Da paciência, do silêncio e do recato
Sensíveis hieróglifos - MARIANA IANELLI
Entrevista concedida a Rogério Pereira - Jornal RASCUNHO, Curitiba PR Brasil
Aos 30 anos, Mariana Ianelli é uma das mais destacadas vozes da poesia contemporânea.
Estreou em 1999, com Trajetória de antes. Agora, com Treva Alvorada, chega ao sexto livro. Nesta entrevista concedida por e-mail, Mariana fala de sua trajetória poética, da composição da nova coletânea, do panorama da poesia brasileira e de dois temas que lhe são muito caros: a morte e Deus, entre outros assuntos.
Rogério Pereira: Você diz que cada um de seus livros compõe um percurso. Ao chegar a Treva Alvorada, a sexta reunião de poemas, como você avalia a composição deste percurso, iniciado em 1999, aos 20 anos, com Trajetória de antes?
Mariana Ianelli: Enquanto um livro está sendo escrito, existe uma lógica interna que não aparece e, nesse caso, tentar o cálculo perfeito seria tão ingenuamente ambicioso quanto querer premeditar uma vida. Digo isso pensando não exatamente no percurso de uma década, mas em ciclos, cada livro uma vida. Agora, reavaliando esse caminho, vejo que os títulos falam de um lugar (Trajetória de antes, Almádena), de um estado de espírito (Duas chagas, Fazer silêncio), de uma duração (Passagens, Treva Alvorada). Há temas que sempre ressurgem, mas a cada livro o olhar é outro, um olhar novo, nascente, porque a vida é outra. Assim acontece um ciclo de nascimento e morte, morte e renascimento.
RP: Treva Alvorada foi escrito em 2009 durante os meses de enfermidade e morte de seu avô, Arcangelo Ianelli. Como foi todo o processo de escrita dos poemas em um momento tão delicado, em que a vida nos parece ainda mais incerta?
MI: Foi um período dificílimo, de guerra interna, de sofrimento, um desses momentos em que nenhum subterfúgio funciona. Nessa hora ficamos sozinhos com as palavras. Na realidade, Treva Alvorada começou a ser escrito no final de 2007 e terminou meses depois do falecimento do meu avô, em 2009. Os poemas assimilaram essa despedida, é verdade, mas não há uma referência explícita ao meu avô no livro senão na dedicatória e nos poemas da oitava parte. Ou seja, o que foi uma circunstância pessoal se transfigurou em uma vivência poética, houve uma redescoberta dessa morte, porque a realidade concreta pode ser também a grande metáfora de uma realidade invisível. No livro, os poemas acabaram agrupados em nove partes.
Na primeira parte, foi um despojamento de projetos, de expectativas; na segunda parte, um apelo ao outro, um pacto amoroso com o outro, na promessa, na renúncia ou em um último abraço; na terceira parte, foi um questionamento da fé, da esperança, daquilo que nos resta quando sobrevém a ruína; na quarta parte, a figura do soldado, aquele que se vê no campo de batalha, outro que é prisioneiro, e o desertor, espelho do filho pródigo; na quinta parte, a Quimera, o Narciso, a Esfinge, mitos que se aproximam uns dos outros, me parece, por um despertar que envolve sacrifício; na sexta parte, o assentimento na morte, a descida ao fundo da noite, onde começa a alvorada; na sétima parte, poemas que visitam algumas passagens bíblicas, como a parábola do filho pródigo, a peste das casas, a destruição de Sodoma, a origem dos Moabitas; na oitava parte se concentram os poemas dessa experiência pessoal de morte do meu avô, a provação de um homem levado ao limite das suas forças, um homem como Jó, ou Hércules em seus trabalhos; na última parte, poemas que falam para Deus, ou que desembocam em um desarmamento final, em um consentimento lírico. Resumidamente, o caminho foi esse.
RP: No texto de apresentação de Treva Alvorada, você escreve que “a paisagem que se delineia, agora, espera seu redescobrimento”. Você acredita que os poemas serão outros quando absorvidos pelo leitor? O que você pretende causar neste leitor?
MI: Penso que o sentido de um poema depende de um leitor comovido e essa comoção, esse transporte, vem de uma experiência pessoal, por isso acredito sim que cada leitor faz o seu mergulho, o seu percurso de leitura, cada um é peregrino do seu próprio labirinto. Eu mesma redescobri os poemas de Treva Alvorada depois de terminado o livro.
Por exemplo, o fato de o primeiro poema se chamar Exílio e o último Na casa do pai não foi algo que eu tivesse planejado, foi um itinerário que se formou no fim de tudo. E, quando terminamos um livro, já estamos em outra parte, é como se deixássemos uma gruta cheia de hieróglifos. Então um dia alguém entra ali, acende um fogo e descobre todas aquelas imagens. Os poemas esperam por isso, por essa visita, esse fogo que está com o leitor.
RP: A morte está no centro de Treva Alvorada. De que maneira você lida com este tema no dia a dia, já que “É inútil desafiar o pó / E, contudo, desafia-se”?
MI: A morte está presente para mim todos os dias e em todos os livros. Morremos tantas vezes, enfrentamos tantas passagens que a última delas não faz mais que romper um último vínculo. Conviver com essa perspectiva educa a atenção, a palavra passa a ter um outro peso, é preciso prestar contas do que é dito, assumir um compromisso, uma vigilância, além de certa modéstia diante do que escapa ao nosso domínio. Todos desafiamos o pó construindo, criando, sabendo admirar, é um pacto pela beleza que nos põe do lado da vida. Não é a presença da morte enquanto desolação, esterilidade, mas aquele intervalo de criação entre tarde e manhã, um vazio que está ali como embrião de coisas vivas.
RP: De que maneira a literatura (e em especial a poesia) tornou-se protagonista em sua vida? Quando você decidiu ser escritora?
MI: Desde os quinze anos a poesia me acompanha. Tive uma adolescência, digamos, mais recolhida, então, com o tempo, inevitavelmente a literatura foi ganhando espaço. Além de prazerosa, tornou-se necessária, uma espécie de tempo interior que foi se alargando. Trajetória de antes e Duas chagas foram resultado desse meu primeiro contato, ainda muito intuitivo, com a poesia. Passagens, que veio na seqüência, de certa maneira é uma síntese dessa experiência inaugural, aquele que poderia ter sido o meu primeiro livro.
RP: Há uma profusão de poetas espalhados Brasil afora. O que tem a dizer a poesia contemporânea brasileira? E o faz com qualidade?
MI: Há centenas de poetas, realmente, alguns muito bons, já com prestígio, outros que ainda esperam ser reconhecidos. O que às vezes parece faltar à poesia é um arrebatamento que não seja somente intelectual, algo parecido com aquela sinceridade pungente que levou o jovem Vinicius de Moraes a dizer em um poema: “Afugenta o infinito que me chama/ Que eu estou com muito medo, minha mãe”. Falta um pouco essa coragem, essa entrega a alguma coisa comovente, desobrigada de uma exibição de inteligência. A metalinguagem, por exemplo, expôs os alicerces da poesia como um enorme esqueleto. Agora, me parece, seria o caso de dar vida a esses ossos, fazer o espírito entrar neles.
RP: Nestes tempos dos mais apressados, interligados e insones, a poesia e sua lentidão são o necessário contraponto? É possível cobrar isso da poesia?
MI: A poesia não se submete à pressa, seu tempo é outro, é o tempo da liturgia, como diria Cristina Campo. Acontece que vivemos em uma época de violenta desatenção, de falta de silêncio, de tirania da eficácia, uma época em que o espalhafatoso se tornou uma das mais emblemáticas expressões da nossa angústia. Quando parece não haver mais o que dessacralizar, dessacralizamos o tempo. Talvez nada seja tão subversivo hoje quanto fazer durar, ter paciência. Creio que a pergunta é, na verdade, se podemos cobrar da poesia imediatez, rendimento, participação nesse ritmo convulsivo.
RP: Deus percorre as páginas de Treva Alvorada com uma presença robusta e importante. O que Deus significa para você? Ele é imprescindível a sua vida?
MI: Acho que basta uma imagem. Quinze anos atrás, uma menina chamada Cassiana, que era minha colega de classe, morreu. Eu me lembro de entrar em uma sala lotada de crianças e ver aquela menina tão bonita, ali, impassível, no meio das flores. Era uma beleza insuportável de se ver. Para mim, esse é o rosto de Deus.
RP: A poesia lhe satisfaz plenamente a necessidade criadora ou está em seus planos dedicar-se também à prosa: conto, romance ou crônica?
MI: Estou começando a escrever crônicas, é um gênero que me encanta porque flerta com a poesia, tem esse olhar mágico sobre o instante. Já o conto e o romance têm outro tempo, outro foco, e, nesse território, eu me contento em ser uma boa leitora.
RP: Quais autores nunca lhe abandonaram? Como é a sua rotina como leitora?
MI: Leio sempre Drummond, Hilda Hilst, Marguerite Duras, Wislawa Szymborska. Minha rotina geralmente envolve algum tipo de pesquisa, algum estudo, e, como um livro chama para a roda muitos outros, acabo alternando a leitura de poesia, ensaio e romance. Costumo também traçar alguns roteiros, mas é difícil segui-los à risca porque as descobertas, os interesses vão se ramificando.
RP: Que tipo de literatura não a atrai de maneira alguma? Quais pecados literários são imperdoáveis?
MI: Ficção científica e literatura policial, confesso, não me atraem. Pecados literários existem vários, mas os imperdoáveis, para mim, são os trocadilhos, o uso do silêncio como mero recurso, a inovação pela inovação, o construto.
RP: Hoje, discute-se muito o impacto que as novas plataformas de leitura (em especial os e-readers) podem ter sobre os leitores e a literatura. Você acredita que o mundo digital também dominará a literatura? O livro de papel está com os dias contados?
MI: Não acredito nessa concorrência. Vejo as plataformas digitais como um novo suporte, de caráter utilitário, digamos, emergencial. O livro como objeto tem outra natureza, é sensual, tem densidade, cheiro, textura, e todos esses prazeres fazem parte da intimidade da leitura, não são descartáveis nem substituíveis, sem contar que o texto impresso tem outro peso, no papel a palavra se cristaliza.
RP: Você é mestre em Literatura e Crítica Literária e publica resenhas em jornais e revistas. Como você avalia o espaço para a literatura na grande imprensa e a qualidade da crítica literária nela publicada?
MI: O espaço para a literatura na grande imprensa, de um modo geral, é escasso. A crítica, em boa parte também por falta de espaço, acaba sendo tímida, limitada a vôos mais curtos. Convencionalmente falando, não temos mais a figura do crítico, temos escritores e jornalistas que assumiram esse papel, o que pode ser enriquecedor em termos de uma abordagem criativa, por outro lado, pode ser perigoso, porque a crítica corre o risco de ficar condicionada às convicções literárias de seu autor.
RP: No poema Entusiasmo, lê-se: “A morte vacila um passo/ E nos concede uma hora”. O que você faria se a morte lhe concedesse apenas mais uma hora?
MI: Seria como um parto do espírito. Iria me ocupar dessa hora, simplesmente.
RP: Há no Brasil uma quantidade imensa de oficinas literárias. A maioria está voltada à prosa. Você acredita na eficácia destas oficinas? Elas podem ensinar algo a quem deseja escrever poesia?
MI: Creio que as oficinas podem ajudar na sensibilização do olhar, instigar perspectivas, além de dar uma orientação sob o ponto de vista técnico. Acredito, porém, que existem sutilezas que não se ensinam, que o escritor precisa descobrir por ele mesmo, errando, na dupla acepção do termo, na errância e no equívoco, porque é aí que o poeta encontra sua voz própria, quando ninguém o auxilia, quando há somente ele e um abismo.
RP: Que conselho você daria a quem ambiciona dedicar-se à literatura como poeta?
MI: Antes de tudo, paciência, “não forçar o poema a desprender-se do limbo”, como diria Drummond, porque o tempo da precipitação poética não se submete a prazos preestabelecidos. Depois, o diálogo com outros escritores, poetas, ou simplesmente bons leitores, não importa que esses interlocutores sejam poucos, importa que sejam interlocutores verdadeiros. E o paraíso de uma biblioteca, claro, onde um poeta pode estar sozinho, mas nunca estará desacompanhado.
Entrevista publicada em RASCUNHO - Publicação gentilmente autorizada por Rogério Pereira