Paul Valéry: ator das idéias
Em sua vida de professor e ensaísta,
João Alexandre Barbosa foi o assíduo leitor de Paul Valéry, que se transformou num caso de perseguição a "
exigir um ajuste de contas". O resultado não foi tanto o aparecimento de um livro original que o crítico brasileiro poderia ter concebido, mas sim a reunião de nove ensaios, redigidos e publicados entre 1970 e 2005, que percorrem a obra do poeta francês:
A comédia intelectual de Paul Valéry (
Iluminuras, 159 páginas, R$ 35). Coletânea que bem demonstra a "
permanência e continuidade" de uma obra surpreendente por sua dimensão filosófica e por seu exame exigente da linguagem, a conduzir a literatura a uma via do fracasso da expressão; obra que também se impõe por seu gigantismo: somente a edição fac-similada dos
Cahiers ocupa 35 cadernos de mil páginas cada um, resultado das anotações diárias de um pensador que não se ocupava dos fatos cotidianos, mas da investigação que busca o auge radical de lucidez e consciência sobre as "
linguagens, sejam as verbais, sejam as das matemáticas e da filosofia".
Devotado à busca metódica do processo, desvinculando-se da "
idéia de acabar" (T. S. Eliot criticou Paul Valéry por estar "profundamente preocupado com o problema do processo, de como é feito o poema, mas não com a questão de como é relacionado ao resto da vida"), o poeta francês encontrou em Stéphane Mallarmé, quase 30 anos mais velho, o modelo extremado de experimentação com o texto poético. E decretou: "
Mallarmé compreendeu a linguagem como se ele a tivesse inventado". No ensaio "
Mallarmé segundo Valéry" - reproduzido de
A metáfora crítica (1974) - João Alexandre Barbosa faz a análise da relação fascinante entre mestre e discípulo, aparentemente invertida: pois o mestre teria produzido a obra inovadora (a exemplo de "
Um lance de dados", que rompeu com a tradição do verso), enquanto o discípulo permaneceu atrelado à forma clássica, racionalizando somente no ensaio o vigor e as implicações que haviam sido demonstradas naquela poesia.

Na obra poética, portanto, Paul Valéry é o discípulo ultrapassado - provavelmente porque, como artista, não ousava comprometer-se com o processo de recusas e a imposição de limites entre o silêncio e a autodestruição. Permaneceu lúcido, inteligente e clássico. Mas não para todos: é conhecida a opinião de Edmund Wilson, em
O castelo de Axel (1931), de que os ensaios de Paul Valéry não trazem "
uma grande riqueza de idéias", apenas "
a representação de uma situação intelectual, e não o desenvolvimento de uma linha de pensamento". Nessa percepção, o rigor artístico proclamado pelo poeta e filósofo surge "
graças a alguns procedimentos estilísticos,
e não a uma qualidade da sua lógica". Superdiletante e esnobe,
Paul Valéry não teria contribuído para avançar os estudos de filosofia da linguagem, mas favorecido "
uma espécie de misticismo estético" capaz de ser aplicada somente a Stéphane Mallarmé e a alguns simbolistas, incluindo-se o próprio Paul Valéry.
No caso de
A comédia intelectual de Paul Valéry, porém, a safra é excepcional: o livro deve ser mesmo a melhor introdução às obras e às idéias do poeta ao alcance do leitor brasileiro. Nele se demonstra, por exemplo, que Paul Valéry, durante décadas, sonhou em conceber uma "
comédia intelectual", com Leonardo da Vinci no papel principal, consagrando-a "
às aventuras e às paixões da inteligência" e aproximando-a em importância da Divina comédia e d'A comédia humana. Segundo o poeta, "
seria uma comédia do intelecto, o drama das existências dedicadas a compreender e a criar".
Projeto jamais realizado e de caráter soberbamente elitista, pois nele estaria exposta a humanidade em "
tudo o que a eleva um pouco acima das condições animais monótonas", graças à "
existência de um número restrito de indivíduos, aos quais devemos o que pensar, como devemos aos operários o que viver". Consensualmente, um dos personagens imaginários dessa comédia intelectual seria monsieur Teste, marcante por seu rigor intelectual e por seu distanciamento social, que João Cabral de Melo Neto assim preferiu registrar num poema: "
Uma lucidez que tudo via, / como se à luz ou se de dia; / (...) porém luz de uma tal lucidez / que mente que tudo podeis".
(
Publicado no Jornal do Brasil, fevereiro 2008)

A COMÉDIA INTELECTUAL DE PAUL VALÉRYCrítica e Teoria Literária, 160 páginas 2007
Autor: João Alexandre Barbosa
Editora: Iluminuras – São Paulo SP
ISBN: 978-85-7321-253-2