Quinta-feira, 20.10.11

Um presente da poeta

Um poema inédito de Mariana Ianelli

 

 

 

 

 

ARCA DA LEMBRANÇA

 

 

 

 

Um sol de opala se uma tarde é pasto da memória,

Uma luz de chá dourando o canto cego de uma sala

E sobre a mesa, o espelho d'água

 

A ocasião do ato secreto

 

De repovoar veredas, antros, mirantes do passado,

Saudade que vai juncando de ramos, conchas e corais

Todo o imenso dorso de um barco naufragado.

 

 

 

 

© Mariana Ianelli - Iluminuras, 2011

 

 

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Sábado, 16.04.11

Poema inédito de Mariana Ianelli

 

 

Legião

 


 

As estátuas cobertas de hera

Os casulos debaixo da escada

O chão traidor, esverdeado

 

Mas ninguém se lembra

Que em outros tempos

Coisas minúsculas se agarravam

E cresciam atrás dos reposteiros

 

Toda uma orgia assim igual a essa,

De trepadeiras e crisálidas,

Um miasma de verdades escondidas

Que a seu tempo conquistaria tudo

Sob este sol das três da tarde

Rebentando, arremetendo

Sem mais fazer sombra pela casa.


 

 

 

© Mariana Ianelli, Legião, 2011 (Iluminuras)

 


 

 


 

publicado por ardotempo às 14:39 | Comentar | Adicionar
Terça-feira, 02.11.10

DON FRUTOS - Trecho inédito do romance

 

Trecho de Don Frutos, de Aldyr Garcia Schlee (O casamento de Anita)


 

QUE FAZER, diante de um pedaço de papel como este?


–  Comandante Rivera, responda por Don Juan Antonio Lavalleja, do qual tem plenos poderes: deseja casar com esta mulher?

 

–  Sim.

 

Doña Ana Monterroso: deseja casar com este homem?

 

Sim.

 

Sendo estas as expressões de suas vontades de se terem por esposos por mútuo consentimento, e não havendo algo que possa impedir este matrimônio, em nome de Deus e da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, eu vos declaro marido e mulher.


Rasgar o papel? Olvidar? Recordar?


Pois o padre Oubiña ou era meio atolondrado ou estava confundido ou tinha bebido por demais... O cura, depois de ouvir o que lhe havia dito em nome de Lavalleja – que sim, que queria casar com Ana; depois, ainda perguntou a ela, simplesmente: deseja casar com este homem ? E ela: sim. E quem era este homem, o homem ali, ao lado dela? Era o homem com quem ela havia dito que desejava casar; era o homem que, afinal, pelo menos pela vontade manifesta dela mesma, o padre Oubiña declarava casado com Ana de Monterroso!


A gente toda está sempre tão habituada às arengas e prédicas, às palavras de sempre dos padres nas igrejas, que nem ouve nem se preocupa em saber o que  ficam dizendo e repetindo eles, seja num casamento, seja num batizado ou numa missa de defuntos...

 

De modo que ninguém se deu conta de com quem mesmo Ana de Monterroso disse que desejava casar...Bastou olhar para Felipe Duarte e Ramón Mansilla para entender que, como testigos, não haviam maliciado nada: estavam ausentes dali, apesar de por demais compenetrados e o mais ajaezados possível. Bastou ver uma luz meio que piscando, como que um lampejo de dúvida e de perplexidade, um brilho de nada nos olhos de Anita (quando ela disse sim), para notar como ela bem havia entendido tudo – mesmo que ninguém pudesse testificar aquilo; e como ela parecia bonita, que lindaça estava!...

 

Ana havia dito sim; e, no ato, havia entendido perfeitamente tudo. Se chegou a ter um instante de titubeio, foi, foi porque soube bem com quem, com que homem havia dito que desejava casar.


Numa solenidade de casamento há que agir com compostura e recato: as mãos cruzadas por diante, os olhos baixos, a cara séria e os pensamentos distantes. Mas ali, ali era demais: ia casando por outro, estava casando, e ao repente terminava como que casado com Ana; e ela se dava conta disso e era preciso fazer-lhe saber que, afinal, depois do sim, quedavam os dois mesmo que casados.

 

Tinha, afinal, cumprido com a representação delegada por Lavalleja. Permanecia ali, diante da noiva acompanhada apenas pela irmã – a mãe delas em total estado de demência, o pai já falecido; e sem a presença dos parentes do noivo, opostos ao enlace (na capela vazia, ninguém mais que o padre, o major, o capitão e dois negros saídos sabe lá de onde). O noivo Juan Antonio andaria pelas cercanias do arroio de la Calera, no cumprimento de ordens e de seus deveres de capitão de milícia, a reaproximar os artiguistas e a combater os portugueses.A noiva estava passada quase dez anos da idade de casar, bem como a irmã, Juana. Mas era uma mulher de presença forte, de porte altivo, a fisionomia aberta e a tez louçana. Ainda assim, quem a imaginaria, um dia, mandando em Lavalleja (“dá-te corte, Juan Antonio! não te quedes atrás!”)?

 

Quem imaginaria o que ela ia fazer, depois, daquele petiço cambota sem garbo e sem ânimo? Animo, ela sempre teria; como valor, valentia e intrepidez suficientes para incendiá-lo; e para defendê-lo: para lutar por ele, para se expor por ele, para sacrificarse por ele.Naquele instante, mirava Anita como a buscar adivinhar o que lhe passava pela cabeça; e, ao mesmo tempo, para tomar coragem suficiente e encontrar as palavras próprias para fazê-la ver o que então havia se passado. Ela estava com um vestido muito rodado – azul-claro, parece – de mangas compridas com fofos nos ombros; e dava para ver-lhe o que jamais esqueceria: a ponta dos sapatos, de camurça branca, lisos, com uns tufos de seda por cima.


Foi preciso esperar um pouco, porque, encerrada a cerimônia, Juana abraçou-se à irmã, chorando; e, havendo se sumido os negros, Anita esteve, ainda, a receber os cumprimentos do próprio cura e dos dois oficiais. Só aí foi possível chegar até ela, quedar-se de banda para saudá-la, e dizer-lhe:

 

Cumprimentos... Receba meus cumprimentos.

 

Gracias, senhor comandante.

 

Bueno... Mire, Anita...

 

Sim?

 

– Sabes de uma cousa?

 

Que cousa?

 

Que estou mui feliz de ver-te casada.

 

Ah! Gracias, muchas gracias por seu sentimento.

 

E mais, se me permite...

 

Mais quê?

 

O que já lhe digo...

 

Diga nomás...

 

Usté me desafia a dizer-lhe, porque é inteligente e vivida o suficiente para sabê-lo.

 

Saber quê, senhor comandante?

 

Disse-lhe, então, sorrindo:

 

Saber que o cura se atrapalhou; e à vez de perguntar-lhe se queria casar-se com Juan Antonio, perguntou se usté queria casar-se comigo.

 

Pobre padre Oubiña, estava tão nervoso...

 

É que usté respondeu que sim, que queria casar comigo...

 

Que cousa, comandante...

 

 

 

 

 

Imagem: ©Gilberto Perin - Edições ARdoTEmpo (Don Frutos, Aldyr Garcia Schlee - 2010)

publicado por ardotempo às 17:11 | Comentar | Adicionar
Terça-feira, 14.09.10

Aldyr Garcia Schlee - CONTO INÉDITO


LA FOLIE ET L’AMOUR

Aldyr Garcia Schlee

 


Desde muitos anos antes de eu nascer, meu tio tinha um aparelho mágico que não sei bem como chegara a suas mãos: se fora como um presente, trazido da Europa pelo padrinho de minha irmã, juntamente com uma máquina de escrever; se fora como algo surrupiado em Jaguarão do espólio do sr. Tomazzo Aimone, que era pai de meu próprio padrinho e que havia explorado em Pelotas uma casa de cinematógrafo.

 

Aquele mágico ou pelo menos misterioso aparelho servia para ver as coisas como elas seriam, se fosse verdade; mas era de mentira, pois embora as mostrasse como verdadeiras, só nos deixava a impressão disso ao fazer de conta que ali elas não eram de mentira e ao gerar a ilusão de que ali elas existiam realmente.

 

Faz tempo. Eu não era nascido, meu pai e minha mãe ainda nem se conheciam, o irmão mais velho de minha mãe já era moço e se dizia sacrílego. Terá sido quando o futuro padrinho de minha irmã voltou da Europa, trazendo como grande novidade a inesperada e inacreditável máquina alemã Adler, uma alta, grande e rara “typewrite machine” – a primeira em que eu viria um dia a escrever. Ou foi quando se quedaram abandonados em Jaguarão os restos dos despojos do cinematógrafo de seu Tomazzo Aimone. O certo é que meu tio tinha aquele aparelho desde antes de eu nascer; desde quando fora a Porto Alegre fazer concurso para calígrafo da polícia civil.

 

Era uma caixa, uma simples caixa de madeira ornamentada que, fantasticamente se abria de dentro para fora dela mesma e se armava para a gente olhar como por um binóculo e ter ali, diante das vistas, imagens deslumbrantes das mais famosas batalhas, dos mais importantes monumentos e dos mais distantes e exóticos lugares do mundo.


A Lápia, a Hercínea, a Tingitânea

O Touro de Perilo, Hercule et Omphale, a medusa de Caravaggio.

A batalha de Ourique, a de Badajoz, a do Salado.


Faz muito tempo. Meu tio recém fora levado pelo futuro padrinho de minha irmã a conhecer mulher, num prostíbulo da beira da praia, onde haveria de ser apresentado a uma china chamada Ignez, suficientemente louca para atendê-lo de graça como o primeiro e último homem do mundo, para iniciá-lo enfim nas mais inesperadas e surpreendentes formas de fornicação humana e animal. Ele ainda era guri, contam; mas foi preciso arrastá-lo à força daquele puteiro imundo, de onde não queria mais sair, onde insistia em ficar o tempo que fosse, sem arredar pé da louca Ignez.

 

Faz muito, muito tempo. Seria de se pensar que tudo aquilo poderia ser esquecido, que nunca mais seria lembrado, que nunca seria revelado (como nunca foi revelado à minha avó, para não se somar como mais um desgosto no rosário de desgostos em que ela rezaria a vida inteira pela salvação da alma de seu pobre filho, meu tio). Assim, o esquecimento, a deslembrança, o segredo acabaram borrando o suceder da vida de meu tio desde antes que eu tivesse nascido. De modo que fica difícil agora rememorar o olvidado. Restou durante algum tempo a rejeitada máquina de escrever; resta comigo o instigante e maravilhoso aparelho que acompanhou meu tio a vida inteira como se fosse coisa de mentira; e já não resta mais nada que possa ser lembrado.

 

Esqueceu-se tanta coisa vista que aquele aparelho quase se perdeu no tempo e, para muitos, é ou foi como se não houvesse existido; mas, sendo um velho objeto que servia para ver as coisas como foram ou deveriam ser, não se pode dizer que era de mentira – pois só o que se via, isso era mentira (não propriamente mentira, mas sim umas figuras, umas imagens, umas estampas caprichosamente coloridas pelo avesso, devidamente emolduradas sob rubrica francesa como “tableaux vivants” e que, postas diante de nossos olhos deslumbrados, revelavam-se imediatamente como se nunca tivessem deixado de ser o que deveriam ser e eram de verdade).


Les vues stéréoscopiques

Meu tio era como um quarto de século mais velho do que eu; e desde pequeno fora capaz de ultrajes, profanações e sacrilégios. Uma vez, chegara ao confessionário da Matriz e dissera ao padre, de maneira a ser ouvido pelas beatas em volta: não me arrependo de ser pecador – sabe? –; e, por isso, não me importo de te mandar daqui mesmo pra puta que te pariu. Antes havia metido a mão por baixo do vestido de veludo da Virgem – e descobrira, aos berros, que a santa era só uma armação de madeira por dentro, com pés, cabeça e mãos de louça! E desde muito vinha mastigando hóstias, mantendo-as na boca mastigadas, trazendo-as mastigadas para casa, num lenço – e rindo com naturalidade daquilo.

 

Pois um dia meu tio fora a Porto Alegre fazer concurso para calígrafo da polícia. Como o convenceram disso, não sei; como também não sei bem se viajou no vapor Juncal ou no Jenny Naval, se minha avó deu-lhe dinheiro bastante e se ele levou consigo o mágico estereoscópio e suas vistas – os seus quadros vivos. O certo é que foi a Porto Alegre aparentemente com uma única finalidade: a de fazer concurso para calígrafo da polícia civil.

Les tableaux vivants


Os quadros vivos eram montados em molduras de cartão grosso, com duas figuras aparentemente iguais postas lado a lado, num retângulo de uns 9 x 18 cm, coloridas e sombreadas manualmente pelo reverso, em diferentes camadas de papel de seda muito fino e transparente, de maneira tal que observadas através de um visor binocular, contra a luz, davam a impressão e per-mitiam a ilusão de uma única imagem, apresentando relevo e profundidade.Ainda tenho comigo apenas e exatamente trinta dessas vistas, das muitas dezenas que pas-savam pelo visor, uma a uma, e a cada vez reviviam-se ante nossos olhos e nossa imaginação. Já não sobra quase nada das coleções de dúzias e dúzias delas, que foram se extraviando, se extraviando, e se perderam definitivamente no esquecimento. Também ainda tenho comigo a surpreendente caixa do estereoscópio: ela permanece fechada – ao lado do montezinho de vistas desusadas, presas entre si por um elástico – sem abrir-se e desencantar-se, avolumando-se sobre si mesma num prodigioso aparelho; tem só um palmo de comprimento por meio de largura, com guarnição de prata lavrada nos quatro cantos da tampa, fecho igualmente de prata, com um aplique posto no centro, talvez para a gravação do monograma do proprietário (mas sem qualquer inscrição).


Porto Alegre, 1929


Meu tio fez concurso para calígrafo da polícia numa quinta-feira à tarde (chegara três dias antes, depois de dois de viagem num vapor desde Jaguarão). Havia mais onze candidatos numa sala escura fedendo a creolina, onde foram dispostas doze largas classes escolares duplas, com tinteiro embutido – ficando cada um numa classe, fazendo-se ditado de duas páginas de um detalhado inquérito policial; e, depois, dispondo-se de até uma hora para copiar o maior trecho, com o menor número de erros e a letra mais parelha possível do Canto III de “Os Lusíadas”.


Agora tu, Calíope, me ensina

o que contou ao Rei o ilustre Gama


Desde a chegada, meu tio metera-se em Porto Alegre nos puteiros da Pantaleão Telles, ruela que se espremia pelo costado da Matriz em direção à velha ponte de pedra, lá embaixo. Embora estivesse ali com a única finalidade de fazer concurso para calígrafo da polícia; e, embora eu não seja capaz de afirmar que ele tenha levado e utilizado o estereoscópio, duvido que não o aproveitasse para impressionar e empolgar as mulheres, acionando-o com indispensáveis gestos estudados tanto de precisão como de encantamento – e as imagino cercando-o, atraídas pela maquina mágica, surpresas e curiosas, arrepiando-se alvorotadas com suas inimagináveis figuras como dos mais longínquos lugares desconhecidos e perdidos do mundo ou do outro mundo – os mais distantes e exóticos lugares sabe lá de onde, seus mais importantes e fantásticos e inacreditáveis monumentos, suas mais sangrentas e famosas e inimagináveis batalhas...


Esta é a ditosa pátria minha amada

à qual se o Céu me dá que eu sem perigo torne,

com esta empresa já acabada,

acabe-se esta luz ali comigo.


Então meu tio tirava de sua mala de papelão moldado a caixa do estereoscópio, a surpreendente caixa do estereoscópio abrindo-se e desencantando-se, avolumando-se sobre ela mesma no prodigioso aparelho que ainda guardo comigo. E apresentava às putas em volta os “tableaux vivants” que, postos diante de seus olhos deslumbrados, através da mágica binocular contra a luz, revelavam-se imediatamente como se nunca tivessem deixado de ser o que deveriam ser e eram de verdade: mulheres desnudas, de rostos insinuantes e cabelos insolentes, de largas cadeiras e generosos seios, em poses sensuais e gestos lúbricos, a exporem despudoradamente suas partes íntimas diante de um cenário onírico dominado pela perspectiva infinita de colunas e mais colunas quebradas sob seus respectivos capitéis.

 

 

 

 

 

 

Cada uma das mulheres do prostíbulo precisava então se despir toda e tentar repetir da melhor maneira que pudesse o mesmo gesto obsceno e provocador daquela que ela estava vendo pelo aparelho (isso tudo eu só imagino agora, pelo que sei que contavam e diziam de meu tio, e pelo que penso do que ele seria capaz – pois, infelizmente, não me restaram entre as “vues stéréoscopiques” mais que o montezinho de trinta, presas entre si por um elástico – nenhuma delas com ao menos a imagem de uma única mulher pelada; embora uma, extraviada como a número 3 e intitulada La Folie et l’Amour, propusesse as imagens de uma impossível mulher cor de rosa e de um provável tipo afeminado posando ambos com gestos imprecisos e cabelos dourados, entre pombas esvoaçantes ou asas de cisnes numa insuspeitada ribalta ou num improvisado picadeiro).


Meu tio dizia-se herege. Mas era desrespeitoso e ímpio, além de irreligioso, porque afrontava, insultava e ofendia quem quer que fosse, quando menos se esperava. Com um sorriso nos lábios era capaz de estragar uma festa, acabar com um velório, comprometer uma simples apresentação – fosse identificando um marido traído diante da mulher que o corneava, fosse anunciando secretas intimidades de quem estava sendo velado, fosse admitindo que não tinha prazer em conhecer quem lhe estendia a mão.


Nesta Chefatura de Polícia consta que N.N., brasileiro, pardo, de 23 anos de idade,

sem profissão fixa, residente à rua do Arvoredo, s/n,

foi identificado e compromissado nos termos constantes deste registro de investigação como depoente,

na condição de testemunha ocular da ocorrência anotada sob número 0117/29,

constante às folhas 34 e 35 do Livro de Ocorrências de numero 2-B desta Chefatura,

tendo respondido as perguntas de praxe


Meu tio fora expulso do seminário onde minha avó pretendia vê-lo transformado em padre e onde ele passava o dia lendo, lendo e contestando em aula o que fosse ante quem fosse; até comprovar-se que incluía em suas leituras os mais ten-tadores livros do index da Igreja – que manuseava às escondidas e distribuía fartamente entre os colegas (eu sei que depois, de volta a casa, ele até foi dado por doido: não tomava banho, não se arrumava, deixara a barba crescer à semelhança de Antonio Conselheiro e andava vagando pela rua arrenegado, a escarrar longe e a patear cachorros, sem cumprimentar ninguém).


1. se teve participação no ocorrido, disse que não;

2. se conhecia as pessoas envolvidas no ocorrido, disse que não;

3. se vinha passando pelo local do ocorrido, dis-se que sim;

4. se viu um homem atacando um outro com uma faca, disse que sim;

5. se sabe se era com uma faca ou facão, disse que não;

6. se sabe se a arma é a mesma que lhe foi apresentada nesta Chefatura, disse que não;

7. se chegou a ver que o agressor fugiu para um baldio, disse que sim;

8. se  sabia que a vítima resultou morta, disse que não;

9. se chegou a perseguir o agressor ou a ajudar a vítima, disse que não;

10. se ficou sabendo de algo mais no local do ocorrido, disse que não.


Não terá sido difícil para meu tio levar o estereoscópio em sua mala para Porto Alegre (o aparelho fechado, sabemos, tem só um palmo de comprimento por meio de largura, com guarnição de prata lavrada nos quatro cantos da tampa, fecho igualmente de prata, e um aplique posto no centro, mas sem qualquer inscrição). A mala de papelão moldado de meu tio, metida embaixo de muitas camas, antes e depois do concurso, terá disputado espaço com penicos cheios e panos sujos e frascos de desinfetantes (e baratas e ratos) em cada chineredo onde ele tratou de se meter a cada noite, tentando dispor de pousada e mulher, ainda que sem encontrar quem o acolhesse de graça ou lhe pagasse a despesa. Em Jaguarão era diferente: em pelo menos três dos nossos muitos puteiros, só pelo prazer do desfrute meu tio dispunha quando queria de ca-ma e mulher; uma destas, a velha e decadente louca Ignez, ainda lhe dava boa parte da féria do dia, para os vícios.


Ignez

 

Ignez da Silva Berneira

 


Meu avô bem que tentara colocar meu tio como seu ajudante no Banco Pelotense, ou de auxiliar de guarda-livros na Mesa de Rendas, ou de escriturário na Alfândega, ou de anotador na Ca-pitania dos Portos – afinal, tinha uma bela caligrafia! – mas meu tio só tinha cabeça para ler, ler e ler; e tanto no Porto como na Aduana e na Exatoria, até no Banco, deixava de fazer as devidas anotações, atrasava a escrita, trocava nomes e valores, escondendo na gaveta mais próxima o livro que mal-parava de ler. Era como se sonhasse com o mundo indizível das vistas maravilhosas.


Mas quem pode livrar-se, porventura,

dos laços que Amor arma brandamente

entre as rosas e a neve humana pura,

o ouro e o alabastro transparente?

 

O futuro padrinho de minha irmã, contudo, admirava meu tio por sua rara inteligência (aprendera francês utilizando apenas um manual de conversação, uma gramática, livros escolares e o dicionário), por suas variadas leituras (lera mais da metade da biblioteca do Clube Jaguarense), por sua boa caligrafia (copiava com letra admirável os trechos que mais lhe agradavam da melhor literatura) – e, vendo-o um dia limpo, enfim, e até falante, deu-lhe de presente a máquina de escrever que trouxera da Europa e falou-lhe em dactilografia. Meu tio, contudo, nunca acionou uma mínima tecla, nunca escreveu uma única palavra na poderosa Adler; jamais leu o manual de instruções em quatro idiomas que ensinava a manejar, lubrificar e manter limpa a imponente máquina negra.

 

q  w  e  r  t  y  u  i  o  p

a  s  d  f  g  h  j  k  l

z  x  c  v  b  n  m


Meu tio possuía uma letra magnífica: graú-da, arredondada, parelha, elegante, levemente inclinada à direita – e sempre primorosamente igual. Cada maiúscula, cada minúscula, fosse vogal, fosse consoante, abria-se e fechava-se sempre da mesma maneira nas suas correspondentes curvas e retas e no requinte de seus remates de pena. Era uma perfeição.

 

Pude constatar a excelência da letra de meu tio no dia em que arrombaram a porta do guarda-roupa do quarto do asilo de velhos em que ele morava (e morrera) e me alcançaram, além do precioso estereocópio, um amarelado caderno Vasquez de caligrafia com suas iniciais, resgatado entre roupas emboloradas e os mais triviais ou inesperados produtos comprados em Rio Branco. No guarda-roupa, havia ainda cubinhos de açúcar Rausa, pedras de anil Rekitt, duas garrafas de leite vazias (ambas de vidro verde, daquelas com boca larga e tampinha de cartão), um pacote de caixas de fósforos de cera Victoria, uma garrafa âmbar de Crush, uma lata de galletitas Cauci, um caixa de sabão Reuter, duas garrafas cheias de Malta Montevideana, uma garrafa vazia de mandarina Urreta, uma outra de pomelo Pomona, dois rolos de papel higiênico verde H-H, e uma lata de erva-mate Armiño.

Largada no chão, desprezada e sem uso, a velha máquina de escrever, coberta de pó.


Adler Werke – Frankfurt


Meu tio nunca chegara a ter um emprego decente. Sobrevivera e envelhecera fazendo de conta que não recebia uma permanente ajuda de vovó, além de parte da féria diária do prostíbulo da louca Ignez. Quando a louca morreu, fora instalado no asilo, onde teve livre a fantasia e pôde dela desfrutar como e quando queria. Jamais deixara, entretanto, de redigir com todo o capricho de sua letra impecável todas as cartas que o padrinho de minha irmã dirigia à amante que deixara no Havre e que lhe ditava seguida e pausadamente em francês (dizem até que meu tio, de posse do endereço da mulher, passara um dia a se corresponder com ela, entabulando uma ardente e paralela correspondência íntima cheia de indecente lubricidade).


Mas quem pode livrar-se, porventura,

dos laços que Amor arma brandamente

entre as rosas e a neve humana pura,

o ouro e o alabastro transparente?

Quem de uma peregrina fermosura

de um vulto de Medusa propriamente,

que o coração converte que tem preso,

em pedra não, mas em desejo aceso?


Meu tio havia permanecido em Porto Alegre o tempo que dava. Para que voltasse, fora necessário mandar-lhe um dinheiro extra – que lhe pudesse garantir a passagem de retorno no vapor e mais um dia de mínimos gastos, evitando-se que ele chegasse a melindrar dona Ercília, solteirona comadre de vovó, que vivia sozinha com seus ga-tos e suas rezas na rua Riachuelo e em cuja casa ele ameaçava meter-se, para ter onde comer e dormir – quem sabe também para espiá-la pelo buraco da fechadura, às gargalhadas, como já fizera em Jaguarão.


A. E. G.      Jaguarão

 

Depois, de volta, não houve aqui quem pudesse convencer meu tio a assumir o cargo de calígrafo da polícia.

 

Foi identificado e compromissado nos termos constantes deste registro

de investigação como depoente, na condição de testemunha ocular da ocorrência anotada

sob número tal, constante às folhas tais tais do Livro de Ocorrências, tal, tendo respondido ...
Não houve conselho que ajudasse, ameaça que intimidasse, promessa que resolvesse.
1. se teve participação no ocorrido, disse que não;

2. se conhecia as pessoas envolvidas no ocorrido, disse que não...


Meu tio fora aprovado em primeiro lugar no concurso para calígrafo da polícia.


se ficou sabendo de algo mais no local do ocorrido, disse que não.


Ele fora aprovado no concurso com mais outros quatro; e fora classificado em primeiro lugar (vovô recebera um telegrama anunciando o resultado).

 

Meu tio fora aprovado em primeiro lugar no concurso para calígrafo da polícia. Mas não quis saber de nada. Com a mesma mala de papelão moldado, com que chegara de volta de Porto Alegre, ele saiu de casa no mesmo dia em que soube o resultado do concurso. Foi-se para não voltar: preferira ficar por conta da pobre louca Ignez em seu puteiro – com a imponente e inútil máquina de escrever Adler, com as maravilhosas “vues stéréoscopiques”, com os deslumbrantes “tableaux vivants”, e como se partisse feliz com La Folie et l’Amour para os mais longínquos lugares desconhecidos e perdidos do mundo (ou do outro mundo).

 

Quem viu um olhar seguro, um gesto brando

Uma suave e angélica excelência,

Que em si está sempre as almas transformando,

Que tivesse contra ela resistência?

 

 

 

© Aldyr Garcia Schlee - "La Folie et l'Amour" - Conto, 2010

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Terça-feira, 24.08.10

EXPRESSÕES MISTURADAS - Vestígios da Guerra

Vestígios da Guerra - GERI GARCIA

 

Centro Cultural CEEE Erico Verissimo - 02 de setembro de 2010

Rua dos Andradas, 1223  Centrro Histórico  CEP  90020-008

Porto Alegre RS Brasil


GERI GARCIA - Desenhos e pintura de 1953 -  Vestígios da Guerra Civil Espanhola (A memória do terror franquista contra os republicanos na Espanha - Desenhos realizados no Padul, povoado de Federico Garcia Lorca, nos arredores de Granada, Andaluzia) - EXPOSIÇÃO INÉDITA


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


publicado por ardotempo às 13:41 | Comentar | Adicionar
Domingo, 25.04.10

Bola de cristal, em HD e 3D no seu computador

O que vai passar na TV amanhã?

                                                           

Roger Lerina

                                                          

Como será a televisão do futuro?

 

Previsão não é meu forte – não consigo antever sequer minhas próximas férias. Mas, mesmo que eu fosse um Nostradamus, palpites sobre o que está por vir em assuntos tecnológicos costumam ter um prazo de validade muito curto – e qualquer prognóstico que eu faça aqui pode caducar antes mesmo da publicação do livro OS TELEVISIONÁRIOS. No entanto, é possível especular a respeito da televisão de amanhã sem necessariamente posar de profeta.

 

Um dos caminhos, por exemplo, é imaginar como você gostaria que a TV fosse daqui a, digamos, 15 anos. Dando uma boa polida na sua bola de cristal, dá pra arriscar alguma antevisão – e com certa tranqüilidade, se você tiver o bom senso de se deixar guiar pelas tendências anunciadas hoje.

 

Então vamos lá: em 2025, boa parte dos 8 bilhões de habitantes do planeta vai estar conectada em bandas de alta velocidade. E, ao que tudo indica, o telefone celular será também o televisor, o computador e o aparelho de som das pessoas. Isso quer dizer que, se quiser, você poderá ver tevê a qualquer hora em praticamente qualquer lugar.

 

Mais: ninguém vai precisar esperar um determinado horário pra ver o programa desejado – toda a grade de atrações das emissoras poderá ser acessada a qualquer momento. Em casa também toda essa informação (TV, internet, som, vídeo) vai estar conectada no mesmo sistema – o que, além de trazer facilidades, provavelmente vai também amplificar um problema doméstico já clássico: cada membro da família deverá ter seu próprio aparelho, sob pena de alguém que fique de fora dessa “inclusão digital” achar-se no direito de armar uma revolução em casa contra os próprios irmãos ou pais na pela posse do controle do equipamento...

 

Acho que podemos dar como certo ainda, nos próximos anos, uma interatividade do telespectador mais participativa do que apenas escolher a programação a qualquer hora, ou ver seus próprios vídeos exibidos em atrações da TV como programas de auditório e noticiários. Com as rapidíssimas conexões via fibra ótica e satélite que não param de aumentar em número e velocidade – a Alemanha, por exemplo, já cobriu 98% do seu território com banda larga de ao menos 1 MB –, qualquer cidadão poderá entrar ao vivo em um canal de TV de onde estiver, mostrando imagens de casa, acidentes, eventos esportivos e artísticos, desastres, entrevistas e o que mais as emissoras tiverem interesse. Aliás, o próprio conceito de “emissora televisiva” deve mudar bastante: como ocorre hoje na internet com a coexistência de grandes portais com blogs, fotologs, páginas pessoais e redes sociais, os canais de TV como nós conhecemos, mantidos por empresas de comunicação, dividirão (ciber)espaço e audiência com canais cuja programação pode ser totalmente produzida por gente comum com suas câmeras e celulares – algo como o YouTube e assemelhados, mas com um perfil mais parecido com o dos canais comunitários. Ainda em termos tecnológicos, a televisão em 3D será outro atrativo a ser popularizado em breve.

 

Da mesma forma que a indústria do cinema anda investindo pesado na terceira dimensão a fim de recuperar seu público, a TV vai na mesma direção – a ambição parece ser levar para a sala dos lares a sensação de realidade quase tátil de filmes como “Avatar”, projetada por monitores cada vez mais finos e maiores, lembrando as telas de cinema.

 

O futuro da TV como eu imagino, portanto, será excitante: na parede de casa em telões imensos ou na palma da mão em telinha de pequenos celulares em qualquer lugar, exibindo superproduções hollywoodianas em 3D ou uma pegadinha registrada no casamento da cunhada, transmitida por fibra ótica ou satélite, a televisão continuará sempre nos fascinando com suas imagens virtuais tão reais.

                                                                                                                                

Roger Lerina – Especial sobre OS TELEVISIONÁRIOS (inédito) para o blog ARdoTEmpo

Imagem: Fotografia de Gilberto Perin, especial para ilustrar parte da capa de Os TeleVisionários, de Walmor Bergesch

 

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Um poema

 

Josafá

 

 

Um trem some na noite,

Já não sabes 

O que nesta viagem 

Te aconteceu.

 

O olho cego de Deus

Ilumina os campos nevados,

A brancura de nada saber

Te faz bem.

 

Moves-te 

Num ventre de áspide,

Move-te a vontade de outrem.

Tua complacência viaja.

 

Tua complacência,

Uma fúria

Que o vagar das sombras

Enterneceu. 

 

Não há tua história,

Tua estrela no peito, teus bens.

Há um rosto fixo e mudo.

Teu nome é ninguém.

 

 

 

 

 

 

 

© Mariana Ianelli (Inédito) - Treva Alvorada - Iluminuras, 2010

 

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Terça-feira, 20.04.10

Palavra - Poema inédito de Mariana Ianelli

 

Palavra

 

 

Quantos dias nessa guerra
Não foi contra a minha vontade 
Guerrear
- E arremetia, me devastava,
Secretamente amanhava a terra
Com o excelente desempenho
Do meu ódio.
                                                                                                              
E também isto passou.
O demoníaco da ingratidão,
Metade de uma obra queimada,
Passou esse gasto modo de dizer
Maldito seja
Que só a mim escandalizava.
                                                                                                              
Era um presente que me pesava  
Mais que os anos, 
Não ter a quem confiar 
Minha parte humana, 
Dada à embriaguez e ao desastre, 
E uma sombra que me buscava 
Feito um cão, 
A insônia da minha perplexidade,
Aquele em que eu jamais reparava,
Meu fiel anjo da morte.
                                                                                                                    
Quanto tempo me demorei
Nessa palavra.
Incensando a casa vazia
Eu rogava por um dia
Tão distante das armas e do medo
Que já não me turvasse 
Um resquício,
Um gesto de sepultamento,
E o silêncio que me tomasse
Agora sem ressentimento
Fosse o testemunho 
De uma renascença.
                                                                                                  
Havia um olho selvagem
Em tudo que eu pensasse.
Um pássaro 
O amor que eu concebia
Depois devorava.
Por horror ao mundo devorava.
E me gabava de pensar
Que em mim guardada 
Uma fidelidade
Entre tantas já corrompidas
Perdoaria meu coração descompassado.
                                                                                                                
Eu me desatentei, eu me ressenti
Dos lugares desaparecidos
Da minha história.
Por esquecimento vagava no vento,
O remanescente 
Do império de um tempo
Que em seu declínio se contenta 
E se absolve.
                                                                                                                 
E se a mim mesmo me assistisse
O corpo todo se encolhendo 
Num espasmo, resistindo,
Com meu abandono me desavindo
Eu confessaria –
A rebeldia inútil da vida 
Me comove.
                                                                                                                    
Coberto de poeira
Irmão dos rochedos
Caído de joelhos por cansaço
Como se nada mais me desequilibrasse
Falaria por mim um estremecimento,
Minha nascente, 
Uma rubra sinceridade –
Ainda me falta um presságio 
De revoada.
                                                                                                           
Ares de madrugada
Toquem meus ombros, meus pés,
Seja um rosto limpo,
Sem febre e sem vexame,
O rosto que vier,
Oráculo do meu passado.
                                                                                                                 
Agora eu me calo, eu vejo
Onde falham as despedidas:
Há uma tarde e uma manhã
Entre o descampado 
E o primeiro filho.
                                                                                                                                                 
Na noite alta 
Faço o meu acampamento,
Ao longe escuto 
O som do guizo dos que partem,
Tenho imensa tarefa pela frente.
Semeador de pouca fala,
Vou deitando os meus mortos
Onde incendeia.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                  
© Mariana Ianelli - Iluminuras, 2010

Poema inédito da poeta Mariana Ianelli,
que antecipa a estréia de seu sexto livro
de poesia, Treva Alvorada que será lançado no Brasil,
pela Editora Iluminuras, em junho de 2010.
                                                                  

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Domingo, 28.03.10

Conto inédito de Mariana Ianelli

 

O Abutre-do-novo-mundo

Mariana Ianelli

 
Há pessoas que não foram totalmente corrompidas, como se o diabo não tivesse feito o serviço completo. Elas conservam as mãos limpas em troca de um esgar epilético e ninguém neste mundo seria capaz de julgá-las no lugar do seu próprio corpo de vítima e réu. Eu, por exemplo, cumpro a parte que me cabe no desempenho dos meus talentos e não me queixo. A minha pontaria me deu o que de melhor eu tenho: um bom apartamento, boas refeições e um sono tranqüilo. Por regra do ofício, minhas mãos nunca estão limpas. Quanto pesa a consciência? Nada, absolutamente. Para mim, mais vale não ter senso moral do que ter algum. Eu sigo o rabo de fogo do acaso e tudo o que preciso é ver sem ser visto. Chamam-me o Abutre-do-novo-mundo, o que eu considero, modéstia à parte, um dos títulos mais respeitáveis na hierarquia do crime.
`
Outubro, quinta-feira, nove e meia da manhã: passo em frente ao 102 e meu alvo acaba de cruzar a rua para entrar no café da esquina. Desde que comecei o trabalho, todo dia eu o vejo praticar maquinalmente a mesma rotina, os mesmos prazeres inofensivos. Não sei por que razão o infeliz me foi encomendado, ou melhor, isso não me interessa. Quero descobri-lo por minha conta, no relatório subliminar das repetições de circuito, da casa para o café, do café para o escritório, do escritório para a cantina, da cantina para casa, ad infinitum.
Cada qual há de ter seus motivos para morrer ou agarrar a vida e são esses motivos íntimos que me interessam, insondáveis quase sempre, que não se explicam nem se substantivam nos casos de adultério, nas dívidas empresariais ou nas intrincadas jogadas políticas. Mesmo no cotidiano mais desordenado existirá sempre algo que se repete, alguma triste mania na qual o homem se enraíza, uma cadeira predileta no fundo de um bar, aos domingos, uma avenida, uma tabacaria, uma prostituta preferida. Nessas escolhas viciadas, a chave que tranca um miserável em seu cubículo dá mais uma volta sobre si mesma e mais outra e mais outra ainda. Só assim, pelo que sei, emparedado dentro dos seus limites, é que o homem se vê convocado a ir além, para alcançar o céu ou o abismo. Quanto ao meu pobre alvo, que nesse momento folheia o jornal do dia, ignorante de que amanhã ele será a notícia, os seus limites só poderiam levá-lo ao fundo do abismo, afinal, para onde mais pode ir um sujeito que veste uma gravata estampada às nove e meia da manhã de uma quinta-feira e que põe as mãos na cintura enquanto espera o seu cappuccino? O coitado me faz pena, esperando como se estivesse vivo. Primeiro quadrante, segundo quadrante, centro. Hora de riscá-lo da lista. Digamos que por causa dessa gravata ridícula.
© Mariana Ianelli

 

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Quarta-feira, 17.03.10

Conto inédito de Mariana Ianelli

O rabo da Salamandra
 
Mariana Ianelli
 
 
Já estivemos entre os primeiros da fila, pelo menos, é o que consta nos registros. Havia muito o que perder naquele tempo, mas quem sabia disso? Ninguém sabia. Naquele tempo é o que dizemos quando a simples tarefa de atravessar a rua se tornou um verdadeiro sacrifício, ou quando o espelho do banheiro converteu-se na vitrine de um museu pessoal de arqueologias.
 
Continuamos na fila depois de dar a meia-volta e lentamente vamos chegando à outra ponta, vencidos por um par de sapatos velhos, uma cirrose e o espanto de uma agenda telefônica cada vez mais defasada e fictícia. Nossos antigos colegas de classe bem poderiam ter permanecido naqueles bancos caquéticos, decorando o teorema de Tales, o futuro do pretérito, a Questão das Investiduras ou a estrutura molecular dos polímeros. Mas não. Existe sempre um mensageiro do sinistro que vem, não se sabe de onde, só para dizer que Ana, vocês se lembram de Ana, a campeã dos torneios de basquete?, pois então, nas últimas férias de julho ela voltava de uma viagem com a família, à noite, pela via expressa, quando um caminhão desgovernado simplesmente; e o Gordo, vocês se lembram dele?, pois não foi que o coitado teve um surto, sozinho num sítio lá onde o mundo faz a curva e, sabem como é, de repente o desespero, o vazio por todo lado, a ronda do caipora, as ratazanas, as serpentes, o mato gritando noite adentro e aquela irresistível espingarda na parede. De quando em quando também chegam notícias dos que deram certo e conservaram os dentes fortes, a cabeça razoavelmente lúcida e o sangue, apesar dos pesares, limpo. Entre eles, o Toninho, que nós já desconfiávamos, finalmente ali, na capa de uma revista, com seu rosto lânguido de Psiquê enrolado num manto de caxemira; ou ainda, as famosas pernas do colégio, que de um dia para o outro começaram a desfilar pelos corredores de uma clínica de estética, atendendo a madames e falsas atrizes.
 
Assim vamos passando, nós, montículos de areia no funil de uma ampulheta depois de amanhã mais cheia embaixo do que em cima. Com os pés enfiados nos chinelos, vamos até a mesa da cozinha e invadimos as novas páginas da História para ver quem são agora os vanguardistas, os milhões de meninos e meninas se acotovelando no início da fila. São eles que nos empurram adiante, que sacodem o rabo da salamandra, estas crianças de mãozinhas estendidas, cheias de barro e de fuligem, estas caras alarmadas, esculpidas pela fome e estas patas mansas de filhotes instruídos pela hedionda estupidez televisiva. E nós amamos, nós aprendemos a amar uma geração nascida da loucura e do sublime, que ainda insiste na esperança, quem sabe se por ignorância ou por delírio, e que oferece à roleta do jogo a própria vida, como antes nós arriscamos e perdemos a nossa aposta em um Deus impossível.

 

© Mariana Ianelli 

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Domingo, 28.02.10

Poema de Mariana Ianelli

 
 
Canto do Estrangeiro 
 
 
Mariana Ianelli
 
 
Viria como um rei
Se fosse por vontade tua.
 
Tão remoto no tempo
Da tua vida
Que nem te tocasse.
 
Viria com a alvorada,
Quase miragem debuxada
De uma ave 
Sobrevoando a tua história.
 
Sem te possuir
Nem te pertencer, 
Para o teu prazer um aceno
O mais natural 
Seria o meu sinal no longe,
Isento de paixões
E cheio de glória:
 
Nada semelhante
À paz que sucede as guerras
No regresso de um Ulisses 
Vagabundo,
Exausto de triunfo, como eu
Que penetro o teu mundo
Envolto em sombra
E para sempre me despeço
Ao desfiar a púrpura
Que a espera pôs 
Nas tuas pálpebras.
 
 
 
 
© Mariana Ianelli - Treva Alvorada - Iluminuras, 2010
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Domingo, 14.02.10

Desenho inédito de Siron Franco

Desenho de Siron Franco

 

 

 

 

Siron Franco - Sem Título - Desenho (Aparecida de Goiânia GO Brasil), 2009

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Segunda-feira, 11.01.10

Desenho de Siron Franco

Desenho inédito

 

 

 

Siron Franco - Sem título - Desenho (Aparecida de Goiânia GO Brasil), 2009 

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Quinta-feira, 24.12.09

Desenho de Siron Franco

Desenho inédito

 

 

 

 

Siron Franco - Sem título - Desenho (Aparecida de Goiânia GO Brasil), 2009 

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Quarta-feira, 16.12.09

Desenho de Siron Franco

Desenho inédito

 

 

 

 

Siron Franco - Sem título - Desenho (Aparecida de Goiânia GO Brasil), 2009

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Sábado, 17.10.09

Mariana Ianelli - Poema Inédito

Poesia

 

 

13º TRABALHO DE HÉRCULES 

 
 
Eis o velho empreendedor,
O indomado.
 
De hora em hora lhe dão de comer,
Esquadrinham-lhe as intimidades.
 
Tudo o que sente são cores,
Nenhuma delas equivalente 
A entusiasmo.
 
- Ao menos Jó tivera a regalia
De sangrar, energia bastante 
Para empenhar no ódio 
E contaminar a ordem 
Com uma peste e um milagre –
 
Mas a chaga do herói não se mostra,
O toco da sua dignidade mutilada.
 
Sabe lá em que recinto arcano
Polemizam duas potestades,
Até quando estremecerão as artérias 
E quem vencerá essa aposta.
 
 
 
 
© Mariana Ianelli - Iluminuras, 2009 / (Inédito)
 
 
 
 
 
 
Imagem: Laocoonte e seus filhos - Conjunto escultórico grego - 42 a.C. / Atribuída por Plinio, o Velho a três escultores de Rodes; Agesandro, Almodoro e Polidoro / Encontrada por Felice de Fredi e Michelangelo Buonarroti nas ruínas das Termas de Tito, em Roma no ano 1506.

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Sexta-feira, 20.02.09

Conto inédito de Junia Nogueira de Sá

Dois minutos
 
Junia Nogueira de Sá
 
Dois minutos. É tudo que eu preciso, dois minutos. Preciso falar com você para explicar o que aconteceu. Vai ser rápido, você nem vai se aborrecer, eu prometo. Dois minutos. 
 
Vou contar tudo. Como foi que ele chegou em casa naquele dia, e como foi que eu ouvi os passos na escada da frente. Pesados, pesados. Pelos passos eu já sabia tudo. Juro. Mesmo. Não estou, brincando: os passos dele eu podia ouvir da cama, todas as noites quando ele chegava tarde. E pelo ritmo, pela maneira de pisar na pedra das escadas da frente de casa, pelo peso, entende?, eu já reconhecia o humor dele. 
 
Você não acredita mas não tem problema, porque você nunca acreditou em mim. Nunca. Eu me lembro que, desde a escola, quando eu brigava na hora do intervalo e acabava estapeando alguma das meninas, você não acreditava. Eu voltava para a sala de aula com os cabelos desgrenhados, a maria-chiquinha desfeita, e você achava que eu tinha apanhado em vez de bater. Logo eu, que nunca fui de levar desaforo para casa. Logo eu, que era pequenininha mas resolvia tudo no braço, e você nunca acreditou nisso. Eu batia nas meninas no intervalo, mas acabava apanhando de você no caminho de volta para casa. Enquanto você dizia que eu era mentirosa e tinha de revidar quando apanhasse, eu apanhava. 
 
Mas isso não vem ao caso agora. Não mesmo. Eu quero contar o que aconteceu sem aborrecer você. Como prometi. Dois minutos. Acho que já gastei um, não? Mas me deixe falar. Vou contar tudo. Ouvi os passos dele, parecia um bicho bem grande subindo as escadas. Um. Outro. Mais um. Passos pesados. Como os dinossauros dos filmes, sabe? Eu podia imaginar a barriga gorda, a cara gorda, a bunda gorda dele pesando em cima das pernas, dos pés ecoando na pedra das escadas. Eu não podia ouvir, mas podia imaginar a respiração pesada dele, a mesma que tantas vezes ouvi tão de perto, ele por cima de mim, a barriga gorda, a cara gorda, minhas mãos tentando tocar a bunda gorda dele sem conseguir. Claro, não? Eu sempre fui pequenininha, você sabe, como ia conseguir abraçar aquela montanha de gente em cima de mim? Minha vontade era tocar a bunda para cravar as unhas; eu tinha um desejo, um delírio melhor dizendo, de que poderia agarrar a bunda gorda com as duas mãos, com as unhas todas enterradas nela, e puxá-lo para cima, e depois lançá-lo longe, bem longe de mim. Mas eu nem alcançava a bunda, então ficava ali, tentando, tentando me distrair e pensar no que eu faria se pudesse, e ele se movimentando, se chacoalhando, se esfregando, sabe como é, resfolegando e suando. Horrível. 
 
Mas isso não vem ao caso também. Droga, acho que falta pouco tempo agora, não? Vou acelerar. Vou contar depressa. Ele subiu as escadas e abriu a porta da frente. Eu cobri a cabeça com o lençol e fechei os olhos. Primeiro, bem apertados. Mas eu me lembrei que ninguém dorme de olhos apertados, e fui soltando. Tentei deixar as pálpebras apenas cerradas, não é bonita esse expressão? Pálpebras cerradas. Eu adoro. Vi num livro, uma história bem romântica. Também pensei que ninguém cobre a cabeça quando dorme. Mas isso eu não sei onde aprendi. Puxei o lençol um pouco para baixo e ouvi, nitidamente, ele virar a chave na porta lá embaixo, pelo lado de dentro. Casa é assim mesmo, não? A gente alonga os ouvidos quando mora numa casa como a minha, numa cidade como esta, violenta, cheia de histórias assombrosas nos jornais, nos telejornais, em qualquer fila em que se entre para fazer qualquer coisa, basta dar uma chance e sempre tem alguém com uma história assombrosa desta cidade. Eu tenho medo, claro. Tento controlar, mas tenho. Passo a noite toda ouvindo os barulhos da casa, da rua, do vizinho da direita, sei identificar exatamente cada um deles, os ouvidos alongados, alongados. Uma janela que se abre. Uma porta que se fecha. Um estalo no telhado por conta do dia quente. Sei até que cachorro é de quem, apenas pelo latido. Mais do que isso: já aprendi que existem latidos de alerta, de aborrecimento, até de pesadelo dos cachorros. Conheço alguns deles, já. É verdade... São latidos diferentes, sabe? O cachorro que não está alertando o dono, não está vendo ninguém estranho pulando o muro ou forçando o portão, apenas como exemplo, um exemplo bobo mas é um exemplo, esse cachorro late frouxo. Uou, uou, uou, uou. Frouxo e rouco, quatro vezes. Pode contar... 
 
Por falar em contar, eu vou contar. Calma. Você nunca tem calma, isso sempre ficou por minha conta: acalmar as coisas. Eu sempre fui mais sensata do que você, não? Não disse esperta, por favor, não confunda. Sensata. E calma. Eu estava calma naquela noite. Tinha ido cedo para a cama, não tinha nada para fazer, o que não chega a ser uma novidade na minha vida. Então eu ouvi a chave girando na porta da frente e tentei ficar imóvel, naturalmente imóvel, como eu disse antes. Puxa, estou com sede. Mas não vou parar para buscar água, senão a história não acaba hoje. Dois minutos, foi o que combinamos, certo? Vou continuar. Minha língua está seca como uma folha no outono, deve estar até amarela, ocre, marrom. Cor de terra, como as das folhas secas. Cor de bosta, que feio. Eu adoraria ter um copo de água aqui perto, mas não tenho, vamos seguir com a história. Eu fui relaxando o corpo, a boca, os olhos, as mãos, as mãos são muito importantes, quando a pessoa dorme, as mãos ficam nem abertas, nem fechadas, já reparou? Conscientemente, fui relaxando tudo. Queria mesmo parecer que estava adormecida. Profundamente adormecida. Fácil. Faço um exercício bem parecido com esse pelo menos três vezes por semana, na aula de yoga, deitada no chão, todas nós deitadas no chão, e a instrutora dizendo: agora, os dedos dos pés. Sabia que eles ficam tensos? Você tem que prestar atenção neles para poder relaxá-los. Agora, a língua dentro da boca. A mesma coisa! Ela está lá, dura, você nem percebe. Dura e seca como agora, porque quando acaba a aula eu sempre tenho sede. Relaxo a língua, e ela se banha na saliva do fundo da boca, é bem gostoso. Não dá para fazer isso aqui e agora, porque eu estou falando. Vou ficar com a sede, que chato. Eu queria tanto um copo de água... E os músculos da pelve então, aqui embaixo, sabe? Ficam tensos como os dedos dos pés. Da primeira vez, a instrutora falou: agora, a vagina. Era para relaxar, mas acho que todo mundo fez como eu. Falou vagina, pronto: os músculos se retesaram como se tivessem ouvido. Travados. Trincados. Uma ou duas riram, e todas caímos na gargalhada. A sessão de relaxamento acabou na hora, e na aula seguinte a instrutora disse: meninas, em vez de vagina, vou falar pelve. É a mesma coisa, vocês vão relaxar os mesmos músculos. Mas não vai acontecer aquele efeito risadinha da aula passada. Funcionou, sabe? 
 
Bom, pelo menos para mim. Vagina é uma palavra feia, esquisita, que não tem a menor graça. Mas me deixa tensa. Isso, a palavra vagina tem esse poder. Quando ouço, quando leio, fico tensa. E no consultório da ginecologista, então? Ela repete umas setecentas vezes por consulta. Pior. Em cima da mesa, ela tem uma peça pequena feita em plástico, espetada num pedestal de metal preso a uma base de madeira onde está escrito aparelho reprodutor feminino. Já entendeu tudo, não? É uma vagina completa, que desemboca num útero que se desdobra em dois ovários pendurados lá em cima. Tudo coloridinho, tudo rosinha, tudo desmontável. Ela usa a peça para explicar os efeitos, os fluxos, os refluxos, os defeitos também. Tira, põe, deixa ficar. Escravos de Jó. No final, volta para a posição correta, ela olhando por cima, literalmente por cima dos óculos, nem sei o que eles fazem pendurados no nariz dela, coloca tudo de volta no lugar. E fica ali aquela vagina, não, vagina não, aquela xoxotinha cor-de-rosa em cima da mesa. Virada pra mim. Para mim! Logo eu, que escuto vagina e fico tensa, passo metade da consulta, sempre, invariavelmente, sendo observada pela xoxotinha. Despelada. Nuinha, a xoxotinha. De plástico, mas bem realzinha. Dava para colocar uma câmera escondidinha naquele buraquinho do meio e filmar a minha cara. Tensa. Devo ficar horrível. Tensa. Nem ia querer me ver nesse filme. Acho que ia ficar com aquela boca pequenininha que eu tenho quando estou tensa, já notou que eu quase engulo os lábios? Minha boca fica um risco, um traço apenas, uma linha fechada entre o nariz e o queixo. Nem parece uma boca. Horrível. 
 
Mas vamos ao que interessa, chega de vagina. Bom, pelo menos eu falo vagina. Ou xoxotinha. É, sempre assim no diminutivo, mais bonitinho. Ele, não. Sempre busssseta, assim, com u e um monte de s, para ficar bem do jeito, você entende, do jeito dele. Jeito escroto. Eu também não gosto de falar escroto, acho vulgar, mas tem palavra melhor para definir ele falando busssseta, me olhando com aqueles olhos meio abertos, meio fechados, aquela boca mole de cerveja, me falando eu quero foder essa sua busssseta hoje? Não tem. Se tem, eu não conheço. Nunca vi nada mais, mais, mais a cara dele do que isso. Onde é que eu estava com a cabeça quando resolvi me casar com ele? Você é que tinha razão, nem apareceu no casamento. Eu me arrependi no meio da festa. Juro. Acredite em mim, no meio da festa eu já estava pensando: isso não vai dar certo. Ele veio dançar comigo, era apenas para fazer as fotos, ele veio dançar e me apertou demais. Eu sou pequenininha, você sabe. Ele me apertando, eu disse: está doendo, eu não consigo nem sorrir para as fotos. Ele respondeu: quieta. Abriu a mão gorda, não era tão gorda mas já era gorda, agarrou a minha bunda por cima do vestido de noiva, ficou bonito, não?, todo mundo vendo, e apertou até que eu gritasse. Todo mundo rindo, achando graça. Eu ri também, mas sabe quando você ri para não chorar? Eu ri. Ainda bem que você não estava lá, ia querer que eu revidasse. Eu podia pisar no pé dele. No meio do peito do pé, com o salto fininho do sapato de noiva, lembra do sapato de noiva? Você comprou comigo. Um tapa na cara. Cuspir? Uma cabeçada na barriga? Qualquer coisa menos rir com ele e com os outros, eu sei. Você ia querer que eu revidasse. 
 
Mas vamos terminar a história. Afinal, você veio aqui para isso. A porta fechada, ele parou de fazer barulho. Completamente. Nem passos pesados, nem leves, nem nada. Não respirava, não se movia. Pelo menos, eu não escutava. Meus ouvidos alongados não identificavam nada, nem um mísero movimento. O cachorro do vizinho latiu, frouxo e rouco. Quatro vezes. O meu respondeu. Mais quatro. Ambos se calaram. Ainda bem, eu pensei. Não tem ninguém arrombando porta, portão, pulando muro. Precisava ouvir o que acontecia lá embaixo. Nada. Nada mesmo. Parecia que a casa inteira, toda, tinha se transportado para um mundo sem sons. Nem novos, nem familiares, sem sons. Sem ruídos. Tudo quieto, tudo esperando. É, porque quando as coisas ficam quietas, elas estão esperando. O leite em cima do fogão, esquentando, espera só a hora de se derramar todo. Meu cachorro é assim. Os passarinhos são assim. Lembra de quando nós éramos crianças e ficávamos sentados no degrau da porta da cozinha, olhando o quintal e a mangueira, e o céu ia ficando preto porque vinha chuva grossa e os passarinhos paravam de cantar? Lembra disso? Mamãe dizia: passarinho aquietou, lá vem tempestade. Assim, tempestade. Mamãe achava que qualquer chuva era uma tempestade, e as tempestades, o fim do mundo. Trancava portas e janelas, colocava as crianças para dentro e sumia pelo corredor, ia rezar no relicário de Santa Bárbara, acender vela, cobrir espelhos com medo dos relâmpagos, guardar panelas de metal bem no fundo do armário para não atrair raios, organizar a casa para o fim do mundo que nunca vinha. Mamãe era maluca. A chuva passava, ela pegava a sombrinha, lembra que o nome do guarda-chuva das mulheres era sombrinha?, e ia para a igreja agradecer por o mundo não ter acabado. Maluca. Enquanto as crianças se esbaldavam nas poças d´água do quintal, ela lá, rezando. Voltava com os joelhos amassados, meio sujos, de uma cor de poeira de igreja, um cinza que eu reconheço até hoje, andando ligeira com a sombrinha fechada. Eu olhava aqueles joelhos e via o sangue por baixo da pele. Verdade. Eu via sangue ali, juntado num lugar só, muito sangue, sangue pisado de quem passou muito tempo de joelhos, toda a culpa do mundo e todas as tempestades da terra pesando nos ombros, amassando os joelhos. E quando ela vinha ligeira, eu olhava os joelhos pontudos e imaginava que eles podiam se abrir, deixar o sangue escapar, e ia ser um sangue em pó. Sangue pisado, me disseram uma vez, vira sangue em pó. Não ia escorrer como nas imagens da igreja, um Jesus, um São Sebastião. Ia sair voando, soprado pelo vento, e ela ralhando com as crianças, colocando todo mundo para dentro de novo, no banho, porque estávamos molhados e poderíamos morrer de resfriado. Maluca e exagerada. 
 
Às vezes tenho saudades da mamãe. Tenho uma foto dela em casa, de quando papai era vivo ainda, eles estão juntos, ninguém tem cara de feliz na foto, eu devia ser um bebê de colo ainda, está num porta-retratos no aparador ao lado da entrada. Ah, a entrada da casa. Desculpe, pois é, eu estava contando que ele havia entrado e estava tão quieto, mas tão quieto que eu sabia que alguma coisa iria acontecer. Tinha certeza. Uma tempestade, daquelas da mamãe. Fiquei esperando. Nada. Mais um pouco. Nada ainda. Comecei a achar que eu tinha sonhado. Estava acordada, mas tinha sonhado com os passos dele nas escadas de pedra, a chave na porta. Sonho não: esse homem chegando em casa nunca foi sonho. Pesadelo. Pesadelo tem a ver com peso? Eu acho que tem, sabe. Nesse caso, tudo a ver. Pesadelo, pesado, peso. Toneladas de peso em cima de mim. Aí foi que eu percebi que o silêncio também estava pesando. Li isso num livro, mas achei tão ridículo na hora... Silêncio pesado. Mas existe. Eu comecei a prestar atenção no peso do silêncio, e ele foi crescendo. Eu não ouvia mais nada, nem a minha própria respiração. Nada, acredite. Nada. Foi então que eu senti o cheiro. Um cheiro quente e metálico que eu não reconheci na primeira vez que invadiu meu nariz. Era familiar, e era bom, mas eu não reconheci. E então ele veio de novo, um cheiro de tempestade, não, de tempestade não. Um cheiro de trovão. Melhor ainda, um cheiro de raio. Tem gente que acha que é a mesma coisa; não é. O que foi, você pensa que raio não tem cheiro? Tem sim. É quente, metálico, imenso. O que foi agora,  você pensa também que cheiro não tem tamanho? Esse tinha. Enorme. Entranhou em tudo, no meu nariz, nas minhas roupas, até nas de baixo, nos lençóis, nos meus cabelos. Cheira aqui se você quiser, ainda está nos cabelos. Vá até a minha casa, ele ainda está no quarto, eu sei que está. Quantos dias se passaram? Dois? Três? Está lá, o cheiro. No começo era bom, eu já disse, mas agora estou enjoada dele.  É nojento. Eu lavo, lavo, lavo e ele não sai. Grudou em mim. Você está sentindo? Acho que não. Você está tão longe, mas eu estou sentindo, sim. Acredite. Você acredita em mim? Acredita? 
 
Escute bem agora, porque eu vou contar como foi. Eu prometi, você veio até aqui, eu vou contar. Foi o cheiro que me fez sair da cama. Nenhum som, nenhum ruído, nenhum barulho. O cheiro. E  me lembrei dele porque era o mesmo cheiro de sangue que eu sentia quando nós voltávamos da escola, e você me batia, e meu nariz sangrava escorrendo, não o sangue em pó da mamãe, e você brigava comigo, o tempo todo, a volta toda para casa. O mesmo cheiro bom, familiar, eu gostava de importar para você, eu gostava de contar para você, eu gostava de ser alguém para você, de ser alguém em quem você batesse, você me batia porque queria que eu fosse como você. Queria que eu revidasse tudo, tudo, tudo na vida. O bem e o mal. Acho que era isso. Então eu senti o cheiro e me lembrei de você, e me levantei da cama, e quando dei um passo, tropecei nele caído no chão, estirado. Senti um calor úmido nos pés e o cheiro ficando cada vez maior, maior, maior. Encheu o quarto. Entranhou em mim. Eu fiquei ali parada, em pé, esperando, até que alguém chegasse. Não sei quem foi a primeira pessoa, nem a segunda, nem se isso demorou. Eu estava esperando, apenas. Estava com medo de andar no escuro, e estava escutando os ruídos da casa, só isso. Os cachorros latiram muito, todos eles, da vizinhança inteira. Muito. Eu estava com medo deles também. Eram latidos que eu não conhecia, não sabia o que podiam significar. Latidos estranhos. Às vezes eles chamavam meu nome latindo. Ana, Ana, Ana. Eu me lembro de você chegando, é a única pessoa de quem me lembro no quarto. Você também disse: Ana. Ana, o que é isso?, acho que era essa a frase. Você não entendeu. Eu precisava explicar. Dois minutos. Eu me lembro do cheiro e de você, só lembro disso. Estava querendo que você chegasse depressa para acender a luz, mandar embora o meu medo, para você ver o que eu tinha feito: ele estava caído no chão, acho que estava morto, não sei o que aconteceu. Mas quem escreveu nas costas gordas dele fui eu, isso eu sei. Com a pontinha da faca: Ana. A sua pequenininha. Uma assinaturazinha. Eu revidei. Acredita agora?
 
 
© Junia Nogueira de Sá
publicado por ardotempo às 02:10 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Sábado, 24.01.09

Lusa Memória - Isolde Bosak

Descoberta
 
 
 
 
 
 
 
Do alto desta vista cá
vou mais longe
pelo rio embarco
ganho o oceano
e cruzo
o arco de sagitário
e o cruzeiro
até o sul e mais
 
e se a memória de lá
o seu afogado tange
deixo tudo ao largo
resgato o mar liso e plano
de tanto uso
pego flecha e destinatário
abro velas que o vento trás
 
agora entendo navegar
e o que mais me constrange
é ter deixado o que abarco
desde aqui ao dano
tudo o que é luso
escrito em diário
de não ser dignatário
tendo voltado ao cais
 
 
© Isolde Bosak - Poema do livro Lusa Memória, 2009
publicado por ardotempo às 19:03 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 15.01.09

Poema inédito de Mariana Ianelli

Quarta Infância

 
À sombra de um livro sagrado
Lembrou:
 
Foi no alto de um morro
Que sentiu
Pela primeira vez
Esse cheiro de curtume.
 
O olhar pastoso do boi,
O tempo trinchado, devorado.
 
Se bem extraído, pode um grito
Encher de festa uma paisagem,
Festa e regozijo.
 
Quem diria aquele menino
Pela última vez
Um homem de joelhos
E mãos engatadas nas costas.
 
Na prece invertida arrevessa:
Sagrada era a lama
Da cor do bronze.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
© Mariana Ianelli - Iluminuras, 2009
Fotografia de Misha Gordin, 2005
publicado por ardotempo às 12:59 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Segunda-feira, 12.01.09

Conto inédito de Junia Nogueira de Sá

A luz

Ela olhou pela fresta da porta e viu a luz do abajur acesa no quarto. Acordado, ainda. Ele estava acordado, talvez naquele estado de quase sono em que permanecia antes de finalmente dormir umas poucas horas, e então despertar assustado. Para não dormir mais até o dia amanhecer, e a luz entrar, dessa vez pela janela mal servida por uma cortina leve, diáfana, inútil, que ela odiava exatamente por isso. Ele gostava assim. Disse uma vez, para explicar a cortina, que a luz do dia o fazia sair da cama com mais vigor. Mas ele estava sempre cansado, e se arrastava para fora dos lençóis pela manhã, em direção à janela que dava para a rua lateral do edifício e que ele nunca abria, com medo da altura. Ficava um tempo ali, cansado, respirando compassadamente, cansado, antes de sumir pela cozinha, cansado, enquanto ela se levantava, se arrumava, saía de casa, sem saber dele, esgueirando-se no corredor, até a porta da rua, para não encontrá-lo. Cansado.


Eram já alguns anos juntos, e a maior parte deles assim. Ele de noite, ela de dia, isolados em universos distintos, próprios. Ímpares, singulares, que ninguém saberia dizer se um dia estiveram juntos, ou quando foi que se separaram.


Ela voltou para a sala, sentou-se na poltrona e procurou no livro um parágrafo que pudesse reconhecer. Estava distraída nos últimos tempos, precisava voltar umas tantas páginas a cada vez que se levantava para conferir se ele já dormira. Preferia se deitar quando ele estivesse adormecido. Apagaria o abajur antes. Acordaria com o susto dele, mas dormiria de novo. Ele então ficaria imóvel a seu lado, a noite toda, até ver a luz na janela, e até que essa luz fosse suficiente para inundar a rua lá embaixo e o quarto lá em cima. Ela estava acostumada com aquela presença pétrea na cama de casal. É verdade que nunca reclamou quando, no começo, ele se revirava sobre o colchão, esperando a manhã surgir na janela. Apenas permanecia acordada, acompanhando os movimentos dele, sentada na beira da cama. Mas ele entendeu. Passou a ficar imóvel. Essa era a condição de ambos para atravessar a noite juntos, lado a lado, nunca explicitada. Ele, imóvel. Ela, calada.


Ela não o amava mais. Gostava apenas de seus pés, que achava lindos mas via pouco, pouquíssimo. Estavam sempre enfiados em meias, em sapatos, enrolados no lençol, na toalha, no tapete, cobertos. Escondidos. Ele sabia que ela gostava de seus pés, e não se importava em mantê-los longe do olhar dela. Fazia questão, às vezes, mas na maior parte das vezes, nem se lembrava, nem se importava, nada. Apenas mantinha o hábito infantil de enfiar os pés debaixo, dentro, atrás, ao redor de qualquer coisa que pudesse abrigá-los. Fazia assim, ela não sabia, ele não revelava, talvez por conta do mesmo pesadelo diário, de que algo, ou alguém, alguma coisa enlaçava ambos os seus pés enquanto ele andava dentro de um grande inundado de água grossa que lhe chegava aos joelhos, e o arrastava para baixo, com violência, para o que parecia ser um inferno gelado e escuro, barulhento como uma fábrica velha, irrespirável. Ele nunca viu o lugar, mas era assim que parecia ser. Era assim que ele imaginava que seria, cada vez que a coisa o enlaçava e arrastava, dentro do pesadelo. Era assim que descrevera para ela numa única manhã, muito tempo atrás, parado junto da janela, cansado, quando eles ainda conversavam coisas rotineiras. Todas as noites, acordava. Assustado, muito assustado.


Anos assim. Não saíam de casa à noite, não jantavam com os amigos mas sentados, quietos, um diante do outro, a mesma sopa sem graça e malfeita, não iam ao cinema nem viam televisão, não caminhavam na calçada à beira da praia nem na rua lateral, coalhada de lojas e de restaurantes pequenos e cheios de gente. Foi para isso que se mudaram para o apartamento. Tinham planos de aproveitar as noites quentes como dois namorados e as frias como dois amantes, de passear a pé pelo bairro, de fazer amor na sala, de viver a vida de casal recém-casado longe da casa dos pais dele, onde ele sempre morara, primeiro na mansarda azul e espaçosa do terceiro piso, que ela visitou apenas uma vez, depois no quarto bagunçado em cima da garagem, para o qual ela se mudou uma semana depois de conhecê-lo, um mês antes de se casarem.


Nunca aconteceu, e ela não lamentava. Nem no primeiro, nem no segundo dia aconteceu. Nunca. Depois que a diarista saía, no final da tarde, a casa ficava às escuras exceto pelo abajur do quarto, que ele comprara, e a luminária de leitura da sala, que ela herdara da avó e trouxera antes de tudo o mais para o apartamento. Ela apagava ambas antes de se deitar, quando ele enfim dormia. E depois do boa-noite formal da diarista, que só se despedia depois de deixar pronta e sobre a mesa da copa a mesma sopa de todos os dias, porque ninguém falava com ela nem lhe pedia nada, quase nenhuma palavra se ouvia dentro do apartamento.
Ela se acostumara a passar horas calada.


Porque tinha de voltar e voltar e voltar nos parágrafos, ela levava mais, muito mais tempo para ler um mesmo livro que, lá se vão todos aqueles anos com ele, leria em quantos dias? Uma semana? Tinha dúvidas sobre o enredo, confundia personagens, se perdia na história. Lia apenas para ocupar o tempo entre ele se deitar, e ele dormir. Agora mesmo, procurando a última frase de que se lembrava, ela topara com um nome, Cecília, que não vira antes. Onde Cecília entrava na trama? Quem era Cecília? O que Cecília tinha a ver com os outros? Não sabia. Por um segundo, achou que tinha apanhado o livro errado na mesinha a seu lado. Mas era o mesmo. Seu único livro há anos.


Cecília.


Fechou as páginas sem fazer barulho, bem devagar. Olhou o relógio pequeno em seu pulso. Estava certa, passava de meia-noite, ele podia não ter dormido ainda mas ela se sentia pronta para fechar os olhos a qualquer momento. Estavam pesados, plúmbeos. Incontroláveis. Pensou de novo em Cecília. Não entendia como, com os olhos tão devastados pelo sono, tinha esbarrado numa novidade dentro do livro. Talvez por isso mesmo, pensou melhor. Só porque era uma novidade. Então Cecília entrava agora na história, e ela não teria de voltar tanto para trás, naquelas páginas, para entender o que estava acontecendo. Teve a tentação de retomar o livro, mas seus braços, suas mãos, tudo estava fatigado e seu corpo, pronto para dormir. Ansiando por dormir. Deixou o livro quieto em seu colo.


Precisava se levantar e conferir, mais uma vez, se ele já estava adormecido. Fez o esforço de pousar o livro na mesinha, de apagar o abajur e seguir, sem tatear como nos primeiros tempos, pelo corredor escuro até o quarto. Olhou de novo pela fresta da porta, e agora sim, ele dormia. Ele sempre ficava virado para a janela, de costas para a porta, e mantinha um dos braços ao longo do corpo enquanto estava acordado. Mas bastava adormecer, e relaxar os músculos, o braço escorregava para a frente, como uma senha que dizia: pronto, agora é sua vez de vir para a cama. Sua vez.


Ela entrou no quarto bem devagar, como todas as noites. Puxou os lençóis do seu lado da cama, e sentou suavemente nela. Levantou os pés, tocou com eles o tecido morno e deixou que deslizassem devagar. Então, tombou leve sobre o travesseiro, cobriu-se e esticou o braço para apagar a luz do abajur.


- Quando amanhecer...


Era a voz dele, grave, muito baixa, para não se fazer ouvir.
Ela interrompeu o movimento. Deixou a mão no meio do caminho e esperou. Ele suspirou, ela ouviu.


- Quando você acordar, eu não vou estar mais aqui.


Ela esperou outro tanto. Ele não disse mais nada. Ela, então, continuou a esticar o braço até tocar o botão, e apagar a luz.


- Só hoje, a luz...


A voz dele era menor ainda.
Ela fingiu não ouvir o pedido. Parecia um pedido. Enfiou o braço, depressa, de volta sob o lençol, prendeu-o entre as pernas, fechou os olhos com força, fechou a boca com força para ficar calada. Calada. Estava vencida, arrasada. Derrotada. Dormiu depressa. Não se lembra de ter acordado com o susto dele nessa noite, mas se lembra de ter sonhado com Cecília. Cecília era uma mulher bonita, jovem, alegre, que ela jamais tinha encontrado antes e não tem a menor idéia do que poderia estava fazendo em seu sonho, equilibrada nas pontas dos pés, parada naquele lugar tão claro, tão iluminado, tão ofuscante, vestida com uma roupa que refletia tanta luz, uma roupa feita com o tecido da cortina, que balançava e balançava por causa da janela escancarada na manhã, Cecília sorrindo para ela, Cecília sorrindo com a boca e com os olhos, Cecília sorrindo com o corpo todo, Cecília sorrindo como uma boba.

 

 

© Junia Nogueira de Sá
 

publicado por ardotempo às 14:44 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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