Nos campos da angústia
Uma estreia com força e voz própria
Mariana Ianelli
Escritor avesso a filiações, Lúcio Cardoso dizia acreditar apenas “no romance feito com sangue, e não com o cérebro unicamente, ou o caderninho de notas, no que foi criado com as vísceras, os ossos, o corpo inteiro, o desespero e a alma doente do seu autor”. A citação é mais que oportuna para falar do recém-lançado “Rasteira no campo de caniços” (ed. 7Letras), de Narjara Medeiros.
Nascida em Rondônia em 1983, Narjara estudou filosofia e botânica. Com o subtítulo “O delírio dos galos enforcados”, seu primeiro livro reúne sete contos de uma singularidade que, embora deixe entrever num primeiro momento a presença de elementos mágicos, ou do absurdo propriamente dito, descrevê-lo por meio de tais comparações seria tão insuficiente quanto dizer de “A luz no subsolo” - para tomar mais uma vez o exemplo de Lúcio Cardoso - que é um livro onde predominam os matizes psicológicos. O paralelo aqui se justifica na desmedida da angústia humana. É um “medo sabe-se-lá-do-quê” envolvendo os personagens em uma existência que não convém afrontar com o pensamento, porque um lampejo de consciência pode levar ao suicídio. Os enforcados que povoam as histórias de “Rasteira”, debaixo de uma goiabeira ou de um flamboyant, são frutos dessa implacável lucidez que não chega a se converter em conhecimento.
Cidadezinhas interioranas, “filhas legítimas do brasileiro, praga arrastada em todo território, terreiro da catira, catimbó, lundu, congada e umbigada”, espelham uma paisagem da alma feita de miséria, modorra e torpeza. Sem garantir pertencimento, a pátria enseja o caos. Neste cenário de promessas falhadas, Deus é um fosso onde os personagens lançam seu perjúrio e sua blasfêmia. O pacto com a selvageria, se não inspira um gesto de coragem, ao menos funciona como estratégia de sobrevivência. Um menino levado pelo pai, todos os domingos, a um quartinho rebocado para assistir a um cão faminto estraçalhando um porco; um homem que desenvolve seu talento para o mal apenas com o olhar, o chacoalhar de uns guizos e o poder da mente; um tipo estranho que tora o cordão umbilical de uma criança com os dentes e sente um “gosto de guerra” são encarnações de uma violência que instrui o caráter para atuar em um mundo desencantado e sem sentido.
Viagens também são constantes no livro, passagens por regiões de algum modo familiares à autora, que já morou em Goiás, Mato Grosso, Rio Grande do Sul e São Paulo.
Pegar a estrada, deixando para trás uma família arruinada ou qualquer outro vínculo, não resulta de uma determinação bem refletida mas de um colapso, última “escapatória de uma realidade considerada ultrajante”, a tentativa de “imolação da angústia”, mesmo que para isso seja preciso mutilar a alma e o coração. Várias metamorfoses aparecem nas histórias, sendo emblemática a do conto “Primeiro dia”, uma espécie de influxo selvático sobre a natureza humana, que expõe uma “falha na estrutura da ciência” e transfigura o corpo. Ora é uma mulher transformada em ave, ora um garoto com rosto de cigarra. A floresta e a mulher guardam seus venenos, sua vocação demoníaca, e “dissimulam sua força na aparente fragilidade de uma orquídea”. De mais a mais, a própria vida opera seu sortilégio em um “corpo franzino se metamorfoseando num leão de batalhas”.
“Sugar Lips”, um conto que parece destoar dos outros pela brevidade, merece especial atenção, pois nele se concentra o mais assombroso gesto de delicadeza, de fruição do “ideal etéreo da beleza”, sob uma epígrafe de Cioran. A referência, que ressurge no título do último conto do livro, não podia ser mais adequada, já que todos os personagens de “Rasteira” experimentam a dor de ser de que falava Cioran, o destino de “sofrer como um animal as consequências de ser ferido pela existência”. É assim que, no meio de uma brutalidade feita de sarcasmo e ceticismo, no encadeamento de pequenos imprevistos que conduzem ao desastre, a autora faz brotar, de maneira comovente, a expressão da ternura, o doloroso grito de amor, a cumplicidade afetuosa entre os vencidos. “Um diamante por uma lágrima” e “O universo transformado em tarde de domingo” são bons exemplos disso. “Rasteira no campo de caniços” é sem dúvida um livro feito com sangue e desespero, como queria Lúcio Cardoso, que, não por acaso, já em seu primeiro livro prenunciava a marca ímpar que sua obra deixaria na literatura. Com estilo próprio, inventividade exuberante e frescor, Narjara Medeiros faz agora sua estreia, merecendo a aposta, para o futuro, de uma trajetória invulgar.
Trechos do livro:
"Em Manicoré concluí pesadas teorias, revi o princípio de causalidade, a retórica, o fenômeno, a coisa-em-si, o paradoxo, o parêntese, a vírgula, o ente, o rizoma, a metafísica, os átomos de Leibniz, a misericórdia. Se eu morasse no Canadá ou em Paris talvez conseguisse compreender os desaforados sistemas de filosofia, mas o Brasil é quente demais para pensar nessas besteiras. (...) O rio Madeira era o meu Oráculo de Delfos. O araçá-boi e a flor do camu-camu os meus bibelôs de epistemologia aplicada."
– (Trecho do conto "Primeiro dia")
"O cigano encostado no capô do carro, pernas cruzadas, óculos escuros, o cigarro preso nos dentes. A imagem mais bonita desde o dia em que aquele mesmo carro entrou em Três Forquilhas. Matacavalos ainda se lembrava de mim e eu pensava nele em cada minuto apertado do meu dia: o meu amor de diamante. O destino é mérito de Deus, o homem é sua marionete de tecido delicado. Qualquer esforço maior é desnecessário."
– (Trecho do conto "O universo transformado em tarde de domingo")
Mariana Ianelli - Publicado em O GLOBO - Rio de Janeiro