Faustina, que juntos comieron pan y chorizo una noche de invierno, y Sara de la Concepción y Domingo Maltiempo, todavía con la soga al cuello, la soga con la que se ahorcó por culpa del vino y del mal vivir, o Tomás Espada con Flor Martinha, tanto tiempo esperándote, decía ella, o la hormiga mayor, que vio en Monte Lavre cómo torturaban a Germano Vidigal mientras ella arrastraba provisiones con las que pretendía llegar hasta el día del desfile, un tiempo en que ninguna policía política mataría a golpes a un hombre, relato verdadero que Saramago reconstruye en Levantado del suelo y que no pudo volver a leer nunca porque no era capaz de aguantar tanta brutalidad. Para distanciarse eligió, a la hora de narrar, el punto de vista de la hormiga, sin saber, o intuyéndolo, que hasta las hormigas, con sus minúsculos cerebros, expresarían alarma, quiénes son estos, de qué vientre han nacido para creerse dueños de otros que también han nacido de vientres, tan iguales todos al nacer, con el mismo futuro, de no mediar las hambrunas y otras maldades que confunden a la genética y ofenden a la ética.


Los paisajes mueren porque los matan, no porque se suiciden. El río Almonda, que pasa por Azinhaga, vio nadar cuerpos jóvenes y en sus aguas se lavaron miles de sábanas que luego, al caer la noche, olían a juncos, que era el olor a limpio de la ropa de los pobres. Ahora nadie podría bañarse en esas aguas, el filósofo tendría que callarse, ni una vez siquiera se podría gozar de la amable tibieza de un río del que se conocen todos los recodos y entrar en él es como entrar en un cuerpo bienamado. Cortaron los olivos, contaminaron el paisaje, se quedó la gente que a sí misma se sucede, los azules de las fachadas, las calles que ya no son de tierra, el recuerdo de unos abuelos altos, que cuidaban cerdos, las estrellas, que dicen que son las mismas, o tal vez sean el reflejo de lo que ya no está. Azinhaga, Ribatejo, caballos a lo lejos, en casa una cama pintada, un fogón, unas sillas, una mesa, un Portugal íntimo y precioso, descrito en Las pequeñas memorias, un país de recuerdos que nos une a todos en las mismas emociones y los mismos desconsuelos. Así éramos, no sabemos lo que hemos ganado ni lo que hemos perdido, no está inventada la máquina de medir la dimensión de la humanidad que transportamos.


El viaje no acaba nunca.

 

Decían que en Orce, Granada, encontraron al hombre más antiguo de la Península. Saramago le dio nombre, le puso Pedro Orce y se fue a ver los caminos de esa región meses antes de hacerla suya para siempre. Entró en cuevas que son casas, conversó con pastores que son nuestros contemporáneos aunque reproduzcan modos de vida que se pierden en el tiempo, tan duros y tan antiguos, juntó en un dos caballos a cinco andantes, tres hombres, dos mujeres, sujetos libres que vivieron proezas antes nunca imaginadas, y más tarde Saramago escribió que no existe ninguna novela que no tenga palabras de más, aunque a otras le falten páginas, de modo que escribió un capítulo nuevo para La balsa de piedra, otro viaje dentro del viaje para ver cómo nacen los ríos, y acabar diciendo, ante las aguas claras y ágiles del Castril, que mirándolas "el tiempo tiene otro sentido, como un instante de eternidad en la atroz brevedad de la duración humana. La nuestra".


Dice Saramago que a Portugal se entra por Camões. También por Eça de Queiroz, por Teixeira de Pascoaes, por Camilo Castelo Branco, por Sophia de Mello Breyner, por los poetas, luminosa constelación, por Fernando Pessoa, siempre por Fernando Pessoa en su estupenda complejidad. Hace años escribió José Donoso que si Lisboa desapareciera pero quedara un ejemplar de El año de la muerte de Ricardo Reis, el espíritu de la ciudad estaría salvado. La ciudad que se mira a sí misma, desconfiada, arañada de caminos que se cruzan, para ir, tal vez para volver, raíles de tranvías, calles tortuosas, la sombra de un deseo, el silencio pesado, la monotonía de los coches, un olor doméstico del jabón de almendra, la mujer que camina segura, la que mira a lo lejos enredada en convenciones mientras su mano inerte le dicta la vida y tal vez la soledad. Y un beso prolongado, tanto y tanto, un encuentro de dos hombres, el que no existe porque murió, el que no puede existir porque era invención. Fernando Pessoa, Ricardo Reis, la sabiduría de contentarse con contemplar el mundo desmentida en más de 400 páginas, la sabiduría de expresar la tristeza humana contada en más de 400 páginas. "Aquí, donde el mar acaba y la tierra empieza". "Aquí, donde el mar ha acabado y la tierra espera".


Salió Saramago de su país para entrar con ojos nuevos. Lo recorrió de Norte a Sur y de Este a Oeste. Utilizó carreteras secundarias, caminos vecinales y todos los desvíos que le llevaran al interior de las cosas. Eligió describir piedras en vez de paisajes, aldeas en vez de palacios, un cuadro de una esquina frente al gran retablo mil veces reproducido por su innegable belleza. Pero se quedó con la Pietá de Belmonte y con el palio de Cidadelhe, tan amorosamente custodiado, de Sintra, del palacio de la Pena dio señal, pero se detuvo describiendo cierta forma de amasar el pan y dar de comer, tan necesaria para la justicia del mundo. Viaje a Portugal no es una guía, es un testamento, una manera de mirar y ver. De descubrir la huella de la mano que levantó el monumento, la respiración de las piedras, el latido extremo de una civilización que se acaba y nadie puede decir si para bien.


Unos meses antes de morir Saramago recorrió Portugal, una vez más su país, Constância, Camões, el Tajo, Castelo Novo, el Río Coa, los olivos, las vides, Figueira de Castelo Rodrigo, la historia. Saramago murió con los ojos llenos de un país que no es grande, pero a él le dio vida y a cambio él le fue ofreciendo los libros que escribía. Portugal era el mundo desde el que José Saramago se hacía todas las preguntas y trataba de encontrar alguna respuesta.

 

Viajó, decía, por Portugal, siguiendo la ruta de un elefante que tuvo que llegar hasta Viena por una absurda decisión real. Y Saramago, como el elefante Salomón, partió desde Belén país adentro, con la emoción de quien sabe algo de la condición humana y permanece dispuesto a la sorpresa. En Castelo Novo leyó en voz alta unas líneas escritas 30 años antes: "Castelo Novo es uno de los más conmovedores recuerdos del viajero. Tal vez vuelva, tal vez no vuelva nunca, tal vez evite volver, solo porque hay experiencias que no se repiten". Volvió y quizá aún esté allí: al fin y al cabo, como dice el epílogo de El viaje del elefante, "siempre acabamos llegando a donde nos esperan". A Portugal, sin duda, y desde Portugal, a todos sus lectores.


Pilar del Rio - Publicado em El País

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Segunda-feira, 28.06.10

O vento traz palavras

El mundo entero es pobre sin José Saramago

 
Aminatou Haidar


Ante todo, expreso mis más sinceras condolencias a todos los seres queridos de José Saramago, y de manera especial a Pilar del Río y Violante Saramago. La pérdida de José Saramago no es un hecho puntual que atañe sólo a un círculo reducido de personas sino que es un evento universal que, de alguna manera, ha azotado el planeta.


José Saramago se ha ido y la Humanidad se ha quedado huérfana pero, sobre todo, nos hemos quedado huérfanos nosotros, los más débiles, los que luchamos día a día por sobrevivir, por llevarnos a la boca una migaja de libertad, por respirar aires de igualdad y respeto. Es por ello que José Saramago siempre estará con nosotros.


El espíritu de Saramago nos acompañará eternamente con su solidaridad incondicional y su apoyo libre y honesto, como lo hizo conmigo personalmente y, a través de mí, con todo el pueblo saharaui. Todavía recuerdo esa última aparición pública suya en el aeropuerto de Lanzarote, donde se estaba librando, una vez más, la eterna batalla del bien y del mal, del débil y del fuerte, del oprimido y del opresor.


Se presentó tranquilamente en la primera línea del frente y me saludó con dulces palabras y una muestra de empatía sin igual. No olvidaré jamás sus sabias palabras en esos aciagos y duros momentos con las que me aconsejaba “no te mueras, todavía te queda mucho que hacer y muchas batallas que librar”. Ahora, él se ha ido, pero está y estará presente en todas las batallas por la libertad, la igualdad y la justicia.


El legado de Saramago vivirá para siempre en la mente de miles de generaciones, pues es un compendio de amor a los valores humanos y de respeto al ser humano y su dignidad. Y como él mismo dijo, “si los seres humanos no resuelven los graves problemas que afectan el mundo, las condiciones de vida de la humanidad empeorarán”. Esperemos que el ser humano tome nota.


Hasta luego, Saramago, todos te queremos


Aminatou Haidar

 


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Segunda-feira, 21.06.10

Obrigado, Saramago

 

"A arte é tudo. Tudo o resto é nada"

 

Isabel Coutinho / Cláudia Sobral

 

O avião estava prestes a cair. Lá dentro, entre os passageiros, estava o escritor brasileiro Jorge Amado. No momento em que todos se agitavam com medo de morrer pediu os jornais à sua mulher. "Estamos prestes a morrer e você quer ler os jornais?", surpreendeu-se Zélia Gattai. Jorge Amado queria morrer informado sobre o que se passava no mundo. Foi esta a história com que Pilar del Río prestou a homenagem final ao marido, no discurso que fez ontem na antecâmara do crematório, no Cemitério do Alto de São João, em Lisboa.

 

"E tu, Saramago, hoje ficas a saber", continuou Pilar, agitando as mãos. A cremação do escritor foi vedada aos jornalistas e esta é a versão contada por quem esteve dentro da sala, por isso, as palavras podem não ser exactas. "O que se passa no mundo é que todos os meios de comunicação falam de ti" e dizem que morreu um homem bom e honesto, um bom escritor, um ser humano excepcional, um lutador. "E nós não temos o direito de chorar, de derramar lágrimas, porque somos os privilegiados que te conheceram. Que chorem os milhões de pessoas que não tiveram a sorte de passar contigo os momentos de vida."

 

Do lado de fora, um cordão policial não deixava ninguém aproximar-se das portas de vidro fechadas. "A luta continua!", gritavam os mais velhos entre a multidão que enchia o cemitério até à porta de entrada, alguns com os punhos cerrados. "Saramago amigo, o povo está contigo", ouvia-se a seguir. E despontavam livros, no final de braços mais jovens. Quando começou a sair fumo da chaminé do crematório, perto da 13h30, ouviram-se muitas palmas. 

 

Horas antes, no Salão Nobre dos Paços do Concelho, em Lisboa, o professor e ensaísta Eduardo Lourenço colocou em destaque, junto ao caixão do escritor, um exemplar de O Memorial do Convento. Aconteceu num dos momentos em que a comunicação social não podia estar presente, mas a escritora Lídia Jorge assistiu. Lourenço, mais tarde, explicou que o fez porque foi a obra, "surpreendente e imprevisível", que pôs Saramago na história da literatura mundial. Ele deu "uma dimensão mítica a Portugal que não tínhamos senão no passado", explicou. "Camões pertence a essa constelação, mas está no passado, Fernando Pessoa está no presente mas também está no passado. Saramago alargou o nosso pequeno país à dimensão do mundo."

 

Já passava das 11h00, quando no Salão Nobre, o presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, iniciou os discursos. "As cinzas de José Saramago descansarão na cidade de Lisboa", afirmou. Mas a sua obra é "património de toda a humanidade" e "a sua mensagem, o seu desassossego", continuarão "a desinquietar todos aqueles que a lerem. Obrigado, Saramago". A seu lado, estavam o primeiro-ministro José Sócrates, os ex-presidentes da República general Ramalho Eanes e Mário Soares, membros do actual Governo e muitas figuras da cultura portuguesa. A filha e os netos de Saramago encontravam-se todos juntos, ao pé de Pilar, que, durante os discursos, emocionada, olhava várias vezes, enlevada, para o marido. 

 

O professor universitário Carlos Reis abordou o percurso literário e o legado do autor de Caim. Um dos momentos mais bonitos do discurso foi quando convocou para aquela sala as personagens criadas pelo único Prémio Nobel da Literatura português. E, citando Eça de Queirós, afirmou: "A arte é tudo, tudo o resto é nada. Só um livro é capaz de fazer a eternidade do mundo."

 

Jerónimo de Sousa, o secretário-geral do PCP, disse que Saramago "podia ter sido só um escritor maior da língua portuguesa, mas foi mais do que isso". Foi um homem que acreditou nos homens, mesmo quando os questionava. 

 

Foi a vez dos discursos que mais emocionaram a sala. Para María Teresa Fernández de la Vega, vice-representante do Governo espanhol, José Saramago "fez soar as cordas da alma". Era "uma dessas poucas pessoas que sabem recordar-nos que podemos e devemos ter grandes sonhos, tão grandes que nunca os percamos de vista". E ele sonhou. "Sonhou com uma terra livre - livre de opressão, de miséria e de perseguição. Sonhou com um mundo em que os fortes eram mais justos e os justos eram mais fortes." Todos nos "sentimos órfãos da sua figura tão querida e das suas palavras tão confortantes, órfãos de quem tantas vezes foi a nossa voz". Muitos olhos, na sala, se encheram de lágrimas.

 

Por fim, a ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, lembrou que José Saramago enfrentou dogmas. "Não tinha fé em Deus, mas certamente Deus teve fé nele.

 

Lá fora, quando já havia terminado a cerimónia, todos olharam para cima e bateram palmas sem parar. Era Pilar del Río, que aparecia ao balcão, ao lado de Violante Matos, a filha de Saramago, e da violoncelista Irene Lima que interpretara Bach. Ela vestia a roupa que Pilar usou no banquete do Prémio Nobel 1998, em Estocolmo. Na barra do vestido vermelho, uma das frases de O Evangelho Segundo Jesus Cristo: "Olharei a tua sombra se não quiseres que te olhe a ti, Quero estar onde estiver a minha sombra, se lá é que estiverem os teus olhos."

 

À saída, o escritor valter hugo mãe considerou que na cerimónia fez falta o Presidente da República. "Sei de tanta gente que gostava de estar aqui representada e não esteve. Cavaco Silva tinha que estar aqui. Não é possível receber o Papa daquela maneira e não se despedir de José Saramago de alguma forma. Sinto-me indignado", acrescentou o Prémio José Saramago 2007, para quem a grande lição do Nobel "foi contra a indiferença". 

 

Ao fundo, o sítio onde esteve pousado o caixão, provocava uma imensa sensação de vazio, apesar dos cravos ali pousados. Para sempre, na nossa memória, ficará a frase lembrada no final do discurso de Gabriela Canavilhas, a frase que escreveu anteontem um amigo a Pilar del Río: "Não há palavras, Saramago levou-as todas...

 

Isabel Coutinho / Claudia Sobral - Público

 

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Domingo, 20.06.10

O discurso do Prêmio Nobel

"De como a Personagem Foi Mestre e o Autor Seu Aprendiz"

 

José Saramago

 

O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo.

 

Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom carácter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável.

 

Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que accionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira".

 

Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz nocturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direcção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E depois?".

 

Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras.

 

Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer".

 

Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.

 

Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerónimo e esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, não dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizontes, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver.

 

A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: "Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai fixar, de um e de outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra umas difusas e incongruentes arquitecturas neoclássicas". E terminava: "Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato - que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encontraria?"

 

Escrevi estas palavras há quase trinta anos, sem outra intenção que não fosse reconstituir e registar instantes da vida das pessoas que me geraram e que mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde venho e de que materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga...

 

À minha árvore genealógica (perdôe-se-me a presunção de a designar assim, sendo tão minguada a substância da sua seiva) não faltavam apenas alguns daqueles ramos que o tempo e os sucessivos encontros da vida vão fazendo romper do tronco central, também lhe faltava quem ajudasse as suas raízes a penetrar até às camadas subterrâneas mais fundas, quem apurasse a consistência e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse a sua copa para fazer dela abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei.

 

Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser. Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas acções não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia.

 

Desses mestres, o primeiro foi, sem dúvida, um medíocre pintor de retratos que designei simplesmente pela letra H., protagonista de uma história a que creio razoável chamar de dupla iniciação (a dele, mas também, de algum modo, do autor do livro), intitulada Manual de Pintura e Caligrafia, que me ensinou a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração, os meus próprios limites: não podendo nem ambicionando aventurar-me para além do meu pequeno terreno de cultivo, restava-me a possibilidade de escavar para o fundo, para baixo, na direcção das raízes. As minhas, mas também as do mundo, se podia permitir-me uma ambição tão desmedida. Não me compete a mim, claro está, avaliar o mérito do resultado dos esforços feitos, mas creio ser hoje patente que todo o meu trabalho, de aí para diante, obedeceu a esse propósito e a esse princípio.

 

Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma irmandade de condenados da terra a que pertenceram o meu avô Jerónimo e a minha avó Josefa, camponeses rudes obrigados a alugar a força dos braços a troco de um salário e de condições de trabalho que só mereceriam o nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a que os seres cultos e civilizados que nos prezamos de ser apreciamos chamar, segundo as ocasiões, preciosa, sagrada ou sublime.

 

Gente popular que conheci, enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e dos terratenentes latifundistas, gente permanentemente vigiada pela policia, gente, quantas e quantas vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa. Três gerações de uma família de camponeses, os Mau-Tempo, desde o começo do século até a Revolução de Abril de 1974 que derrubou a ditadura, passam nesse romance a que dei o título de Levantado do Chão, e foi com tais homens e mulheres do chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo nos construir e outra vez nos destruir.

 

Só não tenho a certeza de haver assimilado de maneira satisfatória aquilo que a dureza das experiências tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude naturalmente estóica perante a vida. Tendo em conta, porém, que a lição recebida, passados mais de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memória, que todos os dias a sinto presente no meu espírito como uma insistente convocatória, não perdi, até agora, a esperança de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram propostos na imensidão das planícies do Alentejo. O tempo o dirá. Que outras lições poderia eu receber de um português que viveu no século XVI que compôs as "Rimas" e as glórias, os naufrágios e os desencantos pátrios de "Os Lusíadas", que foi um génio poético absoluto, o maior da nossa literatura, por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que a si mesmo se proclamou como o Super-Camões dela? Nenhuma lição que estivesse à minha medida, nenhuma lição que eu fosse capaz de aprender, salvo a mais simples que me poderia ser oferecida pelo homem Luís Vaz de Camões na sua estreme humanidade, por exemplo, a humildade orgulhosa de um autor que vai chamando a todas as portas à procura de quem esteja disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por isso o desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferença desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o escárnio com que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas, dos visionários e dos loucos. Ao menos uma vez na vida todos os autores tiveram ou terão de ser Luís de Camões, mesmo se não escreverem as redondilhas de "Sôbolos rios"...

 

Entre fidalgos da corte e censores do Santo Ofício, entre os amores de antanho e as desilusões da velhice prematura, entre a dor de escrever e a alegria de ter escrito, foi a este homem doente que regressa pobre da Índia, aonde muitos só iam para enriquecer, foi a este soldado cego de um olho e golpeado na alma, foi a este sedutor sem fortuna que não voltará nunca mais a perturbar os sentidos das damas do paço, que eu pus a viver no palco da peça teatro chamada Que farei com este livro?, em cujo final ecoa uma outra pergunta, aquela que importa verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se alguma vez chegará a ter resposta suficiente: "Que fareis com este livro?".

 

Humildade orgulhosa, foi essa de levar debaixo do braço uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitado pelo mundo.

 

Humildade orgulhosa também, e obstinada, esta de querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que consigam perdurar longamente (até quando?) as razões tranquilizadoras que acaso nos estejam a ser dadas ou que estejamos a dar a nós próprios. Ninguém melhor se engana que quando consente que o enganem os outros... Aproximam-se agora um homem que deixou a mão esquerda na guerra e uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há por trás da pele das pessoas. Ele chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de Sete-Sóis, a ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo apodo de Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque está escrito que onde haja um sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de um e do outro tornará habitável, pelo amor, a terra. Aproxima-se também um padre jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem outro combustível que não seja a vontade humana, essa que, segundo se vem dizendo, tudo pode, mas que não pôde, ou não soube, ou não quis, até hoje, ser o sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais simples respeito. São três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde floresceram as superstições e as fogueiras da Inquisição, onde a vaidade e a megalomania de um rei fizeram erguer um convento, um palácio e uma basílica que haveriam de assombrar o mundo exterior, no caso pouco provável de esse mundo ter olhos bastantes para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para ver o que escondido estava... E também se aproxima uma multidão de milhares e milhares de homens com as mãos sujas e calosas, com o corpo exausto de haver levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros implacáveis do convento, as salas enormes do palácio, as colunas e as pilastras, as aéreas torres sineiras, a cúpula da basílica suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir são do cravo de Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou chorar...

 

Esta é a história de Memorial do Convento, um livro em que o aprendiz de autor, graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus avós Jerónimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como estas, donde não está ausente alguma poesia: "Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu". Que assim seja. De lições de poesia sabia já alguma coisa o adolescente, aprendidas nos seus livros de texto quando, numa escola de ensino profissional de Lisboa, andava a preparar-se para o ofício que exerceu no começo da sua vida de trabalho: o de serralheiro mecânico. Teve também bons mestres de arte poética nas longas horas nocturnas que passou em bibliotecas públicas, lendo ao acaso de encontros e de catálogos, sem orientação, sem alguém que o aconselhasse com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugar que descobre. Mas foi na biblioteca da escola industrial que O Ano da Morte de Ricardo Reis começou a ser escrito...

 

Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista - "Atena" era o título - em que havia poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo tão mau conhecedor da cartografia literária do seu país pensou que existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes nascidos na sua cabeça e a que chamava heterónimos, palavra que não constava dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava. Aprendeu de cor muitos poemas de Ricardo Reis ("Para ser grande sê inteiro/Põe quanto és no mínimo que fazes"), mas não podia resignar-se, apesar de tão novo e ignorante, que um espírito superior tivesse podido conceber, sem remorso este verso cruel: "Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo". Muito, muito tempo depois, o aprendiz, já de cabelos brancos e um pouco mais sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a escrever um romance para mostrar ao poeta das "Odes" alguma coisa do que era o espectáculo do mundo nesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias: a ocupação da Renânia pelo exército nazista, a guerra de Franco contra a República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas portuguesas. Foi como se estivesse a dizer-lhe: "Eis o espectáculo do mundo, meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Disfruta, goza, contempla, já que estar sentado é a tua sabedoria..." O Ano da Morte de Ricardo Reis terminava com umas palavras melancólicas: "Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera". Portanto, não haveria mais descobrimentos para Portugal, apenas como destino uma espera infinita de futuros nem aos menos inimagináveis: só o fado do costume, a saudade de sempre, e pouco mais...

 

Foi então que o aprendiz imaginou que talvez houvesse ainda uma maneira de tornar a lançar os barcos à água, por exemplo, mover a própria terra e pô-la a navegar pelo mar fora. Fruto imediato do ressentimento colectivo português pelos desdéns históricos de Europa (mais exacto seria dizer fruto de um meu ressentimento pessoal...), o romance que então escrevi - Jangada de Pedra - separou do continente europeu toda a Península Ibérica para a transformar numa grande ilha flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hélices em direcção ao Sul do mundo, "massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais", a caminho de uma utopia nova: o encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha estratégia se atreveu, o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo naquelas paragens... Uma visão duas vezes utópica entenderia esta ficção política como uma metáfora muito mais géneros e humana: que a Europa, toda ela, deverá deslocar-se para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética. As personagens da Jangada de Pedra- duas mulheres , três homens e um cão - viajam incansavelmente através da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se (sem esquecer o cão, que não é um cão como os outros...).

 

Isso lhes basta. Lembrou-se então o aprendiz de que em tempos da sua vida havia feito algumas revisões de provas de livros e que se na Jangada de Pedra tinha, por assim dizer, revisado o futuro, não estaria mal que revisasse agora o passado, inventando um romance que se chamaria História do Cerco de Lisboa, no qual um revisor, revendo um livro do mesmo título, mas de História, e cansado de ver como a dita História cada vez é menos capaz de surpreender, decide pôr no lugar de um "sim" um "não", subvertendo a autoridade das "verdades históricas". Raimundo Silva, assim se chama o revisor, é um homem simples, vulgar, que só se distingue da maioria por acreditar que todas as coisas têm o seu lado visível e o seu lado invisível e que não saberemos nada delas enquanto não lhes tivermos dado a volta completa. De isso precisamente se trata numa conversa que ele tem com o historiador. Assim: "Recordo-lhe que os revisores já viram muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lhe eu, é de história, Não sendo propósito meu apontar outras contradições, senhor doutor, em minha opinião tudo quanto não for vida é literatura, A história também. A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a música, A música anda a resistir desde que nasceu, ora vai, ora vem, quer livrar-se da palavra, suponho que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais do que literatura feita com pincéis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever, Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, ou, por outras palavras, quem não pode escrever, pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era, Quer-me parecer que você errou a vocação, devia era ser historiador, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia apresentar-se como autodidacta, produto do seu próprio e digno esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidactas, Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidactas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser autodidactas, mas eu para a criação literária nunca tive jeito, Então, meta-se a filósofo, O senhor doutor é um humorista, cultiva a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela tão grave e profunda ciência, Sou irónico apenas na vida real, Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não se lhe poderia chamar história, Então o senhor doutor acha que a história e a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenho a menor dúvida, Que seria de nós se o deleatur que tudo apaga não existisse, suspirou o revisor".

 

Escusado será acrescentar que o aprendiz aprendeu com Raimundo Silva a lição da dúvida. Já não era sem tempo. Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dúvida que o levou, dois anos mais tarde, a escrever O Evangelho segundo Jesus Cristo. É certo, e ele tem-no dito, que as palavras do título lhe surgiram por efeito de uma ilusão de óptica, mas é legítimo interrogar-nos se não teria sido o sereno exemplo do revisor o que, nesse meio tempo, lhe andou a preparar o terreno de onde haveria de brotar o novo romance. Desta vez não se tratava de olhar por trás das páginas do "Novo Testamento" à procura de contrários, mas sim de iluminar com uma luz rasante a superfície delas, como se faz a uma pintura, de modo a fazer-lhe ressaltar os relevos, os sinais de passagem, a obscuridade das depressões. Foi assim que o aprendiz, agora rodeado de personagens evangélicas, leu, como se fosse a primeira vez, a descrição da matança dos Inocentes, e, tendo lido, não compreendeu. Não compreendeu que já pudesse haver mártires numa religião que ainda teria de esperar trinta anos para que o seu fundador pronunciasse a primeira palavra dela, não compreendeu que não tivesse salvado a vida das crianças de Belém precisamente a única pessoa que o poderia ter feito, não compreendeu a ausência, em José, de um sentimento mínimo de responsabilidade, de remorso, de culpa, ou sequer de curiosidade, depois de voltar do Egipto com a família. Nem se poderá argumentar, em defesa da causa, que foi necessário que as crianças de Belém morressem para que pudesse salvar-se a vida de Jesus: o simples senso comum, que a todas as coisas, tanto às humanas como às divinas, deveria presidir, aí está para nos recordar que Deus não enviaria o seu Filho à terra, de mais a mais com o encargo de redimir os pecados da humanidade, para que ele viesse a morrer aos dois anos de idade degolado por um soldado de Herodes...

 

Nesse "Evangelho", escrito pelo aprendiz com o respeito que merecem os grandes dramas, José será consciente da sua culpa, aceitará o remorso em castigo da falta que cometeu e deixar-se-á levar à morte quase sem resistência, como se isso lhe faltasse ainda para liquidar as suas contas com o mundo. O "Evangelho" do aprendiz não é, portanto, mais uma lenda edificante de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem vencer. Jesus, que herdará as sandálias com que o pai tinha pisado o pó dos caminhos da terra, também herdará dele o sentimento trágico da responsabilidade e da culpa que nunca mais o abandonará, nem mesmo quando levantar a voz do alto da cruz: "Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez", por certo referindo-se ao Deus que o levara até ali, mas quem sabe se recordando ainda, nessa agonia derradeira, o seu pai autêntico, aquele que, na carne e no sangue, humanamente o gerara. Como se vê, o aprendiz já tinha feito uma larga viagem quando no seu herético "Evangelho" escreveu as últimas palavras do diálogo no templo entre Jesus e o escriba: "A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, disse o escriba, Esse lobo de que falas já comeu o meu pai, disse Jesus, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido, ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado, respondeu o escriba". Se o imperador Carlos Magno não tivesse estabelecido no Norte da Alemanha um mosteiro, se esse mosteiro não tivesse dado origem à cidade de Münster, se Münster não tivesse querido assinalar os mil e duzentos anos da sua fundação com uma ópera sobre a pavorosa guerra que enfrentou no século XVI protestantes anabaptistas e católicos, o aprendiz não teria escrito a peça de teatro a que chamou In Nomine Dei. Uma vez mais, sem outro auxílio que a pequena luz da sua razão, o aprendiz teve de penetrar no obscuro labirinto das crenças religiosas, essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar. E o que viu foi novamente a máscara horrenda da intolerância, uma intolerância que em Münster atingiu o paroxismo demencial, uma intolerância que insultava a própria causa que ambas as partes proclamavam defender. Porque não se tratava de uma guerra em nome de dois deuses inimigos, mas de uma guerra em nome de um mesmo deus. Cegos pelas suas próprias crenças, os anabaptistas e os católicos de Münster não foram capazes de compreender a mais clara de todas as evidências: no dia do Juízo Final, quando uns e outros se apresentarem a receber o prémio ou o castigo que mereceram as suas acções na terra, Deus, se em suas decisões se rege por algo parecido à lógica humana, terá de receber no paraíso tanto a uns como aos outros, pela simples razão de que uns e outros nele crêem. A terrível carnificina de Münster ensinou ao aprendiz que, ao contrário do que prometeram, as religiões nunca serviram para aproximar os homens, e que a mais absurda de todas as guerras é uma guerra religiosa, tendo em consideração que Deus não pode, ainda que o quisesse, declarar guerra a si próprio...

 

Cegos. O aprendiz pensou: "Estamos cegos", e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. Depois, o aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a escrever a mais simples de todas as histórias: uma pessoa que vai à procura de outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que pedir a um ser humano. O livro chama-se "Todos os Nomes". Não escritos, todos os nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos. Termino. A voz que leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo.

 

 

José Saramago

 

Estocolmo, 7 de Dezembro de 1998

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Sábado, 19.06.10

"A Pilar, como se dissesse água"

 

Luto em vermelho

 

Helena Ortiz

 

A amiga me liga pela manhã para me contar. Foi assim que eu soube, por telefone, como se recebe a notícia da morte de um parente. Estamos viúvas, ela disse, e chorava. Mas eu sou forte, ainda consegui dizer à doutora que não tomo remédios, não tenho deficiência física e a pressão é boa. E daí, o que importava isso? José Saramago estava morto, e eu pensava primeiro no mundo, depois em Pilar del Rio, porque a ela sim foi dada a sorte de ter se tornado a amada do escritor. Foi para ela que ele escreveu a mais linda dedicatória que já vi: "A Pilar, como se dissesse água". E será ela, certamente, quem mais sentirá a falta dele.

 

Temos os livros, e a eles voltaremos quantas vezes quisermos. Ela não. Não mais a convivência em Lanzarote, não lerá os originais em primeira mão, não trocará com ele as carícias possíveis, não recolherá os silêncios em que trabalhava.

 

Para nós foi-se o grande escritor, um humanista que se teimava comunista, o anti-clerical por natureza (e acho que se divertia com isso). Um homem de talento, mas de igual coragem, que se aprendeu e se fez homem em condições difíceis, sem nunca esquecer. Mas para ela foi-se não só o grande escritor, o homo politicus que apontava os vícios neoliberais, o desvario belicista, a intolerância, foi-se o homem que amava, deixando mudos os espaços do entendimento, a casa, a sala, a cama, a intimidade. Escrevo isso porque uma das coisas que mais me chamava atenção na obra de Saramago era sua consideração pelas mulheres, pelo sentimento feminino que tão bem apreendeu, pela importância que reconhecia e conferia à mulher. Daí porque imagino com que delicadeza devia tratar sua Pilar.

 

Depois pensei em mim, na minha própria tristeza, na certeza de saber que perdi aquele que era meu deleite, fonte de compreensão, orgulho da espécie, que eu sempre achei que o artista deve ter um papel político, deve dizer o que pensa, deve assumir o que sente. Ele era assim. E quem mais? Me diga por favor que eu quero saber.

 

Em casa, não pude fazer mais nada que pensar, pensar em que talvez o poema de Idea Vilariño postado há dois dias, Pobre Mundo, tenha vindo ao encontro desse acontecimento tão temido, tão indesejado e tão previsível. Que ao morrer o escritor, o poeta, o incansável lutador, nossa voz ficou ainda mais fraca porque era ele, com sua coragem e lucidez, que nos abria os olhos para os equívocos dos caminhos obscuros que aceitamos percorrer.

 

E então fui à cozinha, e chorando sobre pimentões vermelhos e berinjelas pensei no luto vermelho daqueles que não podiam nem chorar, que precisavam se esconder para prosseguir, calar a respiração a bem de se manterem vivos, retrair-se para avançar, e sempre engolir o choro. Agora podemos chorar alto, falar palavrão, reacender as dúvidas. Mas porque aprendemos (ou ainda não?) a lição de Saramago: "Já estamos a viver neste planeta como sobreviventes. A cada dia que amanhece temos que fazer o possível para sobreviver. E devemos fazê-lo como insurgentes sistemáticos".

 

Talvez assim descubramos, cada um de nós, o segredo da ilha desconhecida.

 

 

 

 

 

 

 

Helena Ortiz - Publicado no blog Integrada e Marginal

 

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publicado por ardotempo às 15:30 | Comentar | Adicionar

Colocar palavras

 

Extensão do Mito

 

Mariana Ianelli

 

 

 

Contam que ele desceu

Ao vale dos esquecidos

E cantou acima do suplício.

 

Que apaziguou o vento,

Estufou as vinhas,

De olhos fechados

Seduziu a serpente

Como se replantasse

O primeiro jardim.

 

Que foi odiado, despedaçado,

Lançado ao mar,

Para nunca mais

Uma voz se atrever à harmonia.

 

Mas não contam que uma mulher

Reuniu seus fragmentos

E encantou as mulheres da ilha,

Que assim Orfeu amou Eurídice, 

Finalmente em corpo e lira.

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Treva Alvorada, Iluminuras - 2010

 

 

 

 

 

 

 

publicado por ardotempo às 14:22 | Comentar | Adicionar

O que importa e o que não importa

Desastres para a Humanidade

 

Ocorreram recentemente dois fatos verdadeiramente importantes e que determinam consequencias futuras para a Humanidade. A lamentável perda da presença e da voz de José Saramago e o fatal desastre ecológico no Golfo do México, ocasionado pela incompetência, pela ganância e pela estupidez de empresas petroliferas, de empreiteiras e seus acionistas, profundamente distanciados dos interesses da preservação ambiental. Fatos que se mostrarão incontornáveis nos próximos meses e anos.

 

Nada a ver com um outro evento inócuo, entorpecedor, inconsequente, dissipador e pródigo, que acontece ao sul do continente africano.

Um evento, esse sim, verdadeiramente desimportante para o futuro da Humanidade. O que também contribui largamente para acentuar os desastres na região, uma vez que passado o tempo de sua ocorrência, qual será o seu legado concreto? Por quê tanto dinheiro jogado fora, tantas atenções e tempo desperdiçados, se permanecerão as carências ao desenvolvimento e à cultura, as dificuldades sanitárias, a miséria, a violência, a disseminação das epidemias, a desigualdade econômica e social entre brancos e negros, as extensas lacunas de educação?

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publicado por ardotempo às 11:29 | Comentar | Adicionar

Filosofia

Pensar, pensar


Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado, como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, nao vamos a parte nenhuma.


José Saramago, 2008

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publicado por ardotempo às 11:24 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 18.06.10

"Até amanhã"

La felicidad era una isla para Saramago


Juan Cruz 

 
En las últimas semanas José Saramago hablaba apenas, pero reía, seguía riendo. Pilar del Río, su mujer, con la que convivió más de 20 años, le seguía preparando cenas y desayunos, y aunque ya parecía que la comida era de otro mundo o de otras necesidades, él estaba en todos los ritos que esta andaluza preparaba para que él siguiera anudado al hilo de la supervivencia.


Estaba y no estaba, pero reía. Hoy por la mañana amaneció mejor, como si resurgiera, y departió con Pilar, con el médico, como si se despidiera una a una de la vida y de las personas que le acompañaron hasta el final. A veces - ocurrió cuando estuvimos por última vez con ellos, hace una semana, en su casa de Tías, Lanzarote - escuchaba solo música; pero estos días Saramago escuchaba en silencio y entre risas los programas de humor de la televisión.
Tenía el semblante sereno, como si viniera de una larga lucha; pero ya los médicos habían abandonado la esperanza de lo que él mismo llamó su resurrección, ocurrida a finales de 2007, cuando la Fundación César Manrique organizó una exposición magna sobre su vida y sobre sus sueños. La construcción de los sueños.


Gravemente enfermo, Saramago parecía despedirse ya de la vida. Pero en la primavera siguiente volvió José a retomar unos bríos que no venían solo de la sangre renovada, sino de la dedicación eficaz de sus médicos y, sin duda, él lo dijo en este periódico, de la fuerza increíble de Pilar del Río. La fuerza con la que regresó a la vida le dio aún para dos libros más, El viaje del elefante y Caín, una especie de cuento largo que convirtió en leyenda y un diálogo raro sobre el extraño caso del hombre malo al que él quiso convertir en el bueno de la historia. En cierto modo, hasta en esa obra de la resurrección Saramago fue como era: paradójico, melancólico y sobrio, como un Quijote de Portugal que no se asombraba de nada porque ya vino del asombro.


Lanzarote le dio mucha felicidad, desde que Pilar lo llevó allí por vez primera, en 1993, un año después de que muriera allí un héroe cuya estela él contribuyó a prolongar, César Manrique, otro Quijote, en este caso insular, que había abrazado causas que fueron siempre familiares para Saramago: el respeto a los hombres y a la tierra, la lucha contra la injusticia de los hombres contra los hombres. De manera intermitente, vivió en Lanzarote (donde se curó de un desengaño, el que le produjo su país cuando le impidió concursar a un premio internacional con su El evangelio según Jesucristo) y siguió viviendo en Lisboa, en cuya casa que amó tanto guardaba lo más central de su corazón: el amor a los otros, y el amor a sus antepasados. Su abuelo, analfabeto, le enseñó a amar a los hombres y a la tierra, y a él dedicó, en un discurso memorable, el Premio Nobel que su literatura mereció en 1998.


Y en Lisboa - adonde llegarán mañana sus restos en un avión C-130 de la Fuerza Aérea portuguesa, cuyo Gobierno ha declarado mañana y pasado luto nacional - será incinerado el domingo José Saramago, cuyo carácter portugués y quijotesco le aupó a la grupa de todas las causas civiles de su tiempo; comunista convencido, periodista contra la dictadura y a favor del cambio de los claveles en Portugal, fue en todos los países que visitó (desde México a Brasil, desde España a Israel o Palestina) un firme defensor de los derechos humanos, contra las guerras (la de Irak, en los últimos años), contra el avasallamiento (de Israel sobre Palestina), a favor de personas (como Baltasar Garzón) acosadas por defender lo que él defendió, la memoria civil de los perdedores.


Todo se lo tomó con filosofía espartana, como si el honor o la gloria fueran pelusa en la chaqueta. Supo que había ganado el Nobel por una azafata de Francfort, cuando ya dejaba la Feria del Libro. Entonces se sintió solo, "a mi alrededor no había nada, nadie, nada, nadie, nada", y empezó a caminar sin rumbo, hasta que se encontró con su editora, Isabel de Polanco, a quien le dio la noticia. Ese abrazo de los dos, distintivo de la relación que mantuvieron, adquiere ahora el aroma triste de la melancolía, porque los dos protagonistas de esa hermosa escena están muertos.


Hace una semana, Pilar del Río nos dijo a Francisco Cuadrado, su editor en Santillana, y a este corresponsal, que su marido se había levantado una de esas mañanas con ganas, otra vez, de escribir, de retomar el hilo de una de sus historias, en las que estaba enfrascado cuando la gravedad de su estado hizo que perdiera la voz pero no la risa. Pilar le aconsejó que esperara, y ella misma esperaba que el milagro de dos años antes amaneciera otra vez en el escenario discreto de la vida de Saramago, que volviera otra vez el autor de Las intermitencias de la muerte a ocupar el sitio preferido de la casa, la biblioteca de la Fundación. Pero ya solo le animaban las bromas de Pilar, la persistencia de ella en continuar los hábitos cotidianos, el pan con aceite, las verduras, el bacalao portugués, la vida viva que Saramago siempre quiso. La misma Pilar que ha leído hoy, ante el féretro del escritor, un fragmento de su libro El evangelio según Jesucristo y la que ha puesto bajo la cabeza de su marido un paño bordado con la frase "Estaremos extrañamente conectados a la bondad del mundo" que envió un lector desde Argentina.


Ya había poco que decir, tras tanto sueño y tanta escritura. Le fuimos a ver donde esperaba las imágenes de la tele y el sueño que ya se interrumpía poco. Le dijimos hasta mañana, y él dijo, acariciándonos con sus manos ya transparentes: "Até amanhã".

 


Juan Cruz - Publicado em El País

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JOSÉ SARAMAGO

Sem palavras

 

 

 

(Ausência irreparável - 18 de junho de 2010)

publicado por ardotempo às 16:25 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 14.06.10

Vazio infinito

Cada vez mais sós

 

Acho que todos nós devemos repensar o que andamos aqui a fazer. Bom é que nos divirtamos, que vamos à praia, à festa, ao futebol, esta vida são dois dias, quem vier atrás que feche a porta – mas se não nos decidirmos a olhar o mundo gravemente, com olhos severos e avaliadores, o mais certo é termos apenas um dia para viver, o mais certo é deixarmos a porta aberta para um vazio infinito de morte, escuridão e malogro.

 

 

 

 

José Saramago

 

(Publicado no blog Outros Cadernos de Saramago)

 

publicado por ardotempo às 01:33 | Comentar | Adicionar

"Quanto ganhas...?"

Cidadãos, não clientes

 

Nós estamos a assistir ao que chamaria de morte do cidadão e, no seu lugar, o que temos, e cada vez mais, é o cliente.

Agora já ninguém te pergunta o que pensas, agora perguntam-te que marca de carro, de roupa, de gravata tens, quanto ganhas

 

 

 

 

 

José Saramago

 

(Publicado no blog Outros Cadernos de Saramago)

publicado por ardotempo às 01:00 | Comentar | Adicionar
Sábado, 05.06.10

Transparente

Momentos


José Saramago


Há momentos assim na vida: descobre-se inesperadamente que a perfeição existe, que é também ela uma pequena esfera que viaja no tempo, vazia, transparente, luminosa, e que às vezes (raras vezes) vem na nossa direcção, rodeia-nos por breves instantes e continua para outras paragens e outras gentes.

 

 

 


In Manual de Pintura e Caligrafia, Ed. Caminho, 6.ª ed., p. 291 - José Saramago

(Publicado no blog Outros Cadernos de Saramago)

publicado por ardotempo às 05:06 | Comentar | Adicionar
Sábado, 13.02.10

Tempo do chumbo

Nem leis, nem justiça
 
José Saramago
 
Em Portugal, na aldeia medieval de Monsaraz, há um fresco alegórico dos finais do século XV que representa o Bom Juiz e o Mau Juiz, o primeiro com uma expressão grave e digna no rosto e segurando na mão a recta vara da justiça, o segundo com duas caras e a vara da justiça quebrada. Por não se sabe que razões, estas pinturas estiveram escondidas por um tabique de tijolos durante séculos e só em 1958 puderam ver a luz do dia e ser apreciadas pelos amantes da arte e da justiça. Da justiça, digo bem, porque a lição cívica que essas antigas figuras nos transmitem é clara e ilustrativa. Há juízes bons e justos a quem se agradece que existam, há outros que, proclamando-se a si mesmos justos, de bons pouco têm, e, finalmente, não são só injustos como, por outras palavras, à luz dos mais simples critérios éticos, não são boa gente. Nunca houve uma idade de ouro para a justiça.
 
Hoje, nem ouro, nem prata, vivemos no tempo do chumbo. Que o diga o juiz Baltasar Garzón que, vítima do despeito de alguns dos seus pares demasiado complacentes com o fascismo sobrevivo ao mando da Falange Espanhola e dos seus apaniguados, vive sob a ameaça de uma inabilitação de entre doze e dezasseis anos que liquidaria definitivamente a sua carreira de magistrado. O mesmo Baltasar Garzón que, não sendo desportista de elite, não sendo ciclista nem jogador de futebol ou tenista, tornou universalmente conhecido e respeitado o nome de Espanha. O mesmo Baltasar Garzón que fez nascer na consciência dos espanhóis a necessidade de uma Lei da Memória Histórica e que, ao abrigo dela, pretendeu investigar não só os crimes do franquismo como os de outras partes do conflito. O mesmo corajoso e honesto Baltasar Garzón que se atreveu a processar Augusto Pinochet, dando à justiça de países como Argentina e Chile um exemplo de dignidade que logo veio a ser seguido.
 
Invoca-se aqui a Lei da Amnistia para justificar a perseguição a Baltasar Garzón, mas, em minha opinião de cidadão comum, a Lei da Amnistia foi uma maneira hipócrita de tentar virar a página, equiparando as vítimas aos seus verdugos, em nome de um igualmente hipócrita perdão geral. Mas a página, ao contrário do que pensam os inimigos de Baltasar Garzón, não se deixará virar.
 
 
Faltando Baltasar Garzón, supondo que se chegará a esse ponto, será a consciência da parte mais sã da sociedade espanhola que exigirá a revogação da Lei da Amnistia e o prosseguimento das investigações que permitirão pôr a verdade no lugar onde ela tem faltado. Não com leis que são viciosamente desprezadas e mal interpretadas, não com uma justiça que é ofendida todos os dias. O destino do juiz Baltasar Garzón é nas mãos do povo espanhol que está, não dos maus juízes que um anónimo pintor português retratou no século XV.
 

©José Saramago - Publicado no blog Caderno de Saramago 

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Quarta-feira, 27.01.10

Livros serão tijolos para ajudar a reconstruir

Uma jangada de pedra para o Haiti
 
"As minhas palavras serão de agradecimento. A Fundação José Saramago teve uma ideia, louvável por definição, mas que poderia ter entrado na história como uma simples boa intenção, mais uma das muitas com que dizem estar calcetado o caminho para o inferno. Era a ideia editar um livro. Como se vê, nada de original, pelo menos em princípio, livros é o que não falta. A diferença estaria em que o produto da venda deste se destinaria a ajudar as vítimas sobreviventes do sismo do Haiti.
 
Quantificar tal ajuda, por exemplo, na renúncia do autor aos seus direitos e numa redução do lucro normal da editora, teria o grave inconveniente de converter em mero gesto simbólico o que deveria ser, tanto quanto fosse possível, proveitoso e substancial. Foi possível.
 
Graças à imediata e generosa colaboração das entidades que participam na feitura e difusão de um livro, desde a fábrica de papel à tipografia, desde o distribuidor ao comércio livreiro, os 15 euros que o comprador gastará serão integralmente entregues à Cruz Vermelha para que os faça seguir ao seu destino. Se chegássemos a um milhão de exemplares (o sonho é livre) seriam 15 milhões de euros de ajuda. Para a calamidade que caiu sobre o Haiti 15 milhões de euros não passam de uma gota de água, mas A Jangada de Pedra (foi este o livro escolhido) será também publicada em Espanha e no mundo hispânico da América Latina.
 
Quem sabe então o que poderá suceder? A todos os que nos acompanharam na concretização da ideia primeira, tornando-a mais rica e efectiva, a nossa gratidão, o nosso reconhecimento para sempre."
 
José Saramago
 

 

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Quarta-feira, 20.01.10

Pés sobre pedra

Así va

 

Rosa Montero

 

 

 

 

Cuando Lisboa fue destruida por un terremoto en 1755, la Iglesia católica dictaminó que era un justo castigo de Dios (¿les recuerda algo semejante derroche de compasión?). Y la obvia insensatez de esa afirmación cruel (habían muerto miles de inocentes, niños incluidos, en un país además especialmente religioso) creó una conmoción mundial y una reacción aconfesional encabezada por Voltaire. Aquel seísmo fue el comienzo de la muerte de los dioses.

 

Han pasado 250 años de aquello, pero la Iglesia sigue diciendo cosas igual de insensatas e insensibles. Las crudas palabras del obispo Munilla (que la pobreza espiritual de España es un mal mayor que la tragedia de Haití) también han provocado un sonoro escándalo. Para peor, en vez de pedir excusas, el prelado se justificó diciendo que hablaba a "nivel teológico", con lo cual solidificó su error de expresión y lo convirtió en lo que sin duda es: pura y berroqueña ideología. Ah, sí, seguro que hablaba teológicamente.

 

Sólo hundido a ciegas en el dogma puede uno tener una percepción tan deformada de la realidad y creer que la tibieza católica de los españoles es peor que el atroz sufrimiento de los haitianos y que el pavoroso colapso de un país entero: un abismo en la Tierra.

 

Es la teología como sinónimo del fanatismo.

 

Si Munilla quería hacer una reflexión moral, podría haber hablado de que el horror de ahora es una consecuencia del horror de antes. Haití, ya se sabe, es uno de los países más míseros, corruptos y desesperados del planeta; la esperanza de vida no llega a los 52 años y sólo uno de cada 50 ciudadanos recibe salario. Eso sí que es pobreza espiritual; quiero decir que algo funciona muy mal en un mundo que permite la existencia de estos infiernos. Pero, ya ven, a Munilla y Cía. sólo parece interesarles lo teológico.

 

Así va la Iglesia: matando ella sola a Dios con sus torpezas.

 

Rosa Montero

Imagem: Gilberto Perin - Pés sobre pedra - Fotografia, 2009

 

Publicado pela Fundação José Saramago 

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Sexta-feira, 04.12.09

Feito do mesmo barro

A humanidade segundo José Saramago
 
Mariana Ianelli
 
Há muito tempo não se via um lançamento despertar tanta polêmica, sobretudo de ordem extraliterária. É assim que Saramago assiste à repercussão do seu novo livro, Caim, cuja controvérsia lembra os efeitos provocados por seu Evangelho segundo Jesus Cristo, dezoito anos atrás. Na época, a resposta do governo português foi a interdição da candidatura do escritor ao Prêmio Literário Europeu. Agora, com o surgimento de Caim, as reações novamente se inflamam, chegando ao disparate de um eurodeputado exortar Saramago à renúncia de sua cidadania. Às declarações políticas, somam-se as admoestações religiosas, que são muitas e talvez mais interessantes. 
 
Se antes o autor se detivera no Novo Testamento para escrever seu Evangelho, agora sua atenção se volta ao princípio dos tempos, em uma jornada do pensamento e, por que não dizer do espírito, por algumas das mais célebres passagens do Antigo Testamento. É a figura estigmatizada de Caim que protagoniza essa história, na qual Saramago mescla episódios de diferentes tempos bíblicos sob a perspectiva de diferentes presentes no tempo da narrativa. Em cada um desses “presentes”, visitados pelo personagem em seu destino errante, uma “vítima de deus” se apresenta, seja no sacrifício de Isaac, no sofrimento de Jó ou na destruição de Sodoma.
 
Saramago se propõe a ler a Bíblia à letra, daí a censura que os católicos lhe fazem: desconsiderar uma leitura simbólica. Quantas sejam as interpretações possíveis, para o autor de Caim interessa que o texto bíblico, tal como está escrito, não seja suprimido ou mascarado. Em conversa com o teólogo José Tolentino Mendonça, em outubro deste ano, na ilha de Lanzarote, o escritor chegou a afirmar que, ao menos no seu “estado de espírito presente”, considera este recente trabalho o seu melhor livro. Tolentino, porém, acredita que a narrativa não possui a complexidade de seus outros romances. Entre um extremo e outro, vale ressaltar a prodigiosa fluidez e o humor que há nas páginas de Caim.
 
Grafado em letras minúsculas, como todos os personagens do romance, deus aparece na narrativa feito do mesmo barro da sua criatura, à imagem e semelhança dos homens. Vaidoso, irônico, temperamental, faz que governa o mundo mas quase sempre está ausente, é um deus que se equivoca, que promete e não cumpre, que promove acordos tácitos e, quando se trata da disputa de poder, não hesita em pôr seus filhos à prova. Por meio deste personagem muitas vezes jocoso, absurdo, repleto de vícios mundanos, Saramago, valendo-se da mordacidade que lhe é peculiar, coloca em ação seu testemunho da violência, do terrorismo fundamentalista, da hipocrisia humana. Quanto aos mistérios da fé e aos desígnios do coração, neles o escritor não toca, nem é para isto que se lhe dá a palavra: “o inefável, como sabemos, é precisamente o que está para lá de qualquer possibilidade de expressão”.
 
É, pois, com este deus de tantos caprichos e impulsos que Caim divide a culpa pela morte de seu irmão Abel. Culpado Caim por ter escolhido matar, culpado deus por ter preferido um filho a outro. Começa aí a odisseia do protagonista, vítima do menosprezo divino, condenado a vagar indefinidamente pela terra, ao longo da história do passado e do futuro, em meio a “batalhas de uma guerra infinita” em que o sangue de Abel se perde no sangue de centenas de milhares de vítimas. Caim serve ao exército de Josué, trabalha nas propriedades de Jó, acompanha Abraão e os anjos do senhor até Sodoma, e em cada um desses episódios bíblicos vê multiplicarem-se as mortes, as súplicas, o saldo da humilhação e da injustiça.
 
Saramago transplanta o filho fratricida de Adão e Eva para gerações pós-diluvianas, e a humanidade que se devia supor renovada, limpa da crueldade da descendência de Caim, ao contrário, revela-se igualmente sanguinária. Por tudo o que vê nessas incursões pelo “presente-futuro”, o protagonista vai nutrindo seu pessimismo e sua revolta: “Alegria, perguntou a si mesmo, para caim nunca haverá alegria, caim é o que matou o irmão, caim é o que nasceu para ver o inenarrável, caim é o que odeia deus”.
 
Entre idas e vindas no tempo, já cansado das “costumadas destruições e dos costumadíssimos incêndios”, Caim retorna à terra de Enoch e tem-se aí o capítulo mais belo do livro. Permutando os mitos pela Bíblia, o autor encena, no reencontro dos amantes Lilith e Caim, o reencontro de Penélope e Ulisses. Os movimentos sucedem-se como num jogo de espelhos. Vale a pena citá-los aqui, lado a lado: “(...) depois que Ulisses e Penélope satisfizeram o seu desejo/ de amor, deleitaram-se com palavras, contando tudo um ao outro. / (...) / Ele começou por contar como primeiro venceu os Cícones / e chegou depois à terra fértil dos Lotófagos. / Também tudo o que fez o Ciclope (...)” (Odisseia, Canto XXIII). Em Caim: “Tranquilizados os espíritos, compensados da longa separação dos corpos com juros altíssimos, chegou o momento de pôr o passado em ordem. (...) Então caim contou a lilith o caso de um homem chamado abraão a quem o senhor ordenara que lhe sacrificasse o próprio filho, depois o de uma grande torre com a qual os homens queriam chegar ao céu (...)”.  
 
O ar de gravidade que uma releitura do Antigo Testamento poderia implicar, Saramago subverte-o pelo humor, ou ainda, com um sarcasmo que rompe toda espécie de servilismo diante dos limites do sofrimento humano. Na voz da mulher de Jó, o escritor ataca: “o mais certo é que satã não seja mais que um instrumento do senhor, o encarregado de levar a cabo os trabalhos sujos que deus não pode assinar com seu nome”. Também beiram a caricatura as aparições do senhor na terra, com cetro em punho “como um cacete”, ou “em fato de trabalho”, manifestando-se “em meio de um trovão ensurdecedor e dos correspondentes relâmpagos pirotécnicos”. Impossível evitar o riso no episódio da construção da Arca de Noé, quando Caim aponta um erro nos cálculos de deus usando o princípio de Arquimedes.
 
Fim da viagem pela história dos tempos, no dilúvio se dá a grande revanche de Caim. Não podendo matar a deus, o filho desprezado, como antes assassinou Abel por despeito, agora boicota o projeto de uma nova humanidade. Aquele que havia sido o senhor das guerras, o causador de tantas vítimas, é ele mesmo vitimado, condenado ao abandono, um criador sem criatura que lhe obedeça ou o glorifique, em outras palavras, um deus destituído da violência que os homens costumam imputar à sua vontade.
 
Ninguém percebe que matar em nome de Deus é fazer de Deus um assassino?”, questionava Saramago, três anos atrás, em entrevista ao jornalista Edney Silvestre. Esta mesma pergunta continua soando, irrequieta, nas páginas de Caim. Ateu convicto e, no entanto, constantemente aferrado à ideia de Deus, Saramago admite ter como uma de suas grandes influências o padre Antonio Vieira, cujo Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma bem poderia ter lhe servido de centelha para o Ensaio sobre a cegueira. Sob esse aspecto, o cenário cataclísmico desse romance mostra do que é capaz a espécie humana finalmente livre do imperativo do Decálogo. O próprio escritor, que se diz “empapado de valores cristãos”, assegura que “para fazer um ateu como ele, é necessário um alto grau de religiosidade”. Mas, à parte as vinculações e desavenças do escritor com a religião, que acendem aqui e ali a fogueira dos debates, por vezes ofuscando a própria literatura, cabe pensar no homem, e no entorno que ele modifica à sua passagem, a partir da obra de Saramago. 
 
Outra questão que mereceria um olhar mais aprofundado, tanto da crítica, como do público leitor, consiste não apenas na vasta incidência de temas bíblicos na literatura moderna e contemporânea, mas, em especial, na reincidência da figura de Caim, agora com o relançamento de O Deus de Caim, de Guilherme Dicke, pela editora Letra Selvagem, e As vozes do sótão (ed. Cosac&Naify), de Paulo Rodrigues, que também traz à tona as memórias de um personagem enjeitado, oprimido, moralmente devastado pela falta de amor. Que esse fenômeno propicie uma reflexão sobre o contexto em que tais livros aparecem, hoje, à cena literária, para se avaliar mais suas “significações terrestres” do que suas implicações teológicas. Assim, é provável que a discussão suscitada por Caim, de Saramago, inverta a contento o pressuposto da “provocação pela provocação” e comece a ser considerada sob aquela outra perspectiva que o escritor já assinalava em A viagem do elefante, seu romance anterior: “Quem diria que a moral nem sempre é o que parece e que pode ser moral tanto mais efetiva quanto mais contrária a si mesma se manifeste”.  
 
Mariana Ianelli 
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Sexta-feira, 13.11.09

Crime contra a humanidade

Não ao Desemprego
 
José Saramago
 
A gravíssima crise económica e financeira que está convulsionando o mundo traz-nos a angustiante sensação de que chegámos ao final de uma época sem que se consiga vislumbrar o que e como será o que virá de seguida.
 
Que fazemos nós, que assistimos, impotentes, ao avanço esmagador dos grandes potentados económicos e financeiros, loucos por conquistar mais e mais dinheiro, mais e mais poder, com todos os meios legais ou ilegais ao seu alcance, limpos ou sujos, regulares ou criminais?
 
Podemos deixar a saída da crise nas mãos dos peritos? Não são eles precisamente, os banqueiros, os políticos de máximo nível mundial, os directores das grandes multinacionais, os especuladores, com a cumplicidade dos meios de comunicação social, os que, com a soberba de quem se considera possuidor da última sabedoria, nos mandavam calar quando, nos últimos trinta anos, timidamente protestávamos, dizendo que não sabíamos nada, e por isso nos ridicularizavam? Era o tempo do império absoluto do Mercado, essa entidade presunçosamente auto-reformável e auto-regulável encarregada pelo imutável destino de preparar e defender para sempre e jamais a nossa felicidade pessoal e colectiva, ainda que a realidade se encarregasse de desmenti-lo a cada hora que passava.
 
E agora, quando cada dia aumenta o número de desempregados? Vão acabar por fim os paraísos fiscais e as contas numeradas? Será implacavelmente investigada a origem de gigantescos depósitos bancários, de engenharias financeiras claramente delitivas, de inversões opacas que, em muitos casos, mais não são que massivas lavagens de dinheiro negro, do narcotráfico e outras actividades canalhas? E os expedientes de crise, habilmente preparados para benefício dos conselhos de administração e contra os trabalhadores?
 
Quem resolve o problema dos desempregados, milhões de vítimas da chamada crise, que pela avareza, a maldade ou a estupidez dos poderosos vão continuar desempregados, mal-vivendo temporariamente de míseros subsídios do Estado, enquanto os grandes executivos e administradores de empresas deliberadamente conduzidas à falência gozam de quantias milionárias cobertas por contratos blindados?
 
O que se está a passar é, em todos os aspectos, um crime contra a humanidade e desde esta perspectiva deve ser analisado nos foruns públicos e nas consciências. Não é exagero.
 
Crimes contra a humanidade não são apenas os genocídios, os etnocídios, os campos de morte, as torturas, os assassinatos selectivos, as fomes deliberadamente provocadas, as contaminações massivas, as humilhações como método repressivo da identidade das vítimas. Crime contra a humanidade é também o que os poderes financeiros e económicos, com a cumplicidade efectiva ou tácita de os governos, friamente perpetraram contra milhões de pessoas em todo o mundo, ameaçadas de perder o que lhes resta, a sua casa e as suas poupanças, depois de terem perdido a única e tantas vezes escassa fonte de rendimento, quer dizer, o seu trabalho.
 
Dizer “Não ao Desemprego” é um dever ético, um imperativo moral. Como o é denunciar que esta situação não a geraram os trabalhadores, que não são os empregados os que devem pagar a estultícia e os erros do sistema.
 
Dizer “Não ao Desemprego” é travar o genocídio lento mas implacável a que o sistema condena milhões de pessoas. Sabemos que podemos sair desta crise, sabemos que não pedimos a lua. E sabemos que temos voz para usá-la. Frente à soberba do sistema, invoquemos o nosso direito à crítica e ao nosso protesto. Eles não sabem tudo. Equivocaram-se. Enganaram-nos. Não toleremos ser suas vítimas.
 

José Saramago - Publicado no blog Caderno de Saramago 

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Quarta-feira, 04.11.09

CAIM é bom

 
O romance CAIM de José Saramago é boa literatura e, simplesmente, como uma obra de literatura, é que deve ser lido. Não como um tratado teológico ou uma bula de atentatória interpretação eclesiástica. Como tudo é inventado, biblia e romance, Saramango tem o direito de criar literariamente o que quiser. Nem estará mentindo ou profanando o quer que seja. Estará estimulando muitas perguntas, multiplicadas reflexões e a imaginação liberta, num exercício maravilhoso de inventividade. O seu texto, de luminosidade contemporânea, é pleno de remissões de hiper-texto em linguagem web, magistralmente incrustradas em barroco e resulta cinematograficamente fascinante em sua esgrima de inflexões passado/futuro, sempre o seu presente metafórico.
 
A construção do entrecho circula em volutas que visualmente resultam em puro cinema: há flash-backs, passagens de tempo, verduras luxuriantes, desertos monocromáticos, salteadores obscuros submetidos a efeitos especiais em que as espadas transformam-se magicamente em serpentes coruscantes a escalarem com agilidade braços petrificados, sexo, muito sexo em contraplanos de secretas luzes filtradas, serial-killers em disputas celestiais, querubins disfarçados sob rústicos tecidos encardidos, uma epifania. Um arraso.

Vale a pena. Leia o livro. Você vai se divertir muito.

publicado por ardotempo às 16:17 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 02.11.09

A quem arremessa pedras

O muro do fundamentalismo
 
Inês Pedrosa 
 
«Caim», de José Saramago, é um romance, isto é: uma ficção literária. É, além disso, um bom romance, isto é: uma narrativa de grande beleza que rasga o tecido dos saberes sossegados e ergue um vendaval de perguntas.
 
No lançamento deste romance, no «Escritaria» de Penafiel, evocando o Padre António Vieira, Saramago recordava essa coisa só aparentemente simples: escrever é «conhecer o sítio das palavras».
 
A sua disposição exacta na frase. Escrever é escolher, e a escolha pressupõe conhecimento das múltiplas possibilidades em jogo. Saramago debruçou-se sobre a Bíblia, o livro que determinou e determina ainda a visão do mundo que nos enforma, e interrogou as escolhas de deus – assim, com a mesma letra minúscula que usa para cada membro da humanidade por ele criada, porque é preciso abandonarmos a maiúscula da reverência quando queremos interrogar genuinamente. E viu-se mergulhado num dilúvio de vozes escandalizadas – algumas, poucas, de forma transparente, e a maior parte delas disfarçando o escândalo nas trincheiras da análise intelectual de segundo ou terceiro grau.
 
Explicam-nos essas vozes doutas, esforçando-se por conter a ira nos infolios da erudição (às vezes mal; salta-lhes o tom), que a Bíblia não pode ser lida de forma literal: tudo o que lá está é para ser interpretado, deduz-se que pelos doutores que reclamam a interpretação. Talvez por isso, de facto, a Igreja Católica nunca tenha feito grande esforço para publicitar o Velho Testamento, antes pelo contrário: nos meus dez anos de catequese consecutiva só me mandavam ler o Novo Testamento, e por partes. Quando, em 1991, Saramago publicou « O Evangelho Segundo Jesus Cristo», a polémica foi alta, mas o escândalo circunscreveu-se às instâncias religiosas propriamente ditas – e a um patético senhor do PSD, então com poder bastante para impedir que a obra fosse considerada num prémio europeu. Agora apareceu outro senhor do PSD, felizmente sem poder, a pôr-se em bicos dos pés para aproveitar a onda.
 
O escritor leu e releu a Bíblia e verificou uma evidência: que ela é um «manual de maus costumes, um catálogo de crueldades». Aliás, Saramago não foi, nem pretende ser, a primeira alma a ter feito essa verificação: sim, a Bíblia é também, entre outras coisas, esse catálogo.
 
Há cerca de dois anos, Christopher Hitchens publicou « Deus não é Grande – como as religiões envenenam tudo» e Fernando Savater publicou «A Vida Eterna», dois excelentes livros sobre a questão da maldade divina – ou de como os homens inventaram deus para se matarem uns aos outros. Na época, não vi nenhum dos que agora se assanham contra Saramago contestar as teorias idênticas de Hitchens ou Savater. É curioso que um romance, mesmo antes de ser lido, cause um terramoto que nenhum destes ensaios causou.
 
Uma vez um padre irritou-se comigo porque eu me recusei a ler, num casamento, aquela célebre carta de São Paulo que começa por dizer que o homem é a cabeça da mulher como Cristo a cabeça da Igreja, e exigi ler um texto do Génesis que a ele lhe parecia «muito carnal». Necessitado de exegese e enquadramento, portanto. Sucede que numa sociedade laica e livre ninguém tem que se fixar às leituras alheias. A acusação, repetida por intelectuais ( e aparentados) de diversos quadrantes, de que, ao escolher a letra da Bíblia, Saramago manifesta um espírito fundamentalista igual ao dos que, em nome da sua Bíblia ( no caso, o Corão, que aliás tem muitos enredos e personagens em comum com a Bíblia), se explodem a si mesmos e aos outros, não tem razão de ser. Há uma diferença radical entre escrever e matar, perguntar e bombardear, exercer a liberdade e proibi-la. Estas mistificações têm um objectivo: o de rasurar como terroristas, loucos ou ignorantes os que pensam de maneira diferente. Isso, sim, é fundamentalismo. Verifico, com preocupação, que esse fundamentalismo permanece muito aceso em Portugal.
 
Saramago tem o direito de ler na Bíblia o que lá está escrito. Cada palavra existe na frase para dizer alguma coisa – é aquela palavra e não outra que lá está. Todo o livro digno desse nome traça um pacto sagrado com a justeza de cada palavra. Escreveu Walter Benjamin: « A arte de narrar tende a acabar porque o lado épico da verdade – a sabedoria – está a morrer». A obra de Saramago prova que esta morte não está iminente.
 
E conseguiu já um feito notável: trazer para o horário nobre da televisão o debate sobre os fundamentos da nossa civilização, o sentido da vida e da morte – em vez da politiquice e do futebol que são os únicos debates constantes neste nosso mundo de crentes.

Inês Pedrosa

 

Publicado em Única / Expresso / Fundação José Saramago

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Sábado, 17.10.09

"A morte é a inventora de Deus"

"La muerte es la inventora de Dios"
 
Francesc Relea, entrevista José Saramago
 
"Hay quien me niega el derecho de hablar de Dios, porque no creo. Y yo digo que tengo todo el derecho del mundo. Quiero hablar de Dios porque es un problema que afecta a toda la humanidad".
 
José Saramago (Azinhaga, 1922) ha vuelto a escribir de un tema que le inquieta. Lo ha hecho esta vez a través de una figura bíblica con mala prensa. Caín (Alfaguara), última novela del premio Nobel de Literatura de 1998, tiene grandes posibilidades de levantar las iras de algunos sectores católicos. Nada nuevo para el escritor portugués, que en 1991 generó una polémica mayúscula con El Evangelio según Jesucristo. En aquella ocasión, el Gobierno luso se sumó a la campaña contra Saramago, al vetar su nombre como candidato al Premio Literario Europeo. El primer ministro era el conservador Aníbal Cavaco Silva. Hoy es el presidente de la República. El veto indignó al escritor, que decidió autoexiliarse en Lanzarote, donde reside con su esposa, Pilar del Río, desde entonces.
 
¿Se puede repetir la historia ahora con Caín? "No. Ya metieron una vez la pata. No repetirán la experiencia, a no ser que quieran caer en el ridículo", dice Saramago, con aparente convicción. La entrevista tiene lugar en su casa lanzaroteña, refugio del escritor, a la que acuden amigos de todos los rincones. Dentro de unas horas tiene prevista la llegada de Mario Vargas Llosa. "El Evangelio... provocó las reacciones más violentas en sectores católicos de Italia. Me llamaron provocador", explica.
 
"En mi opinión, los católicos no tienen motivos para enojarse con Caín, porque no tiene nada que ver con ellos. El libro habla del Antiguo Testamento, y me parece que los católicos no leen la Biblia ni el Antiguo Testamento. Tienen el Nuevo Testamento, que es un texto simpático con parábolas bonitas. Creo que Caín sentará mal a los judíos, porque la Torá es su libro. Me llamarán de nuevo antisemita. No me importa. He escrito el libro que quería y creo que es una buena obra literaria". Una obra que reescribe libremente una historia, la Biblia, que según el autor no ocurrió. Y para ello usa elementos de esta historia, Babel, Jericó, Sodoma y Gomorra, Moisés en el Sinaí. Entonces ¿qué ha escrito? ¿Una fantasía? "Sí, pero en mis fantasías hay mucha lógica, y esto ocurre en muchos de mis libros. Le propongo al lector un punto de partida que puede parecer absurdo. Pero después, el desarrollo es siempre de una lógica impecable". Acaso pretende hacerle la competencia a la Biblia. "De ninguna manera. No pretendo que el lector crea haber visto la luz después de leer el libro. Sólo propongo que piense en sus propias creencias y qué espera de ellas. ¿La vida eterna? ¿La condena al infierno?".
 
En la controvertida novela del Evangelio, Saramago humanizó la figura de Jesucristo. Algunos lectores de su último libro apuntan que ahora humaniza la figura de Caín. Pone cara de póquer, medita un instante y hace la siguiente reflexión: "Lo que pasa es que Jesús humaniza la figura de Dios. Jesús suavizó y matizó el Dios del Antiguo Testamento. Nunca tuve la conciencia de que estaba humanizando a Caín, pero, claro, es el fratricida, el asesino de su hermano Abel. En castellano hay la palabra cainita, que habla por sí sola. Siempre he pensado que la historia de Caín es una historia que ha sido mal contada en la Biblia. Como la de David y Goliat. Goliat nunca ha podido acercarse a David, David venció porque tenía una onda, que era la pistola de la época".
 
De dónde viene esa obsesión por escribir de Dios, pregunto, porque el tema de fondo es Dios, aunque ahora sea a través de la figura de Caín. "Puede parecer extraño", dice. "Nunca tuve educación religiosa. Ni en el colegio, ni en casa. No tuve crisis religiosas en la adolescencia ni cuando uno empieza a preguntarse sobre la muerte. Sinceramente, creo que la muerte es la inventora de Dios. Si fuéramos inmortales no tendríamos ningún motivo para inventar un Dios. Para qué. Nunca lo conoceríamos". El ateísmo del autor tiene sus matices. "Ateo es sólo una palabra. En el fondo, estoy empapado de valores cristianos, y es verdad que algunos de estos valores coinciden con valores de humanismo. Los acepto. Ahora bien, todo lo que tiene que ver con la creencia en un Dios superior y eterno, que un día me condenará, me parece una chorrada".
 
Las páginas de Caín son implacables con Dios. "No", replica. "Soy implacable con la especie humana, que ha inventado el Señor". Bueno, pero el libro dice, entre otras cosas, que Dios no es de fiar, que es capaz de pactar con Satán, que está rematadamente loco. Le trata de rencoroso, maligno, corrupto... Le acusa de despreciar la Justicia. Y así hasta el final, donde afirma que Dios acaba por arrepentirse de haber creado el hombre. "Sí, por eso, según la Biblia, ordenó el diluvio y exterminó a la humanidad, a excepción de Noé y su familia. El libro es una lucha entre el hombre y Dios. Con Caín, que no era precisamente un santo sino todo lo contrario, pero en el fondo más limpio de mente y más transparente".
 
Mientras escribía, Saramago tropezó con un problema narrativo que parecía no tener solución: el paso de Caín por el tiempo. ¿Qué hacer? "Inventé, no el futuro ni el pasado, sino lo que llamo otro presente. De repente, Caín se encuentra en otro presente, no importa que sea pasado o futuro. Creo que conseguí conservar el humor en un tema tan complicado. El libro es divertido y profundamente serio". No es una ironía premeditada, asegura. Nunca premedita nada. La historia marca el camino de cómo tiene que ser narrada. "Soy una mano obediente que intenta no hacer nada en contra de la lógica y de lo que estoy escribiendo. Que acepta lo que quiere la propia historia. La ironía es una constante en todos mis libros. El humor aparece por primera vez en El viaje del elefante, y se repite en Caín. No fue una decisión consciente, simplemente ocurrió así".
 
La novela termina con una discusión, cargada de reproches mutuos, en el umbral de la gran puerta del arca de Noé, entre Dios y Caín: "Caín eres el malvado, el infame asesino de su propio hermano. No tan malvado e infame como tú, acuérdate de los niños de Sodoma". Es la eterna discusión entre el hombre y Dios, precisa el escritor. Una discusión sin salida. "Ni él nos entiende a nosotros, ni nosotros le entendemos a él. Son dos entidades que no se han entendido, no se están entendiendo y no se entenderán".
 
Saramago lo escribió en cuatro meses, la mitad del tiempo invertido en su anterior libro, El viaje del elefante. En ambos casos, reconoce, tenía prisa por escribir, en una carrera contra el tiempo. No podía bajar el ritmo. "Ahora ya puedo darme el lujo de reducir la velocidad. Cumpliré pronto 87 años. La vida es como una vela que va ardiendo, cuando llega al final lanza una llama más fuerte antes de extinguirse. Creo que estoy en el periodo de la última llamarada, antes de la extinción. Lo digo sin dramatismo. Tengo muy claro que no voy a vivir mucho más. Ahora estoy en una fase en la que sí creo que puedo hacer un trabajo y lo puedo hacer bien, quiero hacerlo. Después acabará todo y quedarán mis libros, que pienso seguirán siendo leídos. Espero, si la salud aguanta, terminar la novela que tengo entre manos". No revelará nada del próximo libro. Tan sólo un detalle: ya tiene decidida la última frase. No habrá sorpresas ni cambios sobre la marcha. No suele haberlos en su escritura. "Creo que soy un escritor lógico".
 
Pilar del Río va y viene por la casa, como siguiendo en la distancia la conversación. Saramago habla con cierta parsimonia, pero no da muestras de cansancio. Pasamos de la literatura a la política, su otra gran pasión. Le gusta hablar de política. Toma carrerilla y no para. Las primeras críticas son para el Partido Socialista (PS), que ha gobernado en Portugal los últimos cuatro años y medio con mayoría absoluta, y que seguirá en el poder después de ganar las elecciones del pasado 27 de septiembre. "El Gobierno socialista ha hecho políticas de derecha y el problema es que no hay ningún palacio de invierno para asaltar. Lo peor de todo, y esta crisis lo ha demostrado, es que la izquierda no tiene ideas. Ningún partido de izquierda, más o menos roja, más o menos rosa, ha presentado una sola idea para combatir la crisis. Y con los sindicatos ha ocurrido lo mismo. Su fuerza está dormida, domesticada. Me parece que Marx nunca ha tenido tanta razón como ahora. Pero eso no es suficiente. Haría falta una reflexión profunda, partiendo de Marx".
 
Es sabido que el premio Nobel portugués es militante del Partido Comunista desde los años sesenta. Un PC que no tiene parangón en la Unión Europea, de larga tradición estalinista, que sigue llamándose comunista, que conserva la iconografía bolchevique, hoz y martillo, bandera roja, que sigue soñando en épocas pasadas, probablemente más próximas a lo que representaba la antigua Unión Soviética, y que, contra viento y marea, tiene un electorado inquebrantable de medio millón de votos, que representa alrededor del 8%. El escritor admite que "es muy posible" que el PCP viva anclado en el pasado. "Lo que pasa es que tenemos una herencia, de la que no puedo despegarme. Y es posible que esta herencia no tenga mucho que ver con la realidad actual. Pero ¿por qué la realidad actual tiene razón?". Su militancia comunista tiene, probablemente, más de sentimentalismo que de convicción. "Los sentimientos cuentan. No me reconocería en ningún otro partido. Puede que sea mi culpa, y que esté enquistado en ideas del pasado, pero yo también tengo mi propio pasado.
 
Francamente, no sabría convivir en otro partido si mañana dejara el PCP. No me pasa por la cabeza". Entonces ¿por qué sigue en el Partido? "Por respeto a mí mismo. He sido muy crítico con mi partido. Dije en una ocasión que nunca dejaría el partido, con una condición: que el partido no me deje a mí. Dejarme a mí sería un cambio radical de rumbo. No creo que eso ocurra". Tuvo una incursión, fugaz, en la política activa, cuando fue presidente de la asamblea municipal del Ayuntamiento de Lisboa. Duró cuatro meses y acabó enojado hasta con su propio partido. No le quedaron ganas de repetir la experiencia, aunque en alguna ocasión aceptó ir en las listas electorales en lugares no elegibles. "Creo que sería un diputado muy bueno", dice sin cortarse. "Siempre he dicho lo que he querido, y también es cierto que la dirección del partido nunca ha hecho nada para impedírmelo".
 
Saramago hace tiempo que no sube a su escritorio, en el piso superior de la casa, porque la estrecha escalera entraña un riesgo demasiado alto. El estudio tiene una hermosa vista con el Atlántico al fondo, la mesa de trabajo, anaqueles con los libros más queridos, pinturas, recuerdos. Ahora escribe en la biblioteca construida en un edificio anexo a la casa, que alberga su colección particular, convenientemente catalogada, a la espera de su traslado a la Casa dos Bicos, un edificio emblemático del gótico lisboeta, construido en 1523, que será la sede de la Fundación José Saramago, gracias a la colaboración del Ayuntamiento de la capital. "La fundación es cosa de Pilar", dice el escritor. La compañera inseparable, traductora de sus últimos libros, es el motor del engranaje. "No sólo el motor, también las ruedas". En la recta final de su vida, contempla una vuelta, tal vez parcial, a su querida Lisboa, donde tiene una casa. "Ahora nos vamos a Italia y luego nos quedaremos unas semanas en Lisboa. Allí siento que estoy en casa. Nunca pensé que viviría en una isla en medio del Atlántico, a 100 kilómetros de la costa africana". Todo parece a punto para el regreso.
 

Francesc Relea - Publicado em Babelia - El País 

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Quinta-feira, 15.10.09

caim, de josé saramago - 1º parágrafo

 

"Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de rugidos e mugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama."

 

[in Caim, Caminho, 2009]

 

Publicado por José Mário Silva - BlogBibliotecário de Babel

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Terça-feira, 01.09.09

Obrigado, José Saramago

 Exit Saramago

 

José Saramago despediu-se hoje da blogosfera, embora não coloque de parte um regresso pontual ao seu Caderno, caso as circunstâncias o justifiquem. É uma pena. Embora não fosse um blogger no sentido que normalmente lhe atribuímos (pelos motivos que enumerei aqui), era uma voz singular e muitas vezes desarmante, a voz de um Nobel que não precisa, objectivamente, disto para nada mas que teve a generosidade e a humildade de se expor diariamente (a si, à sua escrita, às suas ideias) diante do mundo infinitamente aberto, mas por isso também devorador e implacável, da Internet.

 

Por tudo o que nos ofereceu no Caderno, mas sobretudo pelo gesto de partilha, insisto em dizer: obrigado, José Saramago. Saber que a ausência online reverte a favor da escrita de um novo livro não deixa de ser um consolo.

 

José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel

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Blogs são como estrelas

Uma pena, o fim do blog de José Saramago
 
José Saramago despediu-se hoje de seu blog. Uma pena, vamos sentir sua falta, a falta de seus textos imponentes e lúcidos. Os blogs são assim, de repente deixam de existir. São maravilhosos e frágeis, os blogs. Não têm apoios, não têm sustentabilidade econômica, quase sempre não tem nenhuma divulgação pelas plataformas que os abrigam. São luz e conhecimento, são convívios secretos entre os que os fazem e os que os consultam diariamente. Como a vida, podem extinguir-se a qualquer momento, pode nem haver o pretexto de que se vai escrever um livro. Isso é para quem escreve bem, já ganhou um Prêmio Nobel e recolhe o tempo restante para sua própria tarefa singular. Escrever livros. Blogs podem parar de repente, no dia 31 de agosto, no dia 12 de outubro, 17 de outubro ou 31 de outubro. Basta um gesto, uma abdicação, um piscar de olhos, um alçar de sobrolhos. A vida é curta, os blogs mais curtos ainda. Pena aos que ficam, aos que procuram e consultam blogs em busca de sentido para objetos e gestos no contexto da vida e da escrita, por esse fazer despreendido e audaz. 
 
Sentiremos sua falta no blog, José Saramago, até o dia em que resolvamos parar também. Nesse dia, o do pequeno suspiro do blog, a sua paralisação será sem notícia nem testemunhas porque os comentários são tão poucos que implicam em fantasmas inaudíveis de promessas desarticuladas. Talvez, de fato, seja melhor apenas ler alguns livros. 
 
Despedida
 
José Saramago
 
Diz o refrão que não há bem que sempre dure nem mal que ature, o que vem assentar como uma luva no trabalho de escrita que acaba aqui e em quem o fez. Algo de bom se encontrará neste textos, e por eles, sem vaidade, me felicito, algo de mal terei feito noutros e por esse defeito me desculpo, mas só por não tê-los feito melhor, que diferentes, com perdão, não poderiam eles ser. Às despedidas sempre conveio que fossem breves. Não é isto uma ária de ópera para lhe meter agora um interminável adio, adio. Adeus, portanto. Até outro dia? Sinceramente, não creio. Comecei outro livro e quero dedicar-lhe todo o meu tempo. Já se verá porquê, se tudo correr bem. Entretanto, terão aí o “Caim”.
 
P. S – Pensando melhor, não há que ser tão radical. Se alguma vez sentir necessidade de comentar ou opinar sobre algo, virei bater à porta do Caderno, que é o lugar onde mais a gosto poderei expressar-me.
publicado por ardotempo às 04:58 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Sábado, 29.08.09

Vertente

A junta do motor
 
José Saramago
 
 
 
Desde há mais de sessenta anos que eu deveria saber conduzir um automóvel. Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas máquinas de trabalho e de passeio, desmontava e montava motores, limpava carburadores, afinava válvulas, investigava diferenciais e caixas de mudanças, instalava calços de travões, remendava câmaras de ar furadas, enfim, sob a precária protecção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia das nódoas de óleo, efectuei com razoável eficiência quase todas as operações por que é obrigado a passar um automóvel ou um camião a partir do momento em que entra numa oficina para recuperar a saúde, tanto a mecânica como a eléctrica. Só faltava que me sentasse um dia atrás do volante a fim de receber do instrutor as lições práticas que deveriam culminar no exame e na sonhada aprovação que me permitiria ingressar na ordem social cada vez mais numerosa dos automobilistas encartados.
 
Contudo, esse dia maravilhoso nunca chegou. Não são apenas os traumas infantis que condicionam e influem a idade adulta, também os que se sofrem na adolescência podem vir a ter consequências desastrosas e, como no presente caso sucedeu, determinar de maneira radicalmente negativa a futura relação do traumatizado com algo tão quotidiano e banal como é um veículo automóvel. Tenho sólidas razões para crer que sou o deplorável resultado de um desses traumas. Mais ainda: por muito paradoxal que a afirmação vá parecer a quem das íntimas conexões entre as causas e os efeitos somente tiver ideias elementares, se nos meu verdes anos não tivesse trabalhado como serralheiro-mecânico numa oficina de automóveis, hoje, provavelmente, saberia conduzir um carro, seria um orgulhoso transportador em lugar de um humilde transportado.
 
Além das operações que comecei por referir, e como parte obrigatória de algumas delas, também substituía as juntas dos motores, essas finas placas forradas de folha de cobre sem as quais seria impossível evitar fugas da mistura gasosa de combustível e ar entre a cabeça do motor e o bloco dos cilindros. (Se a linguagem que estou a usar parecer ridiculamente arcaica aos entendidos em automóveis modernos, mais governados por computadores do que pela cabeça de quem os conduz, a culpa não é minha: falo do que conheci, não do que desconheço, e muita sorte que não me ponha aqui a descrever a estrutura das rodas dos carros de bois e a maneira de atrelar estes animais ao jugo. É matéria igualmente arcaica em que também tive alguma competência).
 
Ora, um dia, depois de ter acabado o trabalho e colocado a junta no seu sítio, depois de ter apertado com a força dos meus dezanove anos as porcas que sujeitavam a cabeça do motor ao bloco, dispus-me a realizar a última fase da operação, isto é, encher de água o radiador. Desenrosquei pois o tampão e comecei a deitar para a boca do radiador a água com que tinha enchido o velho regador que para esse e outros efeitos havia na oficina. Um radiador é um depósito, tem uma capacidade limitada e não aceita nem um mililitro mais do que a quantidade de água que lá caiba. Água que continue a deitar-se-lhe é água que transborda.
 
Algo de estranho, porém, se estava a passar com aquele radiador, a água entrava, entrava, e por mais água que lhe metesse não a via subir dançando até à boca, que seria o sinal de estar acabado o enchimento. A água que já vertera por aquela insaciável garganta abaixo teria bastado para satisfazer dois ou três radiadores de camião, e era como se nada. Às vezes penso que, sessenta e muitos anos passados, ainda hoje estaria a tentar encher aquele tonel das Danaides se em certa altura não me tivesse apercebido de um rumor de água a cair, como se dentro da oficina houvesse uma pequena cascata. Fui ver.
 
Pelo tubo de escape do carro saía um avultado jorro de água que, pouco a pouco, diante dos meus olhos estupefactos, foi diminuindo de caudal até ficar reduzido a umas derradeiras e melancólicas gotas. Que se passara? Tinha colocado mal a junta, tapara entre a cabeça do motor e o bloco o que deveria ter aberto, e, muito mais grave do que isso, facilitara passagens e comunicações onde não deveria havê-las. Nunca cheguei a saber que voltas teve de dar a pobre água para ir sair ao tubo de escape. Nem quero que mo digam agora. Para vergonha bastou. Possivelmente terá sido nesse dia que comecei a pensar em tornar-me escritor. É um ofício em que somos ao mesmo tempo motor, água, volante, mudanças de velocidade e tubo de escape. Talvez, afinal, o trauma tenha valido a pena.
 
 

© José Saramago - Publicado no blog Caderno de Saramago

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Quinta-feira, 27.08.09

Saramago sobe ao ringue

 
Saramago carga contra Dios y salva a Caín
 
José Saramago vuelve a ocuparse de la religión en Caín, su nueva novela, que la editorial Alfaguara publicará previsiblemente a mediados de octubre, en la que redime a su protagonista del asesinato de Abel y señala a Dios "como el autor intelectual al despreciar el sacrificio que Caín le había ofrecido".
 
Caín viajará a la Feria del Libro de Frankfurt el próximo octubre y a finales de ese mes estará en las librerías de Portugal, América Latina y España, donde ver la luz también en catalán. Será en Lisboa, en su presentación mundial, donde el Nobel hable por primera vez de su nuevo libro, pero desde su casa de Lanzarote, donde pasa el verano y ya prepara las maletas para volver a Lisboa, ha explicado a través del correo electrónico que lo que ha querido decir con Caín es que "Dios no es de fiar. ¿Qué diablos de Dios es éste que, para enaltecer a Abel, desprecia a Caín?".
 
Casi 20 años después de su discutido libro El evangelio según Jesucristo, que fue vetado por el Gobierno portugués para competir por el Premio Europeo de Literatura, el Nobel luso hace un irreverente, irónico y mordaz recorrido por diversos pasajes de la Biblia pero no teme que vuelvan a crucificarle. "Algunos tal vez lo harán - explica Saramago -, pero el espectáculo será menos interesante. El Dios de los cristianos no es ese Jehová. Es más, los católicos no leen el Antiguo Testamento. Si los judíos reaccionan no me sorprenderé. Ya estoy habituado. Pero me resulta difícil comprender cómo el pueblo judío ha hecho del Antiguo Testamento su libro sagrado. Eso es un chorro de absurdos que un hombre solo sería incapaz de inventar. Fueron necesarias generaciones y generaciones para producir ese engendro".
 
José Saramago no considera este libro su particular y definitivo ajuste de cuentas con Dios -"las cuentas con Dios no son definitivas", dice -, pero sí con los hombres que lo inventaron.
 
"Dios, el demonio, el bien, el mal, todo eso está en nuestra cabeza, no en el cielo o en el infierno, que también inventamos. No nos damos cuenta de que, habiendo inventado a Dios, inmediatamente nos esclavizamos a él", explica el autor. Niega que la cercanía de la muerte, hace ahora un año debido a su enfermedad, le hiciera pensar más en Dios. "Tengo asumido que Dios no existe, por tanto no tuve que llamarlo en la gravísima situación en que me encontraba. Y si lo llamara, si de pronto él apareciera, ¿qué tendría que decirle o pedirle, que me prolongase la vida?".
 
Y continúa Saramago: "Moriremos cuando tengamos que morir. A mí me salvaron los médicos, me salvó Pilar (su esposa y traductora), me salvó el excelente corazón que tengo, a pesar de la edad. Lo demás es literatura, y de la peor".
 
Hace un año, el escritor sorprendió a sus lectores por la ironía y el humor que destilan las páginas de El viaje del elefante (Alfaguara) y que ahora vuelve a con Caín. Para él es un misterio. Y reflexiona: "No fue deliberado ni premeditado, la ironía y el humor aparecen en las primeras líneas de ambos libros. Podía haberlo contrariado e imprimirle un tono solemne a la narrativa, pero lo que está me vino ofrecido en una bandeja de plata, sería una estupidez rechazarlo".
 

El escritor empezó a pensar en Caín hace muchos años, pero se puso a escribirlo en diciembre de 2008 y lo terminó en menos de cuatro meses. "Estaba en una especie de trance. Nunca me había sucedido, por lo menos con esta intensidad, con esta fuerza", rememora. Saramago, que una vez escribió que "somos cuentos de cuentos contando cuentos, nada" y así sigue viéndose, escribe más y más rápido que nunca (tres libros en un año), quizás como la mejor manera de seguir vivo. "Es verdad. Tal vez la analogía perfecta sea la de la vela que lanza una llama más alta en el momento en que va a apagarse. De todos modos, no se preocupen, no pienso apagarme tan pronto", sentencia.

 

En su blog (blog.josesaramago.org ) aparece hoy el anuncio de la nueva novela, una suerte de tráiler del libro y una carta de la presidenta de la Fundación Saramago, Pilar del Río, en la que anuncia a los lectores del Nobel que este Caín no les dejará indiferentes. 

 

 

Publicado em El País

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Sábado, 08.08.09

Para o Dia dos Pais...

A sombra do pai 
 
José Saramago
 
Mikhail Bahktine escreveu na sua Estética e Teoria do Romance: «O objecto principal do género romanesco, aquele que o “especifica”, aquele que cria a sua originalidade estilística, é o homem que fala e a sua palavra». Creio que raramente uma asserção de âmbito geral como esta é terá sido tão exacta como no caso humano e literário de Franz Kafka. Desrespeitando certos teóricos que, não destituídos de razão, se têm insurgido contra a tendência “romântica” de ir procurar à existência de um escritor os sinais da passagem do vivido para o escrito, o que, supostamente, seria a final explicação da obra, Kafka não esconde em nenhum momento (e parece fazer mesmo questão de que se note) o quadro de factores que determinaram a sua dramática vida e, em consequência, o seu trabalho de escritor: o conflito com o pai, o desentendimento com a comunidade judaica, a impossibilidade de deixar a vida celibatária pelo casamento, a enfermidade.
 
Penso que o primeiro daqueles factores, isto é, o antagonismo nunca superado que opôs o pai ao filho e o filho ao pai, é o que constitui a trave mestra de toda a obra kafkiana, dele derivando, como os ramos de uma árvore derivam do tronco principal, o profundo desassossego íntimo que o levou à deriva metafísica, à visão de um mundo agonizando pelo absurdo, à mistificação da consciência.
 
A primeira referência a O Processo encontra-se nos Diários, foi escrita em 29 de Julho de 1914 (a guerra desencadeara-se no dia anterior) e começa com as seguintes palavras. “Uma noite, Josef K…, filho de um rico comerciante, depois de uma grande discussão que tinha tido com o pai…”. Sabemos que não é assim que o romance irá principiar, mas o nome da personagem principal – Josef K… – já ficou anunciado, tal como em três rápidas linhas de A Metamorfose, escrito quase dois anos antes, já se anunciava o que viria a ser o núcleo temático central de O Processo. Quando, transformado da noite para o dia, sem qualquer explicação do narrador, num bicharoco nojento, misto de escaravelho e de barata, se queixa dos sofrimentos imerecidos que caem sobre o viajante de comércio em geral e sobre ele próprio em particular, Gregorio Samsa expressa-se de uma maneira que não deixa margem para dúvidas: “muitas vezes é vítima de uma simples murmuração, de um acaso, de uma reclamação gratuita, e é-lhe absolutamente impossível defender-se, uma vez que nem sequer sabe de que o acusam”. Todo O Processo está contido nestas palavras.
 
É certo que o pai, “rico comerciante”, desapareceu da história, que a mãe só é mencionada em dois dos capítulos inacabados, e mesmo assim fugazmente e sem caridade filial, mas não me parece um excesso temerário, salvo se estou demasiado equivocado sobre as intenções do autor Kafka, imaginar que a omnipotente e ameaçadora autoridade paterna terá sido, pela estratégia da ficção, transferida para as alturas inacessíveis da Lei Última, essa que, sem precisar de enunciar uma culpa concreta recolhida nos códigos, será sempre implacável na aplicação do castigo. O angustiante e ao mesmo tempo grotesco episódio da agressão executada pelo pai de Gregorio Samsa para expulsar o filho da sala familiar, atirando-lhe com maçãs até que uma delas se lhe vai incrustar na carapaça, descreve uma agonia sem nome, a morte de qualquer esperança de comunicação.
 
Poucas páginas antes, o escaravelho Gregório Samsa ainda havia articulado penosamente as últimas palavras que a sua boca de insecto fora capaz de pronunciar: “Mãe, mãe”, Depois, como numa primeira morte, entrou na mudez de um silêncio voluntário, senão obrigado pela sua irremediável animalidade, como quem teve de resignar-se definitivamente a não ter pai, mãe e irmã no mundo das baratas. Quando por fim a criada varrer para o lixo a carcaça ressequida em que Gregório Samsa terminará transformado, a sua ausência, daí em diante, só servirá para confirmar o esquecimento a que os seus já o tinham votado. Numa carta de 28 de Agosto de 1913, Kafka irá escrever: “Vivo no meio da minha família, entre as melhores e mais amorosas pessoas que se pode imaginar, como alguém mais estranho que um estranho. Com a minha mãe, nos últimos anos, não falei, em média, mais que vinte palavras por dia, com o meu pai jamais troquei mais que as palavras de saudação”. Será preciso estar muito desatento à leitura para não perceber a dolorosa e amarga ironia contida nas próprias palavras (“Entre as melhores e mais amorosas pessoas que se pode imaginar”) que parecem estar a negá-la. Desatenção igual, creio, seria não atribuir importância especial ao facto de Kafka haver proposto ao seu editor, em 4 de Abril de 1913, que os relatos O Fogueiro (primeiro capítulo do romance América), A Metamorfose e A Sentença fossem reunidos num único volume com o título de Os Filhos (o que, aliás, só muito recentemente, em 1989, viria a suceder).
 
Em O Fogueiro, “o filho” é expulso pelos pais por ter ofendido a honra da família ao engravidar uma criada, em A Sentença “o filho” é condenado pelo pai a morrer por afogamento, em A Metamorfose “o filho” deixou simplesmente de existir, o seu lugar foi tomado por um insecto…
 
Mais do que a Carta ao Pai, escrita em Novembro de 1919, mas que nunca viria a ser entregue ao destinatário, são estes relatos, segundo entendo, e em particular A Sentença e A Metamorfose, que, precisamente por serem transposições literárias em que o jogo de mostrar e esconder funciona como um espelho de ambiguidades e reversos, nos oferecem com mais precisão a dimensão da ferida incurável que o conflito com o pai abriu no espírito de Franz Kafka. A Carta assume, por assim dizer, a forma e o tom de um libelo acusatório, propõe-se como um ajuste de contas final, é um balanço entre o deve e o haver de duas existências enfrentadas, de duas mútuas repugnâncias, pelo que não se pode rejeitar a hipótese de que se encontrem nela exageros e deformações dos factos reais, sobretudo quando Kafka, no final do escrito, passa subitamente a usar a voz do pai para se acusar a si mesmo
 
Em O Processo, Kafka pôde desfazer-se da figura paterna, objectivamente considerada, mas não da sua lei. E tal como em A Sentença o filho se suicida porque assim o tinha determinado a lei do pai, em O Processo é o próprio acusado Josef K… que acabará por conduzir os seus algozes ao lugar onde será assassinado e que, nos últimos instantes, quando a morte já se vem acercando, ainda dará por si a pensar, como um derradeiro remorso, que não tinha sabido desempenhar o seu papel até ao fim, que não tinha conseguido poupar trabalho às autoridades… Isto é, ao Pai.
 
© José Saramago - Publicado no Blog Caderno de Saramago 
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Sexta-feira, 07.08.09

Borboletas amarelas

Gabo
 
José Saramago
 
Os escritores dividem-se (imaginando que aceitem ser assim divididos…) em dois grupos: o mais reduzido, daqueles que foram capazes de rasgar à literatura novos caminhos, o mais numeroso, o dos que vão atrás e se servem desses caminhos para a sua própria viagem. É assim desde o princípio do planeta e a (legítima?) vaidade dos autores nada pode contra as claridades da evidência.
 
 
Gabriel García Márquez usou o seu engenho para abrir e consolidar a estrada do depois mal chamado “realismo mágico” por onde logo avançaram multidões de seguidores e, como sempre acontece, os detractores de turno. O primeiro livro seu que me veio às mãos foi Cem Anos de Solidão e o choque que me causou foi tal que tive de parar de ler ao fim de cinquenta páginas. Necessitava pôr alguma ordem na cabeça, alguma disciplina no coração, e, sobretudo, aprender a manejar a bússola com que tinha a esperança de orientar-me nas veredas do mundo novo que se apresentava aos meus olhos. Na minha vida de leitor foram pouquíssimas as ocasiões em que uma experiência como esta se produziu. Se a palavra traumatismo pudesse ter um significado positivo, de bom grado a aplicaria ao caso. Mas, já que foi escrita, aí a deixo ficar. Espero que se entenda.
 
© José Saramago - Publicado no blog Caderno de Saramago
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Domingo, 02.08.09

Pilar e José

Pilar del Rio e José Saramago

 

 

 

União Ibérica - Veja o vídeo 

publicado por ardotempo às 17:54 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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