Sábado, 11.02.12

Ausência de mim mesmo em mim mesmo

Sem sofrimento nem dor

 

António Lobo Antunes

 

Ontem, a meio da tarde, o meu pai disse

 

- Ai filho

 

e ficou-se como um passarinho, sem sofrimento nem dor. Não aborreceu ninguém. Aliás, durante toda a vida, pelo menos desde que o conheço, nunca aborreceu ninguém. Antes calculo que também não, era a paz em pessoa: gritos, zangas, impaciências foram coisas que não lhe vi. Passava as tardes na sua cadeira, a olhar a janela, quase não comia, quase não falava a não ser para garantir

 

- Estou bem

 

a minha mãe foi-se embora com o irmão dele, era eu pequeno, informou

 

- Vou viver com o Zé

 

e até hoje, não houve cenas, partes-gagas, discussões, o meu pai e o meu tio levaram-lhe, a meias, a bagagem, despediram-se no passeio e não tornei a vê-los. Não fiz perguntas e o meu pai não me explicou nada, deixou falar os factos. De início ainda pensei que mais dia menos dia se casasse outra vez. Não casou. E, tirando a madrinha dele, não nos entrou qualquer mulher no apartamento. À parte um bocadinho de pó a mais e umas nódoas por aqui e por ali as coisas continuaram na mesma: o meu pai na oficina e eu na escola, a seguir o meu pai e eu na oficina, a seguir o meu pai reformado e eu na oficina, aos domingos um passeiozeco a ver o rio, lado a lado, em silêncio, não me apareceram namoradas em condições, não éramos pessoas de criar amizades, um de nós preparava qualquer coisa para o jantar, o que não preparava qualquer coisa para o jantar tratava da loiça, um bocadinho de televisão antes da cama, coloquei uma cadeira ao lado da sua para olhar a janela com ele, as árvores, os pombos, os prédios, essas coisas e o tempo foi passando sem a gente dar por isso e, tirando um ou outro

 

- Ai filho

 

da sua parte não necessitávamos de conversas. Volta e meia a vizinha de baixo, viúva, oferecia-nos uns enchidos que trazia da terra, uma senhora que uma tarde me abraçou nas escadas

 

- Não te sentes sozinho?

 

e, como não me sentia sozinho, ficámos por ali mas ainda me lembro do perfume e de pegar na minha mão e a espalhar no seu peito. Nem sequer a tirei, acabou por cair por si quando ela se afastou, do mesmo modo que os enchidos acabaram a partir dessa altura e, pouco depois, um homem começou a morar com ela, empregado na drogaria à esquerda da oficina.

 

De vez em quando escutavam-se uns barulhos, a vizinha pedia

 

- Não me batas mais Jorge

 

os barulhos iam cessando a pouco e pouco, o homem saía a encontrar-se com a dona da papelaria, um de cada lado do balcão, a murmurarem sorrisos e dava-me ideia que a vizinha a chorar. Posso estar enganado mas dava-me ideia que a vizinha a chorar, queixando-se ao marido defunto. Que eu tenha reparado o marido defunto não a protegeu, em regra os maridos defuntos não se metem nesse género de problemas, preferem não sair das molduras. Por acaso ainda não esqueci o perfume nem o peito.

 

Não é que pense muito nisso mas continuam presentes. O homem da vizinha mudou para a cave da dona da capelista, isto há cinco ou seis anos. Não sei se lhe bate também porque os barulhos não chegam aqui, mas há meses a mulher trazia gesso no braço, o que não é suficiente para tirar ilações visto haver dúzias de maneiras de partir braços, se for a pensar acho, sem esforço, uma porção delas e, juntar a isso, a dona da capelista não parecia infeliz.

 

O meu pai comentou uma ocasião

 

- Não se me davam uns enchidos

 

eu continuei a olhar a janela e a história acabou dessa forma, embora a mim também não se me dessem uns enchidos. São um bocado indigestos porém na família temos bom estômago, até parafusos, se fosse preciso, a gente almoçava.

 

Bom. Portanto ontem, a meio da tarde, o meu pai disse

 

- Ai filho

 

sem alarme, tranquilo, e ficou-se como um passarinho.

 

O funeral é amanhã, às três horas e, pelas minhas contas devemos estar nós dois e o padre, porque não disse nada na oficina, mais os sujeitos da agência, claro, e uma coroa de flores que está incluída no preço. Deve ficar tudo despachado por volta das cinco, cinco e picos e, ao regressar a casa, passo na vizinha de baixo. Talvez me mande entrar, talvez partilhe uma morcela comigo, talvez reencontre o perfume e o peito, talvez se interesse

 

- Não te sentes sozinho?

 

e, no caso de se interessar

 

- Não te sentes sozinho?

 

sou pessoa para responder logo que sim. Há momentos em que me vai apetecer, conheço-me bem, companhia para um passeiozeco a ver o rio, alguém que me pegue no braço, a respirar perto de mim. Como se tivesse uma esposa. Tenho a certeza que o meu pai compreendia. E um jantar em condições, numa mesa com toalha e tudo e um copito de tinto para amortecer. E a vizinha de sapatos e brincos e a boca pintada. E os dedos dela sobre os meus. E o volume a aumentar-lhe num suspiro. E um segredo na minha orelha

 

- Sentes-te muito ou pouco sozinho?

 

um segundo segredo

 

- Não vais tornar a sentir-te sozinho,

 

prometo um joelho pegado ao meu, sob a toalha

 

- Não te chamas Jorge, pois não?

 

e, como não me chamo Jorge, o meu lóbulo apertado com ternura. E a mão dela a pegar na minha, a espalhá-la no peito, no outro peito, na barriga, eu

 

- Chamo-me Carlos

 

e uma segunda almofada na cama, e a minha nuca arrepiada por um mindinho lento, e pedacinhos de enchido que me coloca na boca, e a janela para a mesma rua que a minha, e eu estendido nos lençóis, e o pedido dela

 

- Dá um abracinho à mamã

 

e dou um abracinho à mamã, dois abracinhos à mamã, três abracinhos à mamã, e o meu coração desabalado, o meu corpo a tremer de alegria, uma impressão no peito, uma névoa nos olhos, o meu tronco incapaz de mover-se, os meus ouvidos a zumbirem, uma espécie de tontura, uma espécie de ausência de mim mesmo em mim mesmo, uma tentativa de falar sem que nenhuma palavra, a língua presa, os dentes moles, um frio esquisito por dentro, tão esquisito por dentro, a suspeita que eu


- Ai filha

 

a quase certeza que eu

 

- Ai filha

 

a certeza absoluta que eu

 

- Ai filha

 

e a ficar-me como um passarinho, sem sofrimento nem dor.

 

 

 


 

António Lobo Antunes

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Sexta-feira, 13.01.12

Felicidade

Domingo com Verdi

 

Domingo é o dia mais difícil da semana: ruas sem ninguém, persianas descidas, quase nenhum automóvel, em que sítio andarão as pessoas? Horas lentas, pesadas, esta casa ao mesmo tempo igual e diferente, a dizer-me qualquer coisa que não entendo. O que será? Uma espécie de sol na varanda, até à mesa, um brilhozito na jarra.

 

O maluco do costume não dança no passeio a gritar

 

- Sou feliz

 

a estrangeira sem abrigo não passeia nos semáforos o saco de plástico, a estender a mão para carros indiferentes.

Parece que só eu no bairro. De certeza que só eu no bairro.

 

Amanhã a agência de viagens aberta de novo, a farmácia, o restaurante que perdeu quase todos os clientes, com o dono à porta, vencido. Tem mais rugas dos lados da boca, dos lados dos olhos. Para além do restaurante uma mercearia, um sítio onde fazem tatuagens, uma sucursal de banco. Até há pouco havia duas, uma delas fechou. Vão fechando coisas por aqui. O minimercado, por exemplo. Lojas. O maluco usa barbas, farrapos. Continua feliz. Mais do que o senhor que andou na guerra em África e, de vez em quando, dá pontapés nos caixotes, terrível de ordens militares. Mete uns copos ao bucho e voltam-lhe os tiros.

 

- Quatro mortos em cinco minutos, seus cabrões

 

afiança ele

 

- Quatro mortos em cinco minutos

 

e a gente calados. O sujeito do estabelecimento de telemóveis encolhe os ombros, uma velhota assusta-se em pulitos de galinha, passa de largo, aflita. Tirando a velhota ninguém liga ao guerreiro. O senhor que andou na guerra em África faz continências, amansa, some-se numa esquina. Daqui a nada regressa, mais feroz ainda. Há um outro que me mostra análises

 

- Que tal o meu fígado?

 

tiradas de um envelope usado

 

- O médico mandou-me ir lá daqui a três meses

 

e a mão treme-lhe enquanto vejo, de esguelha, os papéis. Explica

 

- Eu o fígado e a minha esposa

 

os nervos apontando uma criatura de expressão sofrida que já não sabe o que é dormir

 

- Há mais de sei lá quanto tempo que não descanso

 

esclarece a esposa numa vozita murcha

 

- Há mais de sei lá quanto tempo, senhor doutor

 

lembrada de que fui doutor.

 

- Nem o chá de tília me vale, palavra de honra.

 

Tília, lucialima, camomila, já bebeu a ervanária inteira. O filho polícia, a filha e o genro desempregados, três netos. E inicia, com a vozita murcha, uma digressão longuíssima acerca da miséria do subsídio de desemprego. No final da digressão levanta o queixo até mim

 

- E quando o subsídio acabar?

 

enquanto o marido concorda, a guardar o fígado no envelope.

 

- Não entendo estes exames

 

conta-me ele, antigamente era com cruzes, percebia-se.

 

- Mais de três cruzes e encomendava-se o caixão.

 

Hoje, domingo, devem trancar-se no seu primeiro andar, com o peso do fígado e dos nervos às costas e um bulezito de menta entre eles, fitando-se:

 

- E se chamássemos a ambulância?

 

com a filha e o genro desempregado, de lápis em riste, à cata de anúncios, nem que seja de limpezas

 

- Os dois com estudos, senhor doutor, já viu? no jornal. Comem o quê?

 

E a miséria escondida: ele de gravata, ela de cabelo pintado.


A esposa dos nervos orgulhosa

 

- Asseadíssimos e não só asseadíssimos, pinocas, a infelicidade não é para mostrar.

 

Na cave do prédio em que habitam um velhote magrinho que tocava clarinete na banda da Guarda (clarinete ou flauta) e elogia Verdi

 

- Um grande compositor

 

pela boca quase sem mobília. Sobra um dente espetado que garante

 

- Só de pensar em Verdi arrepio-me todo

 

com um hálito a vinho que me faz tremer os joelhos. A mulher dele apanha um estalo de vez em quando, sem motivo, ou antes, conforme ele me elucida

 

- Por causa das coisas

 

minúscula, sofrida. Engomava para fora, abafava uma tosse complicada na palma, não refilava. Há semanas o artista deu com o clarinete ou a flauta no toutiço da criatura e o instrumento entupiu-se, facto que não lhe perdoa

 

- Enquanto não me deu cabo da música não descansou

 

dado que, de vez em quando, ainda soprava uns compassos. Pede-me a opinião, exibindo o tubo

 

- Acha que se eu lhe bater ao contrário isto se compõe?

 

Não tenho a certeza da resposta mas pode ser mas pode ser que sim: um Verdi para a esquerda entorta, um Verdi para a direita corrige.

 

- É capaz

 

opino eu, e ela a proteger-se com o braço.

Domingo: ruas sem ninguém, persianas descidas, uma espécie de sol na varanda, até à mesa, um brilhozito na jarra. O maluco do costume

 

- Sou feliz

 

ausente, o senhor da guerra em África sem fazer continências. Deixo de escrever, aguço o ouvido: uma pancada para a direita primeiro e, a seguir, o grande Verdi a arrepiar-me todo.

 

António Lobo Antunes

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Domingo, 04.12.11

O doce cotidiano das cidades

 

 

 

Cristaizinhos de gentileza

 

Taciane Corrêa, de Paris (França)

 

 

Durante esta semana meus pensamentos ficaram açucarados

 

Repletos de creme, de chantilly e de um toque de caramelo

 

Porque descobri que as pessoas que gostam de doce são mais amáveis e gentis

 

E porque o salão nobre da prefeitura de Pelotas se recheou de doce para comemorar

 

Assim, resolvi transformar minha semana gélida em um doce momento

 

Aproveitando para visitar e descobri novos sabores


Em Paris, não caminhamos por quadras e sim por minutos

 

Então... A cada três minutos uma pausa para sentir, observar, degustar e se deliciar com os peculiares aromas

 

Na quadra que não tem uma pâtisserie, tem uma maison du chocolat ou uma colorida banquinha repleta de guloseimas.  Após ler a pesquisa que foi realizada nos Estados Unidos, na qual afirma que as pessoas que comem doces são mais queridas, prestativas e simpáticas

 

Saí para flanar feliz e sem culpa

 

Pelos doces da moda e pelas centenárias histórias dos clássicos franceses

 

Encontrei milhares de nuances sucrés.  O colorido exótico dos macarons.  O aroma estonteante das boutiques de chocolate.  As curiosas origens de doces do século passado.

 

Os pedidos de Napoleão que são como bálsamos de alegria.  O relâmpago estouro marcante da éclair.  Criada por volta de 1800 assume, hoje, criativas versões

 

Neste momento para acessar minhas lembranças gastronômicas da infância me delicio com Paris-Brest, um doce circular, leve e fluido

 

Exatamente como a roda de uma vélo

 

Mas o que é mesmo que uma bicicleta tem a ver com a história? Inicialmente nada, até a atendente da pâtisserie começar a me explicar que o doce foi criado em 1891 para homenagear uma corrida de bicicleta Paris-Brest-Paris.  Por aqui tudo é possível!!!

 

Alguns grandes e renomados profissionais são chamados de Picassos da pâtisserie

 

O design de alguns doces foi criado por estilistas.   Sim, aqueles profissionais da moda... Até o brasileiro Alexandre Herchcovitch andou fazendo arte por aqui

 

Nossa sorte é que os reis também gostavam do sabor doce da vida.  No reinado de Luís XIV foi realizado um profundo trabalho para melhorar o sabor das frutas.   Que logo passam a fazer parte do mundo das sobremesas.  São borbulhas frutadas que refinam nosso paladar

 

Por aqui, a criação da tarte tatin na transição do século 19, pelas irmãs que viraram a torta de maçã de pernas para o ar

 

Por aí, os doces cristalizados e as compotas. Uma influência dos franceses Por aqui, os doces familiares feitos de cereja, clafoutis e de outras frutas, flaugnarde

 

Por aí, chimias, geleias e doces em pasta

 

Os doces são peças importantes da gastronomia da França

 

E também são tratados com deferência por aqui Inclusive alguns se diz ser o segredo da eterna juventude, com 126 anos de vida O Crème de Marrons cruza o tempo com o autêntico sabor da castanha de l'Ardèche

 

Agora de posse do Selo de Indicação de Procedência será possível proteger a identidade do doce pelotense

 

A tradição doceira de Pelotas é legítima e garantida

 

Aproveite a Capital Nacional de Doce para flanar e se perder em seus espirais adocicados

 

Flutue com um pastel de Santa Clara

 

Amarre-se com um bem-casado

 

Inspire-se com o camafeu

 

Brinque com um brigadeiro

 

Enrole-se em um ninho

 

Deixe os cristais de gentileza tomarem conta do seu dia a dia.

 

 

 


 

Taciane Corrêa - Publicado no Diário Popular - Pelotas  

 

 Imagem: Fotografia de Edison Vara

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Domingo, 23.10.11

Uma escritora em Paris

De Pelotas à Paris

 

Existem cidades que nos conduzem com leveza e simplicidade.

 De uma forma tão natural como se ali tivemos nascido.

São receptivas, são gentis, são mágicas e nos permitem sonhar.

 

Quando cheguei à Pelotas foi exatamente assim.

A cidade me acolheu e me deu asas Conduziu-me com desenvoltura por suas belezas.

Dia após dia a descubro com prazer e encantamento.


Chegar à Paris foi da mesma forma, um estar repleto de brilhanturas poéticas.

Permitindo assim estabelecer relações e afinidades.

Nos próximos meses, vou desvendar Paris e fazer conexões com a Pelotas que habita em meu imaginário.


Nesta primeira semana já constatei de que será perfeitamente possível.  

Estar na cidade onde Walter Benjamin escreveu suas primeiras narrativas após caminhar, observar e sentir Paris,

permite entender que o flâneur está entre o lugar e não-lugar, entre o tempo e não-tempo.

Em um espaço onde a distância rapidamente se desfaz.

Onde as pontes são erguidas para sociabilizar.

 


 

Paris começará a estar tão próxima de Pelotas.

Como o jornal está em suas mãos.

Como as letras estão impressas sobre o papel.

Como um flâneur do mundo está percorrendo o imaginário pelotense ao desvendar entrelinhas e narrar suas histórias.

Sua atividade preferida é passear, praticamente sem rumo.

Em Paris, o outono com seus dias de um sol magnífico têm permitido caminhar.

Simplesmente caminhar...

Para um flanar contemplativo. Um perder-se e encontrar-se, constantemente.  

Aqui se caminha muito, um pouco mais que em Pelotas.

 

No primeiro momento vivi o Boulevard Saint-Germain.

Um lugar para travar duelos entre os grandes intelectuais da Europa, a moda e a cultura.

Uma passarela, como o calçadão da Quinze e as galerias pelotenses.  

Que começam a desabrochar para a vida cultural da primavera.

Pela Quinze de Novembro se encontra uma tessitura de beleza, de elegância e de conhecimento.

É a rua da Bibliotheca Pública, com um entrelaçamento de cultura, informação e harmonia.

Da Praça Coronel Pedro Osório onde logo, logo ocorrerá mais uma edição da Feira do Livro.

Uma rua de pequenos museus, história e ensinamentos.

De cafés, encontros e diálogos.

De ondas sonoras compondo dias musicais.

De epígrafes centenárias do Diário Popular.

Entretons que transcendem Saint-Germain.

Deslocamentos que alcançam a Quinze.  

De Pelotas à Paris...

De Paris à Pelotas...

 

Taciane Corrêa - (Paris, 2011)

Publicado no Diário Popular

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Domingo, 11.09.11

Feiras, gastronomia e incêndio

Literatura vai de menos 1 a 40 graus

 

Ignácio de Loyola Brandão

 

Bem interessante. Enquanto a Flip foi dominada pelo escritor português walter hugo mãe, conquistando homens e mulheres, a Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, que continua sendo o maior evento do Brasil e da América Latina, girou em torno do talento e do carisma de outro português, Gonçalo Tavares.

 

Tranquilo, simples, ele foi "comendo" todo mundo pelas beiradas, como se diz por aqui. Na mesa sobre identidade, literatura e cultura na globalização, foi o único a fazer um depoimento atual, consciente, lúcido, ao contrário do celebrado (e decepcionante) Luiz Costa Lima, que se julga em altíssima conta e desprezou a Jornada e os participantes dormindo no palco, diante de 6 mil pessoas, e dando um depoimento pífio. Ao acordar, atrapalhou-se com suas anotações, disse que as tinha esquecido no hotel. Não tinha nada a dizer. Ensaísta à antiga que fala em linguagem hermética, vazia.

 

Plateia monumental, professoras e estudantes, 18 mil crianças na Jornadinha, ouvindo e conversando com autores infantis. Ninguém bate Passo Fundo. Mauricio de Sousa dominou a cena, crianças de todo o Brasil o conhecem, adoram. Neste momento há pelo Brasil dezenas de feiras (acaba uma, começa outra) e bienais e encontros. Saí de São Joaquim da Barra, interior de São Paulo, onde a prefeita Maria Helena Borges Vannuchi, obstinada e interessada em cultura, insiste em manter uma feira de livros com gente de primeira linha, e parti para Passo Fundo (-1°C na abertura da festa e vento minuano varrendo), norte do Rio Grande do Sul.

 

Segui para o Piauí, para o terceiro Salipa, Salão Literário de Parnaíba (40°C à sombra), na boca do maravilhoso delta que separa aquele Estado do Maranhão. Hoje estou na 2.ª Filmar, Feira Literária de Marechal Deodoro, ao lado de Maceió. O sol come. Livros e literatura por toda a parte.

 

Segunda-feira desço ao interior do Paraná para falar nos Sescs de Cascavel, Pato Branco, Fernando Beltrão e Foz do Iguaçu. Em São Joaquim da Barra, a pamonha deliciosa e delicada, vendida num duas portas em frente da Feira, me provoca água na boca. Duas equivalem a um jantar. No Piauí, doce Estado, há o arroz Maria Isabel, o Capote, o queijo de coalho, a caranguejada.

 

Em Passo Fundo, há a gastronomia dos Biazis, Alcir e Lisete, secundados pelo Serafim Lutz, com saladas inventivas, pernis, massas, filés e picanhas, costelas, matambres, num estilo sulino afetuoso. Alimentar com qualidade mil pessoas é tarefa de competentes. Sentar-se à mesa servida pelo garçom Otavio é privilégio. Com seus cabelos brancos e sabendo tudo, faz você parecer o mais VIP dos clientes, seja VIP ou não. E o que é VIP, afinal? As refeições no Clube Comercial eram no fim de noite, com conversas, papos cabeça, fofocas, informações, vinhos, todos juntos.

 

Esse é o diferencial da Jornada, aglutina pessoas, momentos em que todos se juntam. Os irmãos Caruso, Chico e Paulo, cartunistas e músicos, estão na mesa com Gonçalo Tavares e Affonso Romano de Sant"Anna. Edney Silvestre, um dos mais procurados pelos leitores, juntava-se a Tatiana Salem Levy e à professora Maria Esther Maciel. Marcia Tiburi, filósofa, conversava com Peter Hunt, enquanto Eliane Brum juntava-se a Rinaldo Gama, que foi o único que se preparou convenientemente com uma bela fala para a mesa da comunicação do impresso ao digital. O comer é o momento em que todos se juntam, em lugar de se espalharem em busca de restaurantes espalhados pela noite afora.

 

 

 

A mesa final de Passo Fundo, formação do leitor contemporâneo, provocou incêndio. Alberto Manguel irritou-se com a inglesa Kate Wilson, amável mulher, que levou um projeto de livros em computador, em tablets, ainda em fase de implantação e discussão. Manguel se acha o dono da verdade do livro em forma de livro. Tablets, e-books, iPads são dignos da excomunhão. Arrogante, destratou aos gritos o americano Nick Montfort: "Não tenho e-mail, não uso computador". Para ele significam a deformação do leitor, não uma das formas para se conseguir sua formação. Crente de que é uma grande pessoa, guardião do livro em papel, Manguel partiu com patadas para cima da inglesa que, todavia, sabe espanhol, e respondeu à altura.

 

Manguel, que vem escrevendo e reescrevendo os mesmos livros, tem de encontrar, urgentemente, as portas do século 21, desembarcar neste milênio, e ser mais gentil, admitir que a informática veio para ficar. Uma anedota circulou pela Jornada. Dizem que Manguel foi leitor de Borges. Ao fim de cada leitura, Borges acentuava: "Leu, pode ir embora, não me dê nenhuma opinião".

 

Ao menos, a argentina Beatriz Sarlo, figura exponencial, estava na mesa, deu o tom de grandeza, ao lado de Affonso Romano. O que importa é que literatura, misturada a música, informática e teatro, está sendo discutida em todo o País. Nunca, como hoje, houve tantas feiras e eventos em torno do livro, leitura, formação de leitores. Discussões, debates e buscas de caminhos. A Jornada de Passo Fundo chegou aos 30 anos, milhares de professores passaram por ela, milhares de crianças.

 

A Jornada é a única que não se esgota assim que termina. Aí é que ela começa, com a multiplicação de ideias, conversas, aprendizados, vindos das oficinas, seminários, cursos, aulas paralelas, infinitas, atualizadoras. Recomeça quando acaba. Para culminar, premiou-se João Almino, grande autor com o seu Cidade Livre. O Bourbon Zaffari é o maior prêmio literário privado da América latina. Diplomata de carreira, autor por paixão, Almino levou um susto com o tamanho da Jornada e voltou à Espanha apaixonado.

 

Ignácio de Loyola Brandão

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Quinta-feira, 25.08.11

Os mortos nunca faltam

Uma crónica ou lá o que é

 

António Lobo Antunes

 

Em Almeirim, no almoço anual com os meus camaradas.

 

Ouvir falar de África o tempo inteiro. Tratam-me sempre tão bem! Às vezes tenho dificuldade em distinguir, nos homens de hoje, os rapazinhos de então. Depois um sorriso, um trejeito, qualquer coisa para além das feições e reconheço-os.

 

Trazem as mulheres, os filhos, mostram a fotografia dos netos. Há quem venha do estrangeiro, de propósito. Há quem ainda ponha a boina na cabeça. Quase todos continuam lá, pelo menos uma parte deles continua lá. Os mortos connosco. Falo pouco, como sempre, oiço-os. Vivi tudo aquilo que eles continuam a viver e que, para mim, é uma espécie de sonho.

 

Farrapos de lembranças, coisas que me dizem que fiz e mal recordo. Ao lembrarem-mas avivam-se um bocadinho, desbotam-se de novo. Publicaram um livro com as cartas que escrevi durante aquilo: não o li nunca. Não sou capaz. Não é que queira esquecer, é que foi outro que por lá andou. Foi outro e fui eu, que difícil explicar isto. Não escrevi nenhum livro sobre a guerra, limitei-me a intercalar episódios laterais nos primeiros textos publicados, para estruturar melhor os capítulos e, talvez também, para, em certo sentido, me libertar de episódios que me embaciavam a memória, libertando-me deles como de um vómito.

 

Uma vez liberto deles pensei. Agora posso começar e, então, comecei.

 

Tanto tempo até encontrar o meu tom, o meu modo, uma forma que não devesse nada a ninguém, e em que as vozes alheias não entrassem na minha. Em Almeirim longos abraços enternecidos, saudades, quem sou eu? Sei e não sei, fujo de mim, regresso, persigo-me desisto. Sou muitos. Deixei muitos pelo caminho e continuo a ser muitos. Um dia tudo isto pára. E metem um só no caixão. Fiz o que pude, com a força que tinha, e dói-me que imensos erros, patetices, asneiras. Sofri que me fartei.

 

Algumas alegrias no meio disto, claro, alguns momentos quase perfeitos na eterna guerra civil dos meus dias. É isso que me confunde mais: porquê esta violência interior, estes excessos, esta permanente, desesperada busca? Trocava-me por qualquer um, preferia ser um bicho. Lembro-me de uma senhora alentejana na consulta, com uma doença horrível, ao perguntar-lhe como se sentia. Só fezes, só fezes, bebendo até às fezes, o cálice da amargura.

 

Trazia-me miminhos, ovos, figos, prendas de nada que eram imenso.

 

Há semanas fui ao Porto assinar na Feira, e a ternura e a delicadeza dos leitores comoveu-me. Uma fila de gente que não acabava, pessoas com sacos cheios de livros. Mereço isto, a atenção, o carinho para com um sujeito que lhes dá palavras em páginas coladas no interior de uma capa? Tenho dúzias de defeitos de que me envergonho mas, ao escrever, sou inteiramente honesto. Valha-me isso. Greene dizia que um escritor é um fulano sentado a uma mesa, cercado de criaturas que não existem. Não acho assim: sou um fulano sentado a uma mesa recebendo frases que não entende de onde lhe vêm e se colocam mais ou menos por ordem, apesar dele.

 

A seguir vem o trabalho pesado das correcções sucessivas, cortes, ofício de costura, achar outro modo, horas numa vírgula. Uma sina difícil e esquisita, que me acompanha desde que o início, e me condiciona a vida.

 


 

Em Almeirim com a tropa, emboscadas, flagelações, minas, álbuns e álbuns de fotografias daquilo. Não tenho nenhuma, não quero ter nenhuma. Bastam-me as mangueiras de Marimba que me perseguirão para sempre, cheias de morcegos. Uma longa fila de mangueiras enormes, os crocodilos do rio Cambo, um leão que, no Leste, passou rente à viatura: demasiada tralha já, de que me tento livrar sacudindo o lombo da alma. Em parte sou capaz, em parte não sou. E as mangueiras persistem.

 

Até ao fim hão-de morar comigo? Almeirim uma terra bonita. Não me importava de morar lá, conhecer as pessoas. Não me importava de morar fosse onde fosse, como não me importo de morar aqui, é me indiferente o lugar, desde que haja esferográfica, papel, uma cadeira e uma mesa. O almoço dos camaradas num restaurante enorme, com um casamento ao lado. Acho que um casamento, não sei. Vinha-se cá fora fumar, com o sol a pisar-nos. Assinei um livro ao dono do restaurante, antes de me vir embora. Eles continuaram lá. Gente de quem eu gosto, com quem vivi muitos meses. Nem os mortos faltaram: estávamos todos, os mortos nunca faltam. São os primeiros a chegar e os últimos a deixarem-nos. E aqui estão eles comigo, apesar de eu sozinho.

 

António Lobo Antunes

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Segunda-feira, 22.08.11

O sobrado

Desde a Casa do Barão

(ou A ruazinha Uma terra só)

 

João Félix Soares Neto

 

 

 

Nós nos sentimos lá dentro, no andar de cima da Casa do Barão. Com o risco de incorrer num critério meramente saudosista, consideramos que as duas ou três lojas do térreo – onde realmente estivemos – representam uma afrontosa ocupação.

 

Então é de se inventar, também, que nos abrira a porta um encarregado, homem encarquilhado, baixo e extrovertido. Tão falante que, já ao pé da escadaria de cedro, gesticulando com as chaves na mão, enaltecia os antigos fidalgos que, por mais de meio século, habitaram o casarão; e que, quando lhes convinha, em vez daquela escada, subiam pelo elevador – uma engenhoca (talvez de pau e ferro), com roldanas e cordas puxadas por escravos.

 

É de se supor, ainda, que lá dentro do sobrado restara um penumbroso vazio em que o bodum úmido do tempo tresandava das tábuas do assoalho e do teto; da escaiola, surpreendentemente conservada; e dos lustres de bronze que, por sorte, ninguém ousara desmontar.

 

A Casa das Sete Torres e a Casa do Barão. Ocorre-nos assim, por cotejo, a decadência da nobreza rural – que Hawthorne, em seus escritos de Boston, tão comovidamente descreveu e que, com bastantes coincidências, representa um fato universal: o loteamento costumeiro das antigas e aristocráticas mansões. A cidade é romântica, por si mesma E, no momento, nossa alma é suscetível desta síntese: a beleza triste e melancólica do sobrado. A observação distraída dessas ruas e dessas casas – algumas do século XIX –, a par do encantamento e da compreensão história, atiça a curiosidade.

 

Quem foi o Barão? Seus traços provavelmente quedaram nas sombras. Aquele ali, o da ponte histórica, chamava-se Mauá.

 

Quando objetivo, o interesse poderá ser contentado pela sondagem perseverante de um historiador. Mas cabe suspeitar que a expectativa muitas vezes se arrefeça com a correção da pesquisa. Além do que, o tom adequado para simbolizar a história desses casarões descuidados é justamente o mistério de seus personagens. O declínio da era rural. Cabe admitir que suas peculiaridades se tornem propulsoras de tantas e assombrosas conjeturas. Que o destino mudara o sítio de transcendência dos senhores que viveram nessas casas. Que muitos de seus descendentes estejam aqui. Que outros cruzaram a ponte velha e escultural, motivados por consórcios, partições, ou novos confortos. Pois há mais, há sempre mais.

 

Existe este horizonte raso, que parece sublinhar a similitude geográfica e definir linearmente entre os viventes dos dois lados uma afinidade anímica quase segredosa – como a afinidade dos que se gostam e que a distinção dos idiomas só consegue sublimar. Ocorre-nos, lembrando o relato histórico e romanceado de Aldyr Garcia Schlee, que o castelhano Fructuoso Rivera – o Don Frutos – nos meados do século dezenove, sentiu-se em casa aqui em Jaguarão, enquanto se revigorava para reassumir o poder na banda oriental desta terra sem limites.

 

Pois lá dentro do sobrado – onde pensamos estar –, ao escancarar-se na imaginação do abandono, a vetusta janela emoldura a vista desta solene ruazinha de pedras, deste antigo mercado, deste posto de saúde e deste céu fraternal que açambarca ainda um trecho do rio – que percorre o tempo celebrando a unicidade do pampa – e acaba naquela tira de campo arborizado que já é do Uruguai.

 

E então, um de nós três visitantes, que somos cúmplices dessas esparsas especulações da realidade e de tantas fantasias – que são razoáveis, considerando-se o pertinente desfecho de certas tradições – imaginou o parecer de outro forasteiro, que estaria perto de nós:

 

O escritor jaguarense tem sortidas razões.

 

Essas fronteiras demarcadas por alambrados e rios são convenções carentes de sentido. E a paisagem que ora se descortina é realmente – na nitidez dos sentimentos – a paisagem de uma terra só. Uma terra só. O livro denomina, agora, esta rua curta que pode ser plenamente avistada pelos fantasmas do casarão. Não se trata de mera homenagem de reconhecimento, senão que um anelante propósito de alcançar todos os significados que transcendem este nome: Uma terra só. Nada mais caberia dizer.

 

Mas a curiosidade é impaciente e teimosa: que será da Casa do Barão? Admite-se, por hora, prescindir da resposta, porque o foco é o batismo da rua. Mas, amanhã ou depois – como se deu hoje com o fim do anonimato deste estreito e solene caminho de pedras –, aquele sobrado gris haverá de celebrar algo também importante: o desfecho de seu abandono.

 

João Félix Soares Neto

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Domingo, 14.08.11

Um manto para Deus

Arthur Bispo e a arte contemporânea

 

Ferreira Gullar

 

Ele jamais pretendeu fazer carreira de artista nem revolucionar as linguagens artísticas consagradas.

 

A exposição de Arthur Bispo do Rosário na Caixa Cultural - Unidade Chile, no Rio, oferece a oportunidade de apreciarmos um número considerável de seus trabalhos realizados com fio e, também, de refletirmos sobre sua personalidade e sua obra. E isso se torna tanto mais oportuno quando alguns estudiosos dessa obra, ou apenas curadores, o associam ao que se convencionou chamar de arte contemporânea. Essa associação inapropriada dá margem a uma série de equívocos, tanto no que se refere a esse gênero de arte quanto ao que aquele artista criou.


Mas não é só isso. Um pequeno texto na entrada da exposição afirma que Arthur Bispo do Rosário se rebelou não apenas contra o tratamento psiquiátrico como também contra a terapia ocupacional. A referência à terapia ocupacional é surpreendente, primeiro porque, na Colônia Juliano Moreira, hospital psiquiátrico em que estava internado, não havia esse tipo de terapia, criado por Nise da Silveira no Centro Psiquiátrico Nacional. Tampouco era pretensão dela formar artistas, ali, mas apenas oferecer aos pacientes a possibilidade de se expressarem.

 

Aquela afirmação, porém, não é gratuita, uma vez que o texto procura apresentar Arthur Bispo do Rosário como um artista revolucionário, consciente da necessidade de romper com as formas artísticas existentes. Essa tese alia-se a outra, que pretende mostrá-lo como uma espécie de precursor da chamada arte contemporânea, uma vez que não se utiliza das linguagens artísticas consagradas, como a pintura, a escultura ou a gravura. Sua obra consiste em objetos recobertos por fio, além de mantos e estandartes bordados a mão. Trata-se, em ambos os casos, de teorias equivocadas.


Associar a obra desse artista à chamada arte contemporânea é ignorar a origem e a natureza de ambas as manifestações. Todo mundo sabe que o que se chama de arte conceitual ou contemporânea tem sua origem nos "ready-mades" de Marcel Duchamp e nos desdobramentos decorrentes da ruptura com as linguagens artísticas. Já Bispo do Rosário --que não tinha nenhum conhecimento daquelas experiências-- jamais pretendeu fazer carreira de artista nem muito menos revolucionar as linguagens artísticas consagradas. Sua obra é, na verdade, resultado de dois fatores que se juntaram: um talento artístico excepcional e uma visão mística, alimentada por seu desligamento da realidade objetiva, dita normal.

 

Sabe-se que Arthur Bispo do Rosário, nascido em Sergipe em 1911, mudou-se para o Rio em 1926, onde entrou para a Marinha, passando depois a trabalhar na Light. Em 1938, experimentou o primeiro delírio místico, que o levou a um mosteiro, donde o encaminharam a um hospital psiquiátrico. Depois de algum tempo alternando períodos de internação com atividades profissionais, passou a fazer miniaturas de navios, automóveis e bordados.

 

Em 1964, internado na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, teria ouvido a voz de Deus dizer-lhe que sua missão era salvar os objetos do mundo. Preso que estava numa solitária, por ter agredido outros internados, decidiu que a maneira de salvar os objetos seria recobri-los com fio. E passou a fazê-lo, desfiando o tecido de seu próprio uniforme para, com o fio assim obtido, envolvê-los. E prosseguiu nessa tarefa, que incluiria tudo o que lhe chegava às mãos, fossem facas, garfos, funis, algemas etc. Curioso é que, para salvá-los, decidiu ocultá-los, envolvendo-os com fio, e assim protegê-los do olhar humano.

 

Deve-se atentar para o fato de que não pretendia ser consagrado artista, como se deduz do que disse quando falaram em expor seus trabalhos: "Não faço essas coisas para as pessoas, mas para Deus". Não por acaso, sua obra-prima é um manto que bordou para com ele apresentar-se diante de Deus.

 

Certamente, isso não retira de seus trabalhos o valor estético e a criatividade que definem as obras de arte, mas, sem dúvida, torna inapropriado atribuir-lhe intenções vanguardistas. Aliás, a natureza artesanal do que realizou --que lhe exigiu não só talento como mestria e dedicação-- nada tem a ver com a arte contemporânea, que nasceu da negação do trabalho artesanal do artista, o que está evidente no nome "ready-made" --que significa "já feito".

 

Ferreira Gullar - Publicado no UOL / Folha de São Paulo

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Sábado, 13.08.11

A vida como ela é

O Baloiço

 

António Lobo Antunes

 

Abriu o gás do fogão e sentou-se no sofá, à espera. Não sentia cheiro nenhum: ter-se-ia esquecido de fechar alguma janela? Foi ao quarto, ao escritório, à sala, verificou os trincos e voltou a sentar-se no sofá, muito direita, de mãos nos joelhos, na atitude de quem aguarda a sua vez para ser atendida num consultório qualquer. Não pensava em nada de especial, pensava no vazio.

 

Chegavam lhe barulhos da rua: automóveis, claro, uma camioneta, junto ao minimercado, e um sujeito a retirar caixotes, amontoando-os, uns sobre os outros, no chão. A sereia dos bombeiros a marcar o meio dia. Passos no andar de cima, de mulher, porque o som agudo dos saltos. Conhecia-a de se cumprimentarem no elevador, onde a outra entrava com um estojo de violino: tocava numa orquestra e morava sozinha. Às vezes um homem acompanhava-a, nem sempre o mesmo, muito mais velhos do que ela, de cabelo comprido de artista, com um estojo de instrumento também.

 

Olhou para o relógio: abrira o gás há cinco minutos, não, seis, e não fazia ideia do tempo que demorava a espalhar-se pela casa. Coçou o cotovelo a lembrar-se da mãe, que se movia devagar por causa do coração. O pai morrera há anos, à hora do jantar: o garfo caiu de repente da mão, fitou-a espantado, deixou de espantar-se e o queixo desceu na direcção do prato. Pareceu-lhe que ia dizer qualquer coisa mas não disse nada.

 

Recordava-se do garfo na toalha e da mudez da mãe, de pedir auxílio pelo telefone, de um fulano de bata a estendê-lo no tapete, a aplicar-lhe uma máscara na cara, a retirar-lhe a máscara da cara, a puxar uma seringa de uma maleta, de joelhos sobre o pai, a informar, do tapete, que não. No dia seguinte a autópsia, no dia seguinte o velório, no dia seguinte o enterro. Colegas de emprego, cumprimentos, o taxi da volta, com a mãe de lenço amarrotado no punho. Tudo tão simples, tão rápido, tão poucas palavras.

 

A marca do corpo do pai na poltrona, onde resolvia as palavras cruzadas do jornal, desvaneceu-se lentamente. A única diferença consistiu na fotografia emoldurada na sala, com uma jarra de flores ao lado. E logo a seguir o inverno, logo a seguir chuva, uma tristeza mansa nas coisas. Menos despesa em comida, claro. O pincel da barba junto ao lavatório.

 

Mudou de prédio no fim desse inverno por nenhuma razão especial. Mas trouxe o pincel da barba e colocou-o junto ao lavatório novo, de mistura a sua escova, os seus cremes. Comprou uns móveis, quase sem escolher, um quadrozinho com barcos. Trabalhava como jornalista numa rádio, lia as notícias da manhã. Tal como a mulher do estojo do violino às vezes um homem, nem sempre o mesmo, acompanhava-a. Não ficavam a noite inteira, iam-se embora antes.

 

Companheiros da rádio, o do desporto, o especialista em assuntos económicos. Tirando pedir-lhes que não fumassem não havia conversas. Acerca de quê? Via-os vestirem-se sem sair da cama, escutava a porta bater. Então levantava-se, comia uma ou duas bolachas do armário e sentava-se no sofá, à espera. Como agora, em que principiava a dar conta de um aromazinho enjoativo mas ainda não sono. Perguntou-se quando viria o sono. O aroma enjoativo não chegava ao patamar dado que tapou a frincha sob a porta com um cobertor.

 

A mãe surgiu-lhe um instante na cabeça e desapareceu, substituída pela imagem de um baloiço num jardim, em que a empurravam em pequena. Vozes perdidas da infância, uma semana nas termas, a ver as pessoas crescidas beberem copos de água, a passear entre pinheiros, a aborrecer-se. Quem leria as notícias por ela, a partir de hoje? A impressão que entrava no quadrozinho com barcos, que se tornava um barco como os restantes. Nas termas um lago de cisnes e começou a deslizar como eles, em silêncio. Isso conhecia bem, o silêncio. Achava-se rodeada de silêncio, vestida de silêncio, cheia de silêncio por dentro. O garfo caiu da mão do pai sem som nenhum. Estendeu-se no sofá, de olhos abertos, enquanto o baloiço ia e vinha. Achou estranho que o baloiço vazio. Não achou estranho que o baloiço vazio; no fim de contas já não sobrava ninguém para se alegrar nele.

 

 

 

António Lobo Antunes  

Imagem: Cezar Almeida - Pintura (Efeito borboleta)

 

 

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Sábado, 25.06.11

Ar entre as colunas

 

 

Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Mariana Ianelli

 

Daqui a uma semana haverá festa no bairro da Graça em Lisboa. Haverá festa no Algarve, em Lagos, na Granja, no Porto, em todos os lugares onde viveu Sophia, que desde há sete anos deixou de ser Sophia para ser tudo quanto existe e ela amava, os jardins, a luz, o vento, o mar ao longe. Será mais uma vez aquele frescor de rosas que vem da terra depois de haver chovido, aquele sonho lúcido de ver o mundo nascer de novo como num primeiro dia, de cantar o amor sem ironia e descobrir na palavra o nome das coisas. No mar será aquele friso branco de espuma, no ar um perfume de orégano e alecrim, uma pureza outra vez iluminada nos muros caiados, nas praças, nas casas, será essa festa um esplendor de formas reunidas, um instante de perfeita arquitetura, a presença viva que as imagens prometiam, uma alma de poeta que enfim cumpriu o seu destino de habitar a substância do tempo, florescendo nas tílias, nas camélias, nos rododendros, emergindo nas vagas que levam os barcos.

 

Sophia, íntima do próprio seu nome, sabia que mesmo perdida a infância guarda uma semente, sabia das coisas por amá-las, por olhar a paisagem longamente, sabia que a poesia não tem futuro, tem apenas mistério, que um poema não é uma aventura de linguagem, é um espelho para ver o mundo, um círculo em redor de uma coisa, uma aliança entre os versos e os dias. Sabia também que eram tempos difíceis, de descrença, de negação, de ameaça, e que ser fiel à imanência se tornou uma espécie de pecado. Mas Sophia confiava na unidade, no sentido positivo do universo, eram as coisas que a moviam e não conceitos, eram os livros vivos que lhe falavam, não os prodígios de criação nem os modismos. Para Sophia escrever era relacionar-se com o mundo, e o mundo para ela era sagrado, havia uma moral poética e uma forma de justiça em participar do real e estabelecer com ele uma harmonia. Sophia não separava vida e poesia, não entendia na literatura atual a excessiva preocupação com a linguagem, a contaminação do escritor por teorias, acreditava que era preciso combater com as trevas, escrever a partir do caos, e não de um texto, para chegar à geometria do poema.

 

Em uma de suas viagens à Grécia, diante do Golfo de Corinto, Sophia agradeceu por ter nascido. Nos templos gregos encontrou os seus poemas, na intimidade entre luz e arquitetura, no equilíbrio entre rigor e doçura. Em Roma contemplou maravilhada a regra de ouro na Praça do Capitólio. Nos parques de arvoredos em Berlim sonhou com a antiga Germânia das florestas. Em pleno voo a caminho de Macau, avistando a costa asiática, começou o seu livro Navegações. No México, pelo “dever de ver”, subiu ao topo da Pirâmide do Sol. Quando veio ao Brasil, adorou o cheiro da fruta e da madeira, as montanhas e as praias brasileiras, esteve em Recife, Cabo Frio, Ouro Preto, e quando desceu em Brasília viu a “Cidade de Atena”. Sophia perseguia uma paisagem e suas raízes, perseguia um tempo não dividido, a palavra na sua forma primitiva, o poema que não é literatura mas uma obra da atenção, uma túnica inconsútil, uma oferta dos deuses, uma aliança com a poeira das estradas, o ar entre as colunas, a casa entre o mar e a montanha, os frutos de setembro, as águas verdes de Brindisi.

 

Era amiga dos poetas, Sophia. Não perdia um minuto com “tricas literárias”, procurava apenas silêncio e tempo livre para escrever. Cantava o esplendor de Thasos e Egina, mas não esquecia o horror de Treblinka e Hiroshima. Batalhou dentro da política por uma sociedade em que a poesia fosse a pedra fundamental da educação e a cultura alcançasse o espaço cotidiano, como quando viveu o 25 de abril e as pessoas atravessavam o Rossio feito um bando de gaivotas. Sophia estava mergulhada na vida e sua vida na poesia, bons versos revelavam para ela dias bem vividos. Mãe de Xavier, Miguel, Sofia, Isabel e Maria, ensinou-lhes a ver a pedra, o ouriço, os búzios, as estrelas, ensinou-lhes a poesia no seu canto vivo, recitada em casa, a caminho do mercado, numa loja, num café, em todos os lugares, a poesia além dos livros.

 

Quando pequena, em noites de temporal, na casa do Porto, Sophia rezava para os pescadores conseguirem voltar a terra. Ouvia da mãe a história de uma menina que morava no mar e isso lhe parecia a máxima felicidade. No jardim semiabandonado da casa da avó, na primavera, colhia rosas e as mastigava. Em seu caderno de latim, no colégio, escreveu: “É-me necessário escrever versos, é-me proibido saber por quê”. Todas essas sementes da infância frutificaram. Sophia agora é tudo o que floresce, o que pede para ser visto, a quem possa ver o mar, a areia, a lua, os jardins, o fogo na floresta, o que pede para ser ouvido, a quem possa ouvir o ritmo das paisagens. Sophia é agora a abundância dessa festa.

 


 

Mariana Ianelli - Publicado no blog Vida Breve

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Segunda-feira, 20.06.11

Contra quem grita o mar?

O mundo como vontade e representação

 

António Lobo Antunes

 

Contra quem gritam os pavões? No Castelo de São Jorge gritavam contra a noite, no Campo de Santana gritavam contra a noite, em casa do meu avô gritavam contra a noite, e não eram gritos de pássaros, eram gritos de pessoas feridas na alma, cujo medo protestava ainda. Contra quem gritam os corvos no leste da Europa, contra quem gritam as gaivotas de Portugal? E os albatrozes? E as andorinhas-do-mar? Contra quem gritam, em silêncio, os móveis e os meninos de África correndo na picada? Contra a noite também, contra o absurdo violento da noite. As catatuas gritam contra si mesmas. Eu grito contra a minha alma pecadora. Por que razão me comove um bebé a chorar? Devo ter vertido muitas lágrimas, ainda verto algumas, invisíveis. Talvez nem eu dê por elas, às vezes. Talvez não queira dar por elas mas outro dia, ao olhar um homem que conheço, senti-as descerem-me sob a pele:

 

- O que se passa consigo?

 

e um trejeito da boca

 

- Não estou bem

 

um trejeito do corpo calado

 

- Não estou bem

 

e não posso tocar-lhe para que não se aperceba da minha tristeza.

 

Um soldado a quem uma anti-pessoal levou a perna:

 

- Não contem ao meu pai

 

e não conto ao teu pai, descansa, fica entre nós.

 

Em lugar da perna um coto que não pára de sangrar.

 

Contra quem grita o coto? Contra quem grita outro soldado, de joelhos ao pé dele?

 

- Matámos as galinhas todas

 

diziam os catangueses pelo rádio, matámos as galinhas todas. Galinhas significavam galinhas e mulheres.

 

Alferes José Luís Henriques, valente como as armas, José Luís Cristóvão Henriques, tu contavas isto a gritar. Como os pavões, os corvos, as gaivotas e as andorinhas-do-mar. Contra quem grita o mar? Dá-me todas as lágrimas do mar, pedia o chileno, irmãzinha dá-me todas as lágrimas do mar. As do Zé Francisco na morte da filha. As dos camponeses da Beira na morte de um bezerro. Contra quem grita o porco que todos os anos matavam no pátio do avô, com um alguidar por baixo? As pestanas transparentes sem descanso, as patas amarradas que se torciam, torciam. Amarram-se as patas de trás, amarram-se as patas da frente e a faca a rasgar o pescoço.

 

O Marciano para mim

 

- Não espreite menino

 

ele que acabava os passarinhos estrangulando-os com dois dedos, primeiro agitados, depois quietos. Contra quem não gritam os passarinhos, Marciano? O seu quarto cheirava a tabaco frio, a comida fria, a demasiada gente sendo ele um só. Foi-se embora, perdi-o.

 

O que não perdi eu, pessoas, casas, amigos? Zé, Ernesto, Eugénio, Acácio. Eugénio de Andrade de manta nos joelhos no seu sofá de Serrúbia, vinho fino e bolinhos. Poesia, poesia, como és simples e tu vens, como nasces da harmonia das formas que nunca tens: foi outro quem disse isto, chorando contra quem? Eu com o Zé no aeroporto e o Ernesto a partir de avião para a América, em busca de uma cura que ele sabia impossível. Arrastava-se do sofá à mesa de jantar, sem uma queixa. Quase não conversávamos. Para quê? E arranjava maneira de sorrir de vez em quando. Fizeram-te uma homenagem anos depois, estive lá. Até disse coisas de ti a um microfone.

 

Hoje almocei com as minhas três filhas e, de súbito, um arrepio de pavor por elas. Ontem jantei com os meus irmãos, e, de súbito, um arrepio de pavor por eles. Há tanta coisa que prefiro não saber. Um bêbado a cantar lá fora. Porque é que o vinho não fica bêbado dentro da garrafa, perguntava não sei quem. E a lembrança dos pavões de novo, dos gritos no Castelo. Os pobres comeram os pavões e os cisnes do Campo de Santana. No escuro, no meio dos passadores de droga e dos rapazes do esticão.

 

O que me tentou assaltar no Jardim D. Pedro V, a fitar-me de banda, ao longe, e eu a fazer-me parvo até que começou a vir e agora, de repente, as mulheres de aluguer que traziam um tijolo dos grandes na carteira: uma volta com a pega e o tijolo, contra as partes, a dobrar o esperto em dois. Nem necessitavam de correr, elas, afastavam-se devagarinho depois, imperiais. Mostravam-me o tijolo

 

- Dou-lhes com isto

 

ou antes

 

- Dou-lhes com isto

 

e trigo limpo, farinha Amparo de maneira que fui aprendendo os truques com os anos.

 

Aposto que o rapaz do esticão demorou tempo a esquecer-me. Encontrei-o outra vez no mesmo Jardim D. Pedro V, à caça. Passou-me o olho e ganhou lume no cu.

 

- Não espreite, menino

 

pedia o Marciano

 

- Não espreite

 

eu, em tantas alturas, um porco a sangrar, um porco não muito grande, não muito gordo, a sangrar:

 

- Não contem ao meu pai

 

e, se quiserem contar, agora nem no cemitério o acham. Onde pára o seu silêncio, senhor? A mão dele a explicar

 

- Bem vês

 

que era um dos seus começos de discurso favoritos. Bem vejo o quê, senhor? Nem nuvens, é tarde, os pavões dormem no Castelo. Corvos de São Vicente a pintarem tudo de negro, andorinhas-do-mar rente à espuma. Sento-me na praia em que luzes de barcos de pesca, distantes, fixas. Como uma aldeia alentejana muito no fim da estrada, como Beja depois do crepúsculo. Ó Beja, terrível Beja, terra da minha desgraça. E, enquanto isto, os meninos de África continuam a correr na picada. Jamais vi alguém a brincar tão a sério. Olhos profundos, graves. Reflectindo o quê? Por favor metam aqui um final feliz.

 

António Lobo Antunes

 

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Sábado, 18.06.11

Cartas portuguesas

Um Don Juan celestial

 

Mariana Ianelli

 

Eis que no mundo das investigações autorais hoje pairam rumores em torno das famosas Cartas Portuguesas. A suspeita é de que essas cartas de amor ardente desde há séculos atribuídas a Mariana Alcoforado tenham sido na realidade forjadas e que um homem chamado Guilleragues seja o autor dessa façanha literária.

 

Uma vez confirmada a hipótese, ganha a literatura uma das versões mais ousadas de Don Juan na voz de uma freira que troca sua fé pela má fortuna, que se mortifica, sacrifica sua vida e se deleita em morrer de amor num transe que seria um autêntico transe religioso se Deus não tivesse sido solenemente destronado por um homem.

 

Esperando por uma visita, depois por uma carta e então não esperando mais nada, pedindo ao amante que se lembre dela, em seguida o desafiando a esquecê-la, apiedando-se de si mesma e então se gabando de amar com violência, vai esta freira enlouquecendo de amor, enlouquecendo esplendidamente, repetindo o nome de um homem mil vezes por dia, amando um retrato mil vezes mais que sua vida, até chegar à última carta como a última fase de um delírio, quando o fervor começa a se transformar em “qualquer coisa parecida com a tranquilidade”, um amor satisfeito em si, um amor sem amante.

 

Rilke, não por acaso, nutria especial admiração pelas Cartas Portuguesas. Assim como deu conselhos a um jovem poeta, também aconselhou certa vez uma de suas amantes a tomar como exemplo o amor de Mariana Alcoforado. Ele que era um solitário, mas sempre cercado de mulheres, fazia prevalecer esse delírio esplêndido em seus galanteios, e o fazia com tamanha arte que realmente acabava sendo visto por suas amantes como “um arcanjo de terno”, um “Fra Angélico”, “uma aparição”. Registre-se aí uma espécie rara de sedutor, um sedutor de almas. Um Don Juan celestial.

 


 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Domingo, 12.06.11

"O museu está nu!"

Instituição e rebeldia

 

Ferreira Gullar

 

Todos concordam que é muito difícil definir o que é arte. Não obstante, se refletimos sobre o que conhecemos e consideramos expressão artística, verificamos que, em que pese a enorme variedade de estilos e concepções, há ali um traço comum que nos permite englobá-la numa mesma definição: é arte. Houve épocas em que era quase impossível fazê-lo de modo amplo, uma vez que a conceituação estreita reduzia a expressão artística a princípios e normas, fora das quais a arte seria impossível.

 

Foi precisamente o abandono dessas regras que tornou possível a visão abrangente que caracterizou a crítica de arte do século 20, capaz de compreender as mais diversas manifestações artísticas, desde as pinturas parietais do paleolítico até a limpidez da estatuária grega, o delírio barroco e a poética revolucionária do cubismo, do expressionismo, do dadaísmo. Um dos traços mais característicos dessa visão nova da arte era a valorização do fator expressivo e autônomo das formas em detrimento da representação do real: compreendeu-se que, mais que copiar a realidade, a arte a recria e a inventa. Mas o impulso irreverente, que movia os artistas do começo do século 20, ultrapassou não apenas a concepção acadêmica como pôs em questão o próprio conceito de arte.


Quem levou essa atitude a seu ponto extremo foi Marcel Duchamp, ao afirmar: "Será arte tudo o que eu disser que é arte". Essa afirmação, tomada ao pé da letra, significa que nada é arte, ou seja, que o fazer artístico não tem qualquer sentido. Mas nem ele próprio acreditava nisso, tanto que suas obras mais importantes -"O Grande Vidro" (1915-1923) e "Étant Donné" (1946-1966)- demandaram-lhe muitos anos de trabalho e criatividade. De qualquer modo, não foi esse lado de sua personalidade que influiu sobre futuras gerações de artísticas, e sim aquele outro lado, o da antiarte.

 

De uma maneira ou de outra, o que se chama hoje de arte conceitual ou arte contemporânea parte do princípio duchampiano de que tudo é arte ou pode ser dado como tal. Noutras palavras, todos os valores - sejam teóricos, artesanais ou estéticos - que serviam para esse tipo de expressão tornaram-se dispensáveis. Isso não é uma crítica, apenas uma constatação. Qualquer que seja a importância que se atribua a esta ou aquela obra dita "contemporânea" - casais nus no MoMA, por exemplo - não possui aquelas referidas qualidades que constituem as obras de arte: casais nus que se exponham num museu não foram feitos por nenhum artista nem por ninguém. São apenas algo que se mostra como uma expressão, um conceito, qualquer que seja ele -enfim uma "boa ideia". Em face dessa constatação é inevitável concluir que tais manifestações estão fora do campo da arte. No entanto, esses casais nus foram mostrados no Museu de Arte Moderna de Nova York, um dos mais conceituados museus do mundo. Como se explica isso?


A primeira resposta que me ocorre é que, no campo das artes plásticas, o conceito de obra de arte, como produto do trabalho e fruto de uma linguagem elaborada pelo artista, já não vale. Entre os que conceituam, gerem ou decidem sobre o que merece ou não ser exibido e destacado, o que vale é, em vez da obra, o questionamento do que se chama de arte e do próprio museu ou certames nacionais e internacionais, criados para expor obras de arte. Agora, esses espaços tornaram-se locais onde se "nega" a arte.


A palavra "nega" está aí entre aspas porque não é agora uma negação contestadora de fato. Já foi, quando Duchamp expôs o seu famoso urinol, intitulado "Fontaine".

 

Agora, instituição e rebeldia se identificam e uma redime a outra. O museu, as bienais, são hoje locais onde a não arte - seja urinol ou casais nus - vira arte. Trata-se, de fato, de um impasse: a rebeldia que necessita da instituição para ser rebelde é a negação da rebeldia. Não por acaso, o artista escolhido para representar o Brasil na Bienal de Veneza, este ano, se declara contra salões, premiações e a própria Bienal onde vai expor. Claro, porque, se se mostrar contente de expor ali, deixará de ser rebelde e, como sua obra é a não obra, tudo o que lhe resta é o espaço institucional, onde ela é aceita como rebeldia. Fora de lá, não é.

 


 

Ferreira Gullar

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Sábado, 11.06.11

Amores impossíveis

Sete mil vidas

 

Mariana Ianelli

 

 

 

Amores impossíveis começam dentro de uma biblioteca. Podem ser confrarias, reuniões secretas, pactos de revolução, exércitos de utópicas ideias. Mas nem sempre o que une é a afinidade ou o afeto. Também os opostos se atraem e sugerem estranhos casamentos.

 

Tudo depende de como os livros se organizam, de como este demiurgo incidental que monta sua biblioteca decide agrupar seus exemplares. O que a vida afastou uma biblioteca reconcilia, de modo que Sartre pode agora dividir pacificamente o espaço de alguns centímetros com Merleau-Ponty e Camus, García Márquez pode topar com Vargas Llosa, e Saramago ter Lobo Antunes como um bom vizinho. Aqueles que a vida uniu de repente se desligam e vão morar a muitos livros de distância, Hannah Arendt na ala norte, Heidegger na ala oeste, Henry Miller três andares acima de Anaïs Nin. E há os duetos tanto em vida como numa biblioteca, Goethe e Schiller, Claudel e Gide, Faulkner e Steinbeck, Sophia de Mello Andresen e Jorge de Sena.

 

São tantas as combinações e tão intimamente divertido jogar com elas que pode acontecer de I-Juca Pirama acabar aconchegado entre a Ilíada e a Eneida. Ou então, num canto da estante, lugar ideal para um ninho de fênix, podem se encontrar Alejandra Pizarnik, Sylvia Plath e Anne Sexton. Também não falta a ironia da sorte, que, por uma emergencial economia de espaço, põe lado a lado Ezra Pound e Brecht. Do estado de repouso ao livro de páginas abertas, os encontros variam, traem metódicos critérios, vencem a distância de oceanos e séculos, produzem aqui e ali uma mistura qualquer muito peculiar de essências.

 

Entre chegadas e partidas, os destinos são tão incertos e fortuitos quanto os de uma existência. São as muitas vidas de cada livro. Uma das razões, talvez, por que os gatos gostam tanto de uma biblioteca...

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Sábado, 04.06.11

Pacto de honestidade

Um pássaro sujo de neve

 

Mariana Ianelli

 

 

 

Assim o roteirista Tonino Guerra definiu certa vez o seu amigo de alma russa, filho de poeta, o cineasta Andrei Tarkovski. Os dois trabalharam juntos em Nostalgia, primeiro filme que Tarkovski realizou fora da Rússia, inspirado por uma saudade tão profunda do seu país que os campos abertos do interior da Itália nesse filme se converteram em campos de névoa iguais aos do vilarejo a trezentos quilômetros de Moscou onde o cineasta e sua mulher tinham uma casinha. Para a elaboração do roteiro de Nostalgia, Tarkovski visitou com Tonino Guerra o grande portal de pedra que saúda a chegada dos barcos às areias de Flore, a arquitetura barroca das igrejas de Lecce, os paraísos turísticos de Amalfi e Sorrento.

 

Tarkovski se inquietava com uma beleza tão explícita. Eram lugares excessivamente bonitos para o seu filme, radiantes demais para uma paisagem que devia ser a emanação das sombras do seu personagem, um poeta de nome Andrei, que viaja para a Itália em busca de material para biografia de um músico russo do final do século 18 que teria estudado em um conservatório de Bolonha.

 

Nem a pedra ricamente trabalhada nem os cinematográficos espetáculos da natureza interessam a Tarkovski. Tampouco lhe interessam enredos engenhosos, rebuscados, monumentais. Interessa-lhe o detalhe sublime, a força de uma pintura, de uma música, de um poema, o mínimo que poderá fazer do seu filme “um todo metafísico”. Interessa a Tarkovski realçar os interiores, o interior de uma casa, de um quarto de hotel, de uma igreja, e uma planície a perder de vista, um campo a céu aberto que é também um interior, o interior de um homem doente de nostalgia, exilado de sua história, desgarrado de sua pátria e sua família, um homem apaixonado pelo cadáver de sua infância, um solitário que se deixa engolir pela neblina.

 

Escapando da censura, Tarkovski partiu da Rússia para recriá-la na Itália. Acusado de “ter se afastado da realidade” em seus filmes, não podia estar mais profundamente inserido em seu tempo, na angústia do vazio espiritual de seu tempo. Tarkovski acreditava na dignidade e na verdade da arte quando já esses critérios eram molestados pelos próprios artistas.

 

Acreditava na liberdade nos termos de Púchkin, uma liberdade enquanto pacto de honestidade consigo mesmo, sem esperar agradar ou ter sucesso, sem motivações propagandísticas. Considerava-se filho do seu país, preso à sua vocação, e era livre. Era um pássaro seduzido pelo adágio que sobe das ruínas. Um artista que descobriu no seu passado o seu destino.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Domingo, 29.05.11

Quem protege a nossa língua?

Verdade e preconceito

 

Ferrreira Gullar

 

Tenho comentado aqui o fato de que, para alguns linguistas, nunca há erro no uso do idioma: tanto faz dizer "problema" como "pobrema" que está certo. Confesso que, na minha modesta condição de escritor e jornalista, surpreendo-me, eu que, ao suspeitar que poderia me tornar poeta, passei dois anos só lendo gramáticas. E sabem por quê? Porque acreditava que escritor não pode escrever errado.

 

E agora descubro que ninguém escreve errado nunca, pois todo modo de escrever e falar é correto! Perdi meu tempo? Mas alguma coisa em mim se nega a concordar com os linguistas: se em todo campo do conhecimento e da ação humana se cometem erros, por que só no uso da língua não? É difícil de engolir. Essa questão veio de novo à baila com a notícia de um livro, adotado pelo Ministério da Educação e distribuído às escolas, em que a autora ensina que dizer "os livro" está correto.

 

Estabeleceu-se uma discussão pública do assunto, ficando claro que, fora os linguistas, ninguém aceita que falar errado esteja certo. Mas não é tão simples assim. Falar não é o mesmo que escrever e, por isso, falando, muita vez cometemos erros que, ao escrever, não cometemos. E às vezes usamos expressões deliberadamente "erradas" ou para fazer graça ou por ironia. Mas, em tudo isso, está implícito que há um modo correto de dizer as coisas, pois a língua tem normas.

 

O leitor já deve ter ouvido falar em "entropia", uma lei da física que constata a tendência dos sistemas físicos para a desordem. E essa tendência parece presente em todos os sistemas, inclusive nos idiomas, que são também sistemas. Devemos observar que as línguas, como organismos vivos que são, mudam, transformam-se, como se pode verificar comparando textos escritos em épocas diferentes. Há ainda as variações do falar regional, que guarda inevitáveis peculiaridades e constituem riqueza do idioma.

 

Mas isso não é a mesma coisa que entropia. Já violar as normas gramaticais é, sim, caminhar para a desordem. Se isso é natural e inevitável, é também natural o esforço para manter a ordem linguística, que não foi inventada pelos gramáticos, mas apenas formulada e sistematizada por eles: nasceu naturalmente porque, sem ela, seria impossível as pessoas se entenderem.

 

Na minha condição de "especialista em ideias gerais" (Otto Lara Resende), verifico que, atualmente, não só na linguística, tende-se a admitir que tudo está certo e, se alguém discorda dessa generosa abertura, passa a ser tido como superado e preconceituoso. Agora mesmo, durante essa discussão em torno do tal livro, os defensores da tese linguística afirmaram que quem dela discordava era por preconceito. Um dos secretários do ministro da Educação declarou que aquele ministério não se julgava "dono da verdade" e que, por isso mesmo, não poderia impedir que o livro fosse comprado e distribuído às escolas.

 

Uma declaração surpreendente, já que ninguém estava pedindo ao ministro que afirmasse ou negasse a existência de Deus, e sim, tão somente, que decidisse sobre uma questão pertinente à sua função ministerial. Não é ele o ministro da Educação? Não é ele responsável pelo rumo que se imprima à educação pública no país? Se isso não é de sua competência, é de quem?

 

De fato, o que estava por trás daquela afirmação do secretário não era bem isso, e sim que a crítica ao livro em discussão não tinha nenhum fundamento: era mero preconceito. Ou seja, simples pretensão de quem se julga dono da verdade que, como se sabe, não existe... Esse relativismo, bastante conveniente quando se quer fugir à responsabilidade, tornou-se a maneira mais fácil de escapar à discussão dos problemas.

 

Certamente, não se trata de afirmar que as normas e princípios que regem o idioma ou a vida social estejam acima de qualquer crítica, mas, pelo contrário, devem ser questionados e discutidos. Considerar que todo e qualquer reparo a este ou aquele princípio é mero preconceito, isso sim, é pretender que há verdades intocáveis. Não li o tal livro, não quero julgá-lo a priori. Creio, porém, que quem fala errado vai à escola para aprender a falar certo, mas, se para o professor o errado está certo, não há o que aprender.

 

Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

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Sábado, 28.05.11

Insígnia infectada

Nossa cruz interdita

 

Mariana Ianelli

 


 

A suástica que hoje tem seus adeptos não é a mesma que Rudyard Kipling estampava na capa dos seus livros no começo do século 20. Já não representa um amuleto da sorte, representa a corrupção da inteligência que se incorporou a este símbolo desde a sua transformação num slogan nazista.

 

Estamos mais próximos de uma suástica tatuada no peito de um delinquente do que de uma suástica inscrita na cerâmica de um vaso antigo. O que por milênios foi um emblema de felicidade e harmonia em um século tornou-se uma insígnia do horror e do extermínio. Se nos coubesse dar um lugar para este símbolo, dificilmente pensaríamos numa catedral ou num templo budista. Mosaicos, esculturas, altares, portões de uma cidade e páginas de um livro santo já exibiram essa cruz como um signo de bom augúrio, proteção espiritual, equilíbrio. Hoje a suástica é a nossa cruz interdita. Não ousamos mais exibi-la, sob o risco de denúncia, de repúdio, de censura por falta de bom senso.

 

Como reabilitar uma cruz? É a pergunta que fica. Como desinfetá-la de uma representação hedionda, como pregá-la de novo no alto de uma fachada sem que isto seja a apologia de um crime, um insulto à memória de um povo, a extravagância infeliz de um polemista, como lembrar da pré-história de um símbolo e associá-lo antes a um santuário que a um campo de extermínio, como fazemos para girar essa cruz e, condizendo com o seu sentido, progredir.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Onde é que eu tenho a alma?

Os caminhos do Senhor

 

António Lobo Antunes

 

Se eu soubesse dizer-te o que sinto. Se pudesse abrir o peito para tu veres lá dentro, cheio de postais ilustrados, com pombinhos e fitas cor de rosa, um gato a sair de uma bota velha, um menino, mascarado de palhaço, a chorar uma única lágrima, um bambi cromado sobre o naperon, duas rolas de loiça a juntarem os bicos, andorinhas como as que tenho na varanda da casa, envernizadas, tão lindas. Se calhar já não há nada disso, como não há armários de fórmica e mobília de quarto quinane, nem azulejos que dizem Cuidado Com O Cão ou Entra Amigo A Casa é Tua, nem Alziras, nem Lucindas, nem Custódias, como não há Vítores Manueis nem Edgares, o que o mundo mudou. O Almanaque da Sãozinha onde pára, sonetos de senhoras sensíveis nos jornais. Quando eu era pequeno deram-me um livro de poemas, com o título de Hóstia Florida, escrito por um cónego sensível, chamado Monsenhor Moreira das Neves, que me lembro de ver em casa de uma tia-avó minha, bebendo chás virtuosos, gordo, cheio de opiniões e bondade, muito dado às torradas. Foi a minha primeira grande influência literária e, na minha opinião, o título Hóstia Florida era um achado de génio. Lembro-me do Monsenhor Moreira das Neves declarar, enquanto a minha tia-avó me mostrava a obra com respeito

 

- Vende-se como pão

 

e de me surpreender a imagem, vinda de um espírito tão delicado e fino, a apanhar as migalhas da batina com o indicador molhado em cuspo, sob a fotografia emoldurada do doutor Salazar a apertar a mão ao senhor Cardeal Patriarca, unidos num sorriso afectuoso e digno porque se vivia numa época de respeito, avessa ao casamento civil e ao comunismo ateu, duas expressões que não percebia o que significavam mas que, a calcular pela opinião das pessoas responsáveis, eram coisas perigosas e desumanas, que podiam ser evitadas pela leitura da Vida Exemplar De São Luís Gonzaga, acompanhada da história de um outro menino francês que ofereceu a existência em troca da conversão do padrinho, o qual se persignou, ajoelhado, diante da urna e, a partir desse momento, se tornou exemplar e esmoler, outra expressão difícil, dedicado aos leprosos que no princípio do século, ou seja mil e novecentos, mil novecentos e tal, enxameavam Paris, vivendo nas grutas que rodeiam a torre Eiffel e descendo os Campos Elísios de gatas e aos guinchos, cobertos de percevejos e trapos.

 

Ao perguntar ao Monsenhor Moreira das Neves acerca das grutas que envolvem a torre respondeu, sempre a catar migalhas

 

- De certeza que há mas talvez não sejam assim tantas, para aí umas trinta

 

e aí temos o motivo de eu não gostar de Paris:

 

imagine-se um leproso atrás de nós a pedir esmola,

 

incapaz de apanhar migalhas porque não tem dedos e refugiando-se depois nas savanas dos Campos Elísios, onde o padrinho exemplar e esmoler lhe oferecia bavaroises e canards à l'orange, que são o equivalente de pão da véspera para nós, a fim de o aliviar das torturas da fome, acrescentado do folheto Preparação Para a Primeira Comunhão, destinado ao ensinamento salutar das almas transviadas.

 

 

 

O folheto Preparação Para a Primeira Comunhão ofereceu-mo o senhor Cónego, repleto de ordens úteis:

 

não comer nem beber depois da meia noite para não misturar Jesus com o rosbife, vestir a melhor roupa mas com mangas compridas dado que Deus odeia a carne ao léu, receber a hóstia sem lhe tocar com os dentes

 

(muita atenção a este ponto)

 

não a descolar do céu da boca com o mindinho, consentindo apenas que a saliva

 

(o termo cuspo não é da estima divina)

 

ajude Jesus a deslizar sem riscos até um estômago devidamente limpo

 

(estou a citar)

 

templo interior adequado à recepção da Graça.

 

Para onde é que a Graça ia depois a Preparação não falava, mas presumia-se que não se puxava o autoclismo, no dia seguinte, enviando-a para o Tejo através dos esgotos da Cruz Quebrada:

 

Jesus não era pessoa para trambulhar com o lixo e decerto que se elevava do estômago até à alma através de misteriosos tubos que possuímos cá dentro, destinados ao trajecto barriga-céu sem paragens intermediárias.

 

À questão

 

- Onde é que eu tenho a alma?

 

o senhor Cónego elucidava-me designando o tecto com o queixo, para além do tecto o vizinho de cima que batia na mulher, estremecendo o lustre e, para além do vizinho de cima, que trabalhava de contrabandista, ajudando as hóstias a ultrapassarem a fronteira do telhado, a alma à espera de Jesus numa impaciência gulosa, unindo-se num abraço casto

 

(Não penses em porcarias, miúdo

 

eu que não pensava em porcarias, me maravilhava só)

 

que nos colocava mais perto de uma eternidade de bem-aventuranças

 

(O que são bem-aventuranças? Tanta pergunta cansa-me)

 

cujo significado eu descobriria mais tarde

 

(Hás-de descobrir isso mais tarde)

 

quando a experiência da vida me ensinasse

 

(A experiência da vida há-de ensinar-te, garoto)

 

a distinguir subtilezas que a minha pouca idade me impedia de visionar

 

(Visionar quer dizer ver, pateta)

 

com a clareza que o Espírito Santo não deixa de conferir às pessoas honestas, 

 

característica que a avaliar pela generosidade das torradas da minha tia-avó e do seu espírito naturalmente bondoso

 

(naturalmente bondoso julgo que relacionado com a qualidade do chá Este chá é um primor, minha senhora)

 

eu herdaria certamente.

 

É possível que tenha herdado o espírito naturalmente bondoso

 

(item número dezanove do seu testamento: ao meu sobrinho-neto lego o meu espírito naturalmente bondoso)

 

dado que nem um tostão abichei com a sua morte. Os outros apropincuaram-se com o dinheiro e os tarecos, mas o espírito bondoso já cá canta, só que até hoje não me rendeu fosse o que fosse, a não ser chamares-me

 

- Parvo

 

a cada passo e eu, humilde, a escutar-te, pensando se soubesse dizer-te o que sinto, se pudesse abrir o peito para tu veres lá dentro, e os postais ilustrados, os pombinhos, os bambis, os naperons, as rolas, a tralha toda com que te afoguei ao princípio da crónica, tu, aproveitando uma pausa, a comunicares-me


Não esperes por mim para jantar

 

pondo, à pressa, mais perfume, visto que a buzina de um automóvel te chama da rua, e o Jorge é suficientemente impulsivo para nos entrar casa dentro.

 

António Lobo Antunes

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Domingo, 22.05.11

Vaidades, terrorismo e insensatez

Saia justa

 

Ferreira Gullar

 

Após os atentados de 11 de Setembro de 2001, a eliminação de Osama bin Laden tornou-se uma questão de honra para o presidente dos Estados Unidos, fosse ele quem fosse. É evidente que a inusitada audácia do terrorista, ao alvejar pontos de alta significação simbólica do poder norte-americano, atingiu o orgulho e a segurança da nação, sem falar no massacre de milhares de inocentes.

 

Se se leva em conta que, depois disso, Bin Laden aparecia com certa frequência na televisão do país formulando novas ameaças, o resultado inevitável era, no povo, o pavor de que, a qualquer momento e em qualquer lugar, o terror o atingisse de novo e, no presidente, a necessidade de por fim àquilo, ou seja, devolver ao país, a qualquer preço, a tranquilidade e a autoestima. Consegui-lo era uma missão irrevogável e o tornaria o salvador da pátria. Bush, apesar de todo o empenho, não o conseguiu.

 

Obama, ao ser informado de que o esconderijo do inimigo número um da nação fora descoberto, não hesitou, diante da oportunidade que a história lhe oferecia. A informação de que Bin Laden fora localizado era uma possibilidade, mas não uma certeza. No entanto, qualquer que fosse o risco a correr, desistir estava fora de cogitação. Por isso, o passo seguinte foi assegurar o modo de chegar até a casa-fortaleza e cumprir a missão. Pensaram em simplesmente lançar um foguete sobre o esconderijo e destruí-lo. Isso não apenas mataria indiscriminadamente quem ali estivesse, como tornaria difícil comprovar que Osama bin Laden fora eliminado.

 

Venceu a proposta de invadir a casa. Isso posto, passou-se aos meios de que se valeriam e à discussão de um problema político: deviam realizar uma ação militar em território do Paquistão sem a permissão de seu governo? Obama diria, mais tarde, ao anunciar o fato, que obtivera a permissão do governo paquistanês, o que depois foi negado.

 

De qualquer modo, jamais revelaria o objetivo de tal missão, que não revelou nem para sua mulher. A possibilidade de vazamento de tão decisiva tarefa aconselhava total sigilo. Se tal possibilidade está presente em toda e qualquer circunstância, ninguém em sã consciência se arriscaria a confiar no governo paquistanês, infiltrado de aliados da Al Qaeda. Bastava o fato de que Bin Laden ali se instalara e vivia, sem ser incomodado, nas vizinhanças de um quartel do Exército e a poucos quilômetros da capital do país. Quem quer que tivesse por missão dar fim a Bin Laden jamais revelaria qualquer coisa às autoridades do Paquistão.

 

Assim fizeram os norte-americanos e atingiram seu objetivo. Foi, na verdade, um ajuste de contas, porque o terrorismo de Al Qaeda nunca significou uma possibilidade de mudança no equilíbrio de poder no mundo, uma vez que se trata muito mais de uma seita de fanáticos, movidos pelo propósito de impor à humanidade uma visão fundamentalista do islamismo. Sem base territorial, sem Exército, tudo o que pode fazer é tramar e executar atentados contra o "inimigo": os países capitalistas ocidentais e, especialmente, o mais poderoso deles, os Estados Unidos.

 

Falando à Globonews, o jornalista inglês Robert Fisk, que entrevistara Bin Laden três vezes, antes e depois do 11 de Setembro, nos deu uma imagem bastante verossímil dele: vaidoso, convencido da missão de impor ao mundo a vontade de Maomé, atribuía-se o feito de ter destruído a União Soviética e a certeza de que faria o mesmo com o império norte-americano.

 

Vivendo desligado do que se passava no mundo, não se dava conta da complexidade da realidade internacional, chegando a afirmar que em breve haveria uma revolta do povo americano que acabaria com o regime capitalista nos Estados Unidos. Para que isso acontecesse, bastaria consumar os atentados que planejava. Não se dava conta de que os golpes eventuais do terrorismo, por mais audaciosos que fossem, não teriam a capacidade de alterar a correlação de forças econômica, política e militar em escala mundial.

 

A conclusão inevitável a que se chega é que a morte de Bin Laden tem limitadas consequências práticas, como, aliás, o próprio terrorismo, particularmente agora, quando os povos árabes se levantam clamando por democracia.

 

Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo/UOL

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Sábado, 21.05.11

Existem mundos

 

Um mundo de nomes

 

Mariana Ianelli

 

Não chegam notícias de Ghardaia. Não sabemos como é a vida em Sandoa. Deve existir um céu estrelado em Marbat, uma mulher deslumbrante em Kandalaksha, uma alma de poeta em Jayapura. Pode ser que ainda hoje nas ilhas Banks as pessoas tenham cada uma sua canção particular como carta de recomendação para o além-túmulo. Alguma delicadeza há de existir em Nanquim, algum prazer em Puerto Deseado, alguma fresca de fim de tarde em Buenaventura, coisas pequenas mas extraordinárias que façam jus à beleza desses nomes.

 

O que sabemos de cidadezinhas, ilhas e aldeias que de repente ocupam o noticiário do mundo é outra coisa. Sabemos de Leogane, Porto Príncipe e Carrefour porque ali a terra tremeu e esgarçou a chaga da miséria à vista de todos. Lembramos de Beslan porque esse nome evoca um massacre e cento e oitenta e seis velas acesas, uma para cada criança. Chegam notícias da ilha de Honshu depois de ter passado por ali um tsunami. Sabemos de Strasshof desde que uma menina desapareceu a caminho da escola e ressurgiu, fugida de um cativeiro, mais de oito anos depois. Dogo Nahawa muito possivelmente continuaria sendo uma aldeia escondida no mapa se centenas de agricultores não tivessem sido retalhados a golpes de facão. Nem tão cedo ouviríamos falar de Abbottabah se na madrugada de uma segunda-feira não tivessem descido ali vinte soldados com suas metralhadoras.

 

Quando esses nomes musicais e antes desconhecidos tornam-se o assunto do dia não é por seus jardins de cerejeira, sua pacatez, suas canções ao ritmo da colheita, suas terras morenas e brancas. São nomes que se fazem pronunciar por alguma exorbitância à altura do mundo. Não porque falem daquelas coisas pequenas mas extraordinárias que segredam que não existe um mundo. Existem mundos.

 

 


 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Sábado, 14.05.11

Mistura de grito, sussuro e canto

 

 

Noturno Profundo

 

Mariana Ianelli

 

A Áustria é um país de florestas negras e escritores noturnos. Basta pensar em Robert Musil, Ingeborg Bachmann, Thomas Bernhard. Há uma abóbada escura cobrindo telhados, bosques, igrejas, montanhas. Há um clima de outono e angústia. Se cada livro tem sua porção de luz e sombra, estamos no crepúsculo. Mas em toda paisagem não há nada tão sombrio quanto um poema de Georg Trakl. Não há paisagem mais cheia de trevas. Georg Trakl é a flor azul da Áustria, o pássaro selvagem, o noturno profundo.

 

Entramos na noite e em tudo o que a noite propicia, os sonhos, a loucura, as formas do medo, segredos de amor e morte. Púrpura, marrom, azul e negro são as cores de Georg Trakl. Existe uma massa escura de pinheiros e por baixo dela um ar de chumbo. Nessa pintura aparecem camponeses, pastores, caçadores, soldados e anjos. Aqui e ali, uma pincelada de branco, o branco de um rosto petrificado, o branco do mármore e dos ossos. Os animais da noite de Trakl são os morcegos, as serpentes, os ratos, as aranhas. A lua vermelha reflete o sol se pondo do outro lado do mundo. Há um canal por onde desce um barco vazio e estrelas que se apagam. Há uma cor de ouro, mas esse ouro não refulge, é a cor de um dia que termina, a cor de uma infância que já vai muito longe. O sentimento da paisagem é de desterro, de orfandade, a solidão do último homem de uma linhagem assombrado pelo vulto dos seus ancestrais. É também um sentimento de filho não-nascido, de inocência arrancada e morta. Então uns olhos se abrem. Os olhos amarelos de Deus. E no meio da noite um salmo se levanta, uma flauta entre os juncos, o matiz de todos esses azuis, lilases, vermelhos e brancos: a cor rosa do rosto de um anjo. Uma poesia que é mistura de grito, sussurro e canto: De Profundis.

 

Georg Trakl viu de frente o sofrimento dos soldados austríacos feridos na batalha de Grodek, na Galícia. Viu a melancolia de um exército quando se desagrega em combates individuais contra a morte. Trakl foi um dos que estiveram nos campos de sangue no início da Primeira Guerra. Tentou o suicídio uma vez e falhou. Não sendo isso tenebroso o bastante, Trakl e sua irmã Gretl eram cocainômanos e amantes. Em novembro de 1914, em sua segunda tentativa, agora com êxito, Georg Trakl morre de uma orvedose. Não se pode dizer que foi um poeta precoce. O que viveu em seus 27 anos muitos não vivem durante a vida toda. Não foi alguém que conheceu a noite, simplesmente. Foi alguém que esteve na noite profunda.

 

 

 

 

 


 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Quinta-feira, 12.05.11

Faças o que fizeres será mal feito

Cartilha maternal

 

António Lobo Antunes

 

A minha mãe tem noventa e três anos, está cega, está surda, é um farrapinho que o menor sopro leva e, no entanto, lembra-se do peso com que os seis filhos nasceram, das peripécias de cada parto, dos primeiros dentes, do momento em que começaram a falar, a andar, a tudo o resto, doenças, operações ao apêndice, gracinhas, e dá-me ideia que os considera, ainda hoje, como as crianças que foram, mascaradas de adultos.

 

Ontem, ao despedir-me dela, beijei-a e a reação foi

 

- Isso é maneira de se dar um beijo?

 

seguida de

 

- Um beijo como deve ser, se fazes favor

 

e lá lhe pus, na bochecha, um beijo como deve ser.

 

E tinha razão porque me limitara a roçar-lhe a testa com a boca. Várias vezes a ouvi perguntar aos meus irmãos

 

- Não sabes dar um beijo como deve ser?

 

de pé, minúscula, mirando as sombras que agora somos para ela e que, mesmo assim, consegue avaliar

 

- Estás mais gordo, estás mais magro

 

com uma exactidão infalível. Passa connosco os jantares de quinta-feira em silêncio, o Pedro grita-lhe na orelha as poucas coisas que lhe dizemos, vive, sem uma queixa, numa solidão absoluta

 

- O que é que faz o dia todo?

 

- Penso

 

às voltas com recordações, memórias.

 

Uma ocasião, ainda o meu pai estava vivo, sentiu-se mal. Formaram-se duas brigadas de filhos, metade permaneceu em casa a acompanhar o meu pai, a outra metade partiu com ela para a Cuf. Sem uma queixa, exigiu, antes de partir, subir ao primeiro andar para se pôr mais bonita: maquilhou-se melhor, penteou-se melhor, apareceu com uma écharpe, um broche e um sorriso

 

- Até logo ou até ao outro mundo

 

e, por acaso, foi até logo. Isto sem alarme, sem pânico, sem patetismo algum: absolutamente tranquila:

 

- Até logo ou até ao outro mundo

 

e que lição de dignidade vinda de uma pessoa que diz ter muito medo da morte.

 

Eu sou o mais velho e, ao nascer, quase a matava de uma eclampsia. Depois de me tirarem a ferros quem ia indo desta para melhor era eu, porque toda a gente, ocupada com a moribunda, se esqueceu de mim. Segundo a lenda familiar foi uma tia velha, uma das primeiras senhoras a matricularem-se em Medicina, quem me descobriu sem respirar. E, não me lembro como, porque a memória dos meus primeiros minutos, ignoro porquê, não é lá muito boa, conseguiram reanimar o crianço.

 

Mas antes disso, quando transportavam a minha mãe para a sala de partos, já com visão dupla e os outros sintomas todos, conta ela que a maca passou pelo meu pai, encostado à parede do corredor.

 

A minha mãe

 

- Eu não te disse que ia morrer?

 

E o meu pai não encontrou melhor resposta do que

 

- E o que é que queres que eu faça?

 

e até ao dia de hoje ela não esqueceu esta frase.

 

Ao falar nisto, muito mais tarde, o meu pai continuava sem lhe entender a indignação

 

- E o que é que tu querias que eu fizesse, realmente?

 

como se continuasse, encostado à parede, a ver passar a mulher moribunda. Aliás a doença e a morte são assuntos a que nos referimos pouco entre nós, o pudor sempre nos impediu a expressão, em voz alta, dos sentimentos mais íntimos, e gostamos uns dos outros sem falar nisso. Sofre-se calado e acompanha-se o sofrimento calado. Em regra tampouco se cumprimenta um de nós pelos seus sucessos ou se critica o que não gostamos: uma espécie de princípio de vasos comunicantes silenciosos chega.

 

Quando de um problema de saúde na tribu, em lugar de soprar fosse o que fosse ao meu irmão que o teve ofereci-lhe um pião e o respectivo cordel, um pião igual àqueles que deitávamos em criança, de pau e com um prego a fazer de bico. Não se calcula a quantidade de emoções que um pião sabe explicar, ou como um pião é capaz de resumir os numerosíssimos afectos de uma vida inteira. O meu irmão percebeu. Eu sabia. E chega.

 

Tenho estado para aqui a escrever sobre a minha mãe e, se calhar, parece que gosto muito dela: não é verdade. A nossa relação é demasiado complexa, como qualquer relação verdadeira, mas não vou, evidentemente, falar disso. E a relação de um homem com os pais foi sempre um assunto penoso, cheio de julgamentos implacáveis, muitas vezes injustos, muitas vezes cruéis, olhando-se mutuamente num rancor de acusados.

 

Quando um amigo de Freud lhe perguntou como educar o filho, Freud respondeu

 

- Faças o que fizeres será mal feito

 

e eis uma verdade do tamanho do mundo, pela qual os pais e os filhos pagam um preço demasiado grande. Um preço insuportável. Não merece a pena andar com paninhos quentes dado que não se pode escapar disto.

 

Recordo-me de uma senhora para o marido

 

- Gostas de mim, Zé?

 

e do marido

 

- Isso são coisas a que não se pode responder de ânimo leve

 

que me dá ideia, embora o senhor, na cabeça dele, estivesse a brincar, que me dá ideia de ser a única resposta honesta possível.

 

A frase

 

- Isso são coisas a que não se pode responder de ânimo leve

 

gira-me há anos e anos, na cabeça, a mim que pertenço à classe dos eternos culpabilizados e questiono sempre tudo. Não me apetece insistir nesta matéria. Primeiro porque dói, segundo porque ninguém tem nada a ver com isso e terceiro porque não se deve pôr um coração debaixo de cada palavra. Os livros que escrevi, o livro que escrevo agora, os livros que, se tiver tempo, escreverei, falam o suficiente de vocês e de mim. A nossa sede de amor é inextinguível. Mas não vou passear pela rua de caneca na mão.

 

 

 

 

 

 

António Lobo Antunes

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Sábado, 07.05.11

Ternos Pombos

Crepúsculos

 

António Lobo Antunes

 

Noite. No prédio em frente um rapaz diante de um computador, as outras janelas às escuras. Árvores sem folhas ainda, algumas pessoas na esplanada em baixo. Interrompi o livro para escrever isto. Não bem escrever, a caneta anda sozinha. Quais palavras vai ela desenhar neste papel agora? E o livro à espera que eu volte.

 

O que fará a minha mãe neste momento? Deve estar na cadeira do costume, à espera de nada. Que coisas pode esperar ainda? Diz que se lembra da sua vida, ressuscita episódios defuntos, conversa com a parentela dos retratos. Quanto mais infelizes são as pessoas mais medo têm da morte. Mas não serão quase todas mais ou menos infelizes, com uns momentos de alegria aqui e ali?

 

Como é que está? Vou indo não entendo muito bem o que é ir indo, às vezes sublinhado pelo traço vermelho de um suspiro que, quase sempre, antecede o ir indo. Primeiro sublinha-se e depois é que se põe a frase. E há sempre doenças, maçadas, desgraças a contar, que se escutam com gravidade e pena. Entre os tais momentos de alegria existe um que me surpreende especialmente. Costuma chegar com uma satisfação disfarçada Sabes quem está muito mal? e sente-se o prazer de dar notícias dessas, quer dizer qualquer coisa não inteiramente desagradável mora em comunicações desse tipo, antecedidas de uma pausa expressiva e das sobrancelhas circunflexas, embora se repare na luzinha a espreitar por baixo. O Sabes quem está muito mal? continua em regra com Quando me contaram fiquei todo arrepiado ou Quero ver se arranjo tempo para a ver ou Custa-me imenso mas tenho de lá ir ou Ainda há um mês almocei com ela, estava óptima, cheia de planos, e agora, de repente, isto. Não valemos um chavo mas agarram-se ao chavo, trémulos de cagaço Devia fazer exames, eu no pânico de confessar ao doutor Quando respiro parece que tenho vidros moídos aqui com a certeza de que Devem ser nervos tranquilizando-os.

 

O rapaz do computador no prédio em frente levanta-se, desaparece, regressa a subir o fecho da braguilha. Que motivo leva boa parte dos homens a voltarem da casa de banho subindo o fecho da braguilha? Nos urinóis dos aeroportos, por exemplo, a maioria regressa a aperfeiçoar-se nas calças, de saco a tiracolo. Até param para ajustar melhor as saliências, e os primeiros passos são de perna aberta, com um Merda interior porque um pingo na fazenda. Sacode bem insistia a minha avó Sacode bem, menino e não era preciso sacudir se a pila fungasse. O rapaz no computador desceu o estore e perdi-o. Suponho que está a matar monstros num desses jogos utilíssimos que farão dele, em crescendo, Secretário de Estado ou administrador de empresas, duas classes que me fascinam. Os monstros desintegram-se em explosõezinhas amarelas.

 

O meu pai era só médico, o pobre, nunca lhe ouvi a palavra crise. Também nunca lhe ouvi Sabes quem está muito mal? conforme nunca ouvi a nenhuma alma Sabes quem está muito bem? e porque carga de água nunca se diz Sabes quem está muito bem?

 

Árvores sem folhas ainda, algumas pessoas na esplanada em baixo, a fumarem. O homem que ficou tan-tan da guerra em Angola passa por eles aos gritos. De vez em quando dá um soco num caixote do lixo e volta para trás a insultar fantasmas. A minha mãe lá continua decerto, na cadeira, convocando defuntos. A minha avó Vocês matam a vossa mãe com as suas condecorações e os seus santinhos. As condecorações, num armário com portas de vidro, pertenciam ao meu bisavô. Eu gostava especialmente da Torre e Espada, e ela deixava-me abrir o armário e enfeitar-me de medalhas até me tornar uma árvore de Natal heróica.

 

Condecorações portuguesas, inglesas, uma chinesa até, complicadíssima, uma placa de oiro cheia de fios compridos. Às vezes pegava-me na mão à mesa e os seus dedos macios, mas as veias saídas faziam-me impressão. Era muito alta, de olhos azuis, imponente. Em contrapartida o meu avô pequeno, os irmãos dela chamavam-lhe O berloque da Margarida e lembro-me da minha mãe beijá-la quando deixou de respirar. Almoçava aos domingos em sua casa e comia como um alarve. Em adolescente, no que se refere a alarvidades, fui sempre uma competência. Poucas pessoas terão sido, como eu, um virtuoso da estupidez, um talento na asneira. Já esgalhava uns sonetos, bebidos nos poemas de pé quebrado que senhoras, tão prendadas quanto eu, publicavam no Almanaque Bertrand, em edições antes de eu ter nascido. Na base de cada folha havia um pensamento em itálico, com o nome do autor no fim, entre parênteses, pensamentos que eu achava prodígios de lucidez. Decorei vários e tornei-me cultíssimo.

 

Uma ocasião recitei um ao meu pai, que me perguntou se eu não era parvo. Não era: era erudito, condição que, de tão subida, o infeliz não enxergava. Aliás não se erguia além de porcarias rasteiras, Flaubert, Camões, vulgaridades assim, para quem maravilhas como Palram pega e papagaio e cacareja a galinha os ternos pombos arrulham geme a rola inocentinha eram inatingíveis. Nem pus pontuação, de tal modo tanto génio me arrebata. O meu pai detestava os ternos pombos, com o pretexto fútil que lhe sujavam o carro e as cagadelas, além de custarem a sair, manchavam a pintura. Na minha opinião era uma sorte que fossem os ternos pombos a enodoarem o carro. Imaginem só o que aconteceria se as braguilhas dos passageiros do aeroporto pendessem das árvores.

 

 

 

 

 

 

António Lobo Antunes

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Um lugar que se habita

Dia do Silêncio

 

Mariana Ianelli

 

O que quer que justifique a data, é irresistível pensar que esse dia existe desde sempre, que apenas gradativamente foi perdendo espaço, sendo expulso, até resultar numa ilha remota da qual já não se tem notícia, um pedaço de terra aonde agora só se chega, quando se chega, para breves passeios turísticos.

 

Não é o lugar onde alguém fica ruminando uma estratégia, uma jogada de mestre, qualquer coisa bem pensada que vai crescendo, amadurecendo na sombra, não é isso. Nem é uma forma de protesto, um estado de alerta, uma prova declarada de desprezo ou uma divergência tão grande que nada vale a pena ser dito.Não é um minuto de silêncio pelas vítimas de uma chacina.

 

Existe a censura, a veladura, o regime do medo, mas também não é isso, esse túmulo de verdades escondidas onde o que fecha a boca é a impotência, a humilhação ou a cumplicidade num crime. Tudo isso existe dentro de limites bem conhecidos e forma só uma casca de silêncio. Por baixo e ao redor dessa casca continua o mesmo barulho, o mesmo trabalho de colmeia, um mundo de insatisfações, de intenções e de interesses confundidos.

 

O silêncio que ficou difícil, que foi aos poucos se afastando e se perdendo é outro. Não quer significar nada, não sente falta de nada. Não tem o que esconder nem o que reprimir. É quando tudo repousa por dentro. Um horizonte tranquilo, exato, completo. Nenhuma rajada de vento, nem mau pressentimento, nenhum desejo de estar em outra parte. É um chão de pedra com silêncio de pedra. A coisa mais simples. Uma paragem. Um lugar que se habita.

 

Lembrando Ernesto Sabato falecido na madrugada do dia 30/04, último sábado:

 

A dois meses de seu centenário, Sabato encetou viagem para outros séculos. Porque lhe parecia triste morrer, foi mais além: tornou-se o anfitrião de uma outra realidade. Penetrou na noite definitiva, como fazem aqueles que de um sonho não voltam mais. Agora podem esses dois grandes amigos, Borges e Sabato, retomar sua conversa e devanear sobre a vida como antes devaneavam sobre a eternidade.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Sábado, 30.04.11

Uma nota de elegância

Quem é Leonard Cohen

 

Mariana Ianelli

 

Leonard Cohen era ainda um menino quando foi seduzido por essa mulher mítica, de sensualidade litúrgica, pestanas orvalhadas e perfume de vinhas floridas. Devia ter oito ou nove anos quando isso aconteceu, quando a poesia desabou sobre ele dentro de uma sinagoga em Montreal. Desde muito cedo pensou que podia ser escritor, mas nunca esteve completamente seguro disso. Foi assim que se mudou para a torre da Música, duvidando sempre. Foi assim que se viu atado a uma mesa, fadado a esperar por anos a fio até encontrar a palavra certa, o verso perfeito, porque essa era a sua religião.

 

Poeta, monge, cantor, amante são títulos que dizem pouco sobre Leonard Cohen. Melhor dizer que ele já abdicou de muitas coisas, que elegeu um país solitário e içou uma bandeira branca, que discutiu com a Eternidade e uma vez se deitou com uma mulher de ancas infantis em um quarto em Los Angeles. Que adormeceu a meio de um salmo, jejuou em segredo e foi um dos filhos da neve, esse mesmo filho que depois dos cinquenta teve saudades da mãe e desejou levá-la para a Índia e vê-la maravilhar-se com a cinza do Mar Arábico.

 

Leonard Cohen é esse homem pouco nostálgico, que não pode ser confortado nem guarda remorsos, o que teve o coração desfeito e ficou acordado a noite inteira pensando em alguma forma de beleza. É esse homem que afundou feito uma rocha, que raspou a cabeça, envergou uma túnica e agiu generosamente mesmo remoendo de ódio por dentro. É esse admirador das belas mulheres de Bombaim, o que espera que haja música no Paraíso, o pequeno judeu com sua Bíblia, que escreve sobre as sombras do Holocausto e sobre uma nuvem em forma de cogumelo, aquele que ama Joana d’Arc como uma de suas últimas mulheres.

 

Leonard Cohen é o peregrino que navega numa barca de asas decepadas, o que compõe um longo poema chamado Isaías, o apaixonado que, mesmo tendo esquecido metade da sua vida, ainda se lembra das coxas de uma mulher escapando das suas mãos como um cardume de peixes assustadiços. É esse homem que uma vez sentiu o seu corpo tão cheio de ternura que se dispôs a perdoar a toda gente. Esse poeta que escreveu durante anos poemas em uma mesa entre ervas daninhas e margaridas no fundo de uma casa em uma ilha do mar Egeu. Esse amante da lua que já tentou remover com seus óleos o feitiço do rival sobre a memória da namorada.

 

Leonard Cohen canta para o vento porque o vento é amigo do seu espírito de pluma. Ele sabe que os insetos são como os místicos por mal distinguirem entre vida e morte. Sabe que as possibilidades estão aí para serem derrotadas. Sabe também que o seu tempo está se esgotando e que nunca entenderá completamente esse vale de lágrimas. Não espera vitória nem honrarias. Conhece muito pouco do seu próprio nome. Um dia reuniu suas partes todas em torno de uma súplica, desejou morrer na cruz por um amigo, hesitou entre abandonar um amor e acompanhar os peregrinos, deixou sua túnica pendurada no gancho de uma velha cabana de um mosteiro e levou uma mulher até a beira do rio para amá-la, como qualquer outro homem teria feito.

 

Leonard Cohen está sentado debaixo de uma janela onde a luz é intensa. Está muito perto das coisas que perdeu e sabe que não terá de perdê-las novamente. É esse homem que melhor se sente quanto menos sabe quem é. Esse que agora sobe ao palco para cantar, no auge dos seus setenta e seis anos, com seu chapéu de feltro e seu terno impecável, provando que ainda existe neste mundo uma nota de elegância. Que ainda existe alguém que sente e pensa com elegância. Isso ele nos diz sem palavras, com um sorriso de doçura, apenas.

 

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Domingo, 24.04.11

Yes, nós temos umbigos

O formato do umbigo

 

Luis Fernando Verissimo

 

Aquela "pasta" curta e oca que os italianos chamam de "pene" tem este nome porque lembra o pênis, mas não deve ser verdade que a inspiração para o nome veio do pinto pequeno do Davi de Michelangelo. Os mesmos italianos dizem que os "tortellini" têm o formato do umbigo de Vênus, mas este parâmetro, como o pinto do Davi, também não é universal, felizmente.

 

A variedade de umbigos - côncavos, convexos, redondos, alongados, etc. - é, mesmo, uma das coisas que nos diferenciam um dos outros. Muitas coisas nos unem. Somos todos bípedes mamíferos. Todos os nossos antepassados, sem exceção, eram férteis. Todos sobreviveram até no mínimo a puberdade e todos tiveram ao menos uma relação sexual, digamos, convencional, e procriaram.

 

Somos portadores de uma linha ininterrupta de DNAs triunfantes, portanto, e essa ascendência idêntica nos permite não só um sentimento de família como um certo orgulho do que conquistamos como espécie. A Natureza e os germes têm feito o possível para interromper nossa linhagem, mas perseveramos e prevalecemos. Pelo menos até agora. Nossas diferenças estão nos detalhes.

 

Machos e fêmeas, para começar pela diferença mais óbvia. A cor da pele, a diferença mais superficial e sem importância que existe. E detalhes mínimos, como o formato do umbigo. Sabe-se que há muito mais destros do que canhotos no mundo, mas que tipo de umbigo tem a maioria? E que porcentagem lembra um "tortellini"? O umbigo tem causado controvérsias há gerações.

 

 

 

 Discutiam se nas imagens do Paraíso, Adão e Eva deveriam aparecer com ou sem umbigo, já que não tinham nascido de partos normais e sim feitos por Deus. Uma corrente justificava a presença de umbigos no primeiro casal como uma espécie e "imprimatur" do Criador, um carimbo bem no centro do corpo garantindo o equilíbrio da imagem e a autenticidade da obra. Outros encerravam a questão argumentando que, como Deus tinha criado o Homem à sua imagem, apenas reproduzira em Adão e Eva seu próprio umbigo, e quem ousava especular sobre a origem do umbigo de Deus? Na arte religiosa, os umbigos de Adão e Eva permaneceram. Como símbolo, ao mesmo tempo a marca da nossa ligação vital com o ventre materno e através dele com a nossa ascendência comum, com o cordão metafórico que atravessa os séculos e nos conecta todos ao começo da espécie, e à marca da nossa individualidade.

 

O formato do umbigo é uma das pequenas coisas que determinam se somos minoria ou maioria na nossa própria espécie. Podemos pertencer a categorias dominantes ou a pequenas dissidências, sem nunca saber. Quantos homens botam as mãos na cintura quando fazem xixi? Ou uma mão na cintura enquanto a outra garante a pontaria? Somos multidões ou uma confraria que não se conhece? É mais comum abotoar a camisa de cima para baixo ou de baixo para cima? E comer a casca do queijo? Ou gostar de bife de fígado? Você pode se achar meio esquisito sem suspeitar que a maioria das pessoas tem a mesma esquisitice, ou achar perfeitamente normal mastigar a gravata e não entender a estranheza dos outros.

 

O importante é, minoria ou maioria, nunca perder a consciência de que somos todos descendentes da mesma linhagem, a dos que venceram tudo o que conspirava contra sua reprodução. E temos os umbigos para provar.

 

Luis Fernando Verissimo

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Sábado, 23.04.11

Queimadas numa profecia

 

 

Depois do último dia

 

Mariana Ianelli

 

Quando as chaves giravam nas portas era a mesma pergunta para El Djohar Akrour e suas companheiras de cela: “Hoje somos nós?”. Da pequena janela dava para ouvir a guilhotina sendo montada lá fora. Isso foi há mais de cinquenta anos e El Djohar ainda se lembra das correntes nas mãos e nos pés. Como ela, muitos outros que participaram da guerra pela libertação da Argélia passaram pelo corredor da morte. Alá Akbar, gritavam os que iam para a guilhotina, Alá Akbar respondiam os condenados de dentro das celas. Os que receberam indulto agora se lembram.

 

Lembram das noites sem dormir, das orações, das canções, dos lamentos, lembram de jejuar um dia depois da execução de um condenado que poderia ter sido qualquer um deles. Não estavam mais sendo punidos por um crime, estavam levando sua resistência até o cúmulo do sacrifício. Tinham já cruzado o limite das intrincadas questões, das circunstâncias delicadas, dos pequenos problemas a serem resolvidos. Chegaram tão perto do último dia que foi como terem se queimado numa profecia.

 

Lembram de subir nos ombros uns dos outros até a janela engradada no alto da cela porque o que era feito lá fora era feito por eles, a montagem da máquina de calar os insurgentes. Lembram do peso do silêncio, horas longas para cumprir gestos mínimos, aqueles gestos de todos os dias, cegos, repetitivos, gestos de que ninguém normalmente se dá conta porque são mecanismos de rotina, absolutamente insignificantes se desta vez não tivessem a consistência de uma vida. Isso aconteceu durante os anos de terrorismo que encarniçaram a luta entre argelinos e franceses.

 

Quando uma cidade acordava às quatro horas da manhã para acompanhar um dos condenados, quando uma lâmina bem oleada trespassava uma cabeça e as mulheres da casbá respondiam com preces e cantos. Isso aconteceu mais de um século depois de Victor Hugo ter publicado O Último Dia de um Condenado, seu manifesto literário contra a pena de morte, “esse direito exorbitante que a sociedade se outorga, de poder subtrair o que não deu”.

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Quinta-feira, 14.04.11

Catedral sem fim

Deste profundo abismo, senhor

 

António Lobo Antunes


 

Os livros que escrevi trazem o meu nome mas tenho dificuldade em encontrar os seus autores. Só aquele que estou a escrever é feito por mim, os restantes parece-me sempre terem sido outros homens que os compuseram. Posso reconhecer-me no que sou hoje em algumas expressões, alguns desenhos de frase, alguns parágrafos talvez, gosto deles mas afiguram-se-me passos já dados, e que não desejo repetir, na direção do meu trabalho de agora, que, de certo modo, os engloba a todos. Julgo que compõem um único texto, ou que são afluentes de um único texto ainda não completo, e que, por mil anos que viva, ficará irremediavelmente truncado. Queria deixar uma catedral de palavras e dou-me conta que a catedral não tem fim. Queria arredondar o edifício, fechá-lo, e dou-me conta, desolado, da impossibilidade desse fecho, dada a inevitável limitação da vida. Não morrerei satisfeito, morrerei com a dor de não ter tido tempo.

 

Construirei uma obra mais duradoira que o bronze, afirmava Horácio: isso julgo que consigo. Ou Ovídio: hei-de sobreviver ao tempo, ao ferro e ao fogo: isso acho que também consigo. Porém desejava mais do que isso: uma música sem fim, uma sinfonia total. Decerto o que digo é a frustração de todo o artista e o inevitável destino da condição humana. Goethe consolava-se declarando ser o facto de não chegar ao termo a nossa única grandeza. E não conheço, em tantos autores que li, um só para quem este problema não constitua o drama da sua existência. Não se alcança a praia por mais que se nade, não há fita de chegada para esta maratona angustiosa e exaltante.

 

Quando a doença me filou pelo pescoço, essa ansiedade envenenou-me as horas. E, quando a mão me soltou, a marca dos seus dedos imprimiu-se-me na pele. Um dia, o conjunto de átomos que me compõem desintegrar-se-á sem remédio, e eu a meio da página de que não redigirei a última linha. Tenho o maior respeito pelos criadores visto que acabam sempre por perder e não mereciam perder. E tenho pena de mim porque triunfarei na derrota: um tiro bem acertado deitar-me-á ao chão a meio do voo, e serei uma perdiz esfarrapada numa moita, que um cachorro abocanhará para a entregar ao dono, o mesmo dono que traz, pendurados do cinto, aqueles que me precederam e enganchará no mesmo cinto os que vierem depois, com idêntica indiferença. Lembro-me das terríveis anotações de Mozart nas margens do seu Requiem, não tenho tempo, não tenho tempo, idênticas às de Gallois, que levou toda a noite a escrever antes do duelo que, de manhã, o matou, tentando condensar em poucos momentos as assombrosas descobertas dos seus dezanove anos de vida. É isto justo? E a resposta vem sinistra: é. Quem escolhe, ou foi escolhido, para este tipo de destino, finda, inevitavelmente, assim. É muito rara a correspondência de pintores, ou escritores, ou compositores em que a tragédia de que falo não esteja constantemente presente, como uma chaga viva.

 

Piedade para nós que trabalhamos nas fronteiras do ilimitado e do futuro, suplicou Apollinaire e, de facto, somos dignos de piedade. Há uns verões, num mosteiro da Roménia, o bispo cantou, com os padres e os seminaristas, uma oração pelas almas eternas dos escritores falecidos. Era uma igreja belíssima, no alto de uma encosta batida pelo vento e pelos grandes bandos de corvos chegados da Ucrânia, cujos campos de trigo se viam muito ao longe, e o canto, de dezenas e dezenas de vozes, alargava-se pelas nogueiras à volta da igreja, profundo, omovente, cheio, em simultâneo, de tristeza e de esperança, enquanto eu pensava em Gogol, o grande génio da Ucrânia, que nos retratos se assemelhava a um corvo, botando no fogo, a soluçar, toda a segunda parte das suas extraordinárias "Almas Mortas" e, em seguida, deitando-se na cama, recusando comer, até à agonia poucos dias depois: a literatura também tem os seus mártires, e nunca esquecerei a comoção que senti nessa igreja e a certeza que Gogol voava também, com os restantes corvos, em torno da colina, sobre as nogueiras em flor. Apollinaire, ainda: abram-me esta porta à qual bato a chorar, num verso que poderia ter sido composto por qualquer criador e que está sempre presente em mim diante de todas as obras de Arte. Abram-me esta porta à qual bato a chorar, é o que oiço, desde os poemas babilónicos, de há doze mil anos, até à mínima palavra de hoje. E quando Maiakovski explicou

 

(desculpem tanta referência)

 

comigo a Anatomia enlouqueceu: sou todo coração, estava a falar por nós.

 

Conheci homens políticos importantes, desportistas excepcionais, criaturas de extrema bondade, santos anónimos de alminhas puras mas jamais me emocionei tanto como perante os criadores, não pela sua capacidade de nos oferecerem a beleza na palma da mão estendida, juntamente com a dignificação do Homem, mas pelo enorme padecimento inerente a esta capacidade, e a certeza pavorosa do seu trabalho estar destinado a ficar incompleto.

 

Vem-me à cabeça Tolstoi moribundo, numa estação de caminho de ferro, percorrendo o cobertor com os dedos no gesto de escrever. É dessa maneira que gostaria de me ir embora: a escrever, com os dedos incertos, numa dobra de lençol, na tentativa falhada de completar o meu De Profundis necessariamente fragmentário. Oxalá, numa igreja da Roménia, cercada de corvos e nogueiras, um único seminarista, porque um único seminarista me chega, reze cantando pela alma eterna de mais um pobre escritor falecido.


 

António Lobo Antunes

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Domingo, 10.04.11

A espera, a aliança e a ferrugem

Tudo o que nos abandona

precisa de muito tempo para desaparecer

 

António Lobo Antunes

 

 


 

Tenho saudades tuas,

 

Ernesto,

 

mesmo com a aliança tenho saudades tuas, no outro dia vi-te com a tua mulher no supermercado

e apesar disso consegui fazer as compras todas,

 

uma pessoa da minha idade, talvez maior, mais bonita, achei esquisito não haver nada entre vocês há anos e embora ache esquisito acredito em ti

 

Porque razão não voltaste a telefonar e me deixas assim, suspensa, à tua espera?

Nem para o emprego

 

(conheces o número do emprego)

 

nem para casa, sabes que estou sozinha, não recebo ninguém, uma amiga de tempos a tempos que não impede que ligues, quando muito saio uma hora ou duas ao sábado para visitar a minha mãe, nunca vou ao cinema, nunca janto fora, como qualquer coisa por aqui, leio uma revista

 

(nem leio uma revista, folheio, vejo as fotografias e é tudo, ou antes nem vejo as fotografias, fico a pensar em ti)

 

poiso a revista, abro a televisão, fecho a televisão, vou à janela espreitar a rua, penso que é o teu carro a estacionar lá em baixo

e nunca é o teu carro a estacionar lá em baixo,

nunca és tu a fechar a porta com o comando eléctrico

e as luzes do automóvel a acenderem-se e a apagarem-se,

nunca são os teus dois toques de campainha, nunca é o teu aceno no capacho nem o embrulhinho de biscoitos

de que não gosto e me forço a comer e a fazer dieta no dia seguinte dado que os biscoitos engordam,

nunca é a tua mão no meu ombro

 

- A minha menina

 

o teu perfume, a tua maneira de acomodar o rabo no sofá, a tua aliança que apesar de normal me parece sempre enorme e me dói,

não tenho coragem de te confessar que me dói mas dói, conforme me doem as tuas mentiras

 

- Há anos que não há nada entre nós

 

que me obrigam a perguntar, calada, se entre nós há alguma coisa,

vinhas uma ou duas ocasiões por mês, não ficavas nunca e, no entanto, bastava-me, não peço muito à vida, não peço seja o que for à vida,

acostumei-me, não tenho motivos para lamentar-me,

 

o que ganho chega, graças a Deus a saúde não me tem faltado apesar do problema da coluna, tomo as injeções no posto médico e as coisas vão andando,

o creme que me receitaram na farmácia ajuda,

o apartamento claro que não é grande mas para mim sozinha chega e sobra,

não existe uma prestação por pagar, arranjo sempre um dinheirito ao fim do mês, volta e meia compro um vestido, uns sapatos,

os vizinhos não fazem barulho, há agora um bebé no primeiro direito mas sossegado, tenho saudades tuas, Ernesto,

 

mesmo com a aliança tenho saudades tuas,

 

no outro dia vi-te com a tua mulher no supermercado e apesar disso consegui fazer as compras todas,

uma pessoa da minha idade, talvez maior, mais bonita,

achei esquisito não haver nada entre vocês há anos e embora ache esquisito acredito em ti

 

- És a minha menina

 

preocupo-me com o teu coração sempre que levas a mão ao peito,

tiras um comprimido de uma caixinha, me pedes água, me ofereces um sorriso pobre

 

- Ferrugem na máquina

 

e a seguir melhoras, suponho que o comprimido limpa a ferrugem toda, aflijo-me com a tua palidez,

com o dedo a medir a pulsação julgando que não noto, como podia não notar, tudo o que te aflige assusta-me, não te aborreço

 

- Que ferrugem na máquina?

 

para que não te sintas velho ou inútil, suponho que tens sessenta anos e portanto uma vida inteira à frente, o emprego deve cansar-te,

as maçadas, quando menos se espera descais-te num suspiro

 

- A minha filha

 

não há maneira de ter juízo e ignoro o que, na tua ideia, não ter juízo seja, fico calada, é evidente, trago-te aquele licor fraquinho que tu gostas,

faço-te festas no pescoço, a medo, com receio de maçar-te, não reclamo seja o que for, não mendigo seja o que for,

só desejava que de tempos a tempos te lembrasses de mim,

 

há sete meses que nem uma palavra, inquieta-me que a ferrugem haja aumentado e estejas na sala de espera de uma consulta, emagrecido, pálido, digo

 

- Ernesto

 

em voz alta como se dizer

 

- Ernesto

 

e melhorasse, comove-me que andes a perder cabelo, que o nó da tua gravata um bocadinho torto, que uma tremura no queixo,

pode ser que mais de sessenta anos, sessenta e cinco, setenta e apesar de setenta a vida inteira à tua frente à mesma,

o que eu não dava para te ter aqui um momento, um minutinho, um instante,

 

na tua última visita trazias dentes novos que te tornavam mais vigoroso apesar de mal pegados à gengiva e a incomodarem-te que se percebia por estares constantemente a empurrá-los com a língua, oxalá encontres um pó que segure a placa,

 

a minha mãe usa um pó que segura lindamente a placa, repara-se que placa mas firme como uma lapa no queixo, mastiga de tudo, não te agradava ficar um momento comigo no sofá, não te anima o licorzinho, a quantidade de vezes que digo em voz alta, aqui em casa

 

- Ernesto

 

na esperança de um sorriso teu, mesmo pobre, mesmo aflito, na esperança de

 

- A minha menina

 

e eu, sem coragem de responder

 

- O meu rapaz

 

digo

 

- O meu rapaz

 

para dentro, não me sai, não consigo, faço tanta cerimónia, não me atrevo a procurar-te, a tentar saber de ti, a incomodar, a protestar

 

- Que aliança tão grande, Ernesto

 

eu que não casei nunca, uns namoricos, umas cartas cerimoniosas, um domingo, durante uma excursão no norte, um (desculpa) beijo, estava guardada para ti desde sempre, guardada para ti, Ernesto, seria incapaz de me imaginar com outro homem, continuo à tua espera, sabias, que arrumes o carro, subas, me garantas

 

- A minha menina

 

enquanto verificas se trazes a caixinha dos comprimidos no bolso, pode parecer-te parvo mas adorava acariciar a caixinha, não te rias de mim, ou antes não levantes na minha direção o teu sorriso pobre e a tua desculpa

 

- A ferrugem

 

mesmo que fosses um parafuso todo escuro adorava-te, guardada para ti desde sempre, a comer qualquer coisa sozinha, a folhear uma revista, a fechar a televisão, a deitar-me, guardada para ti, Ernesto, podes ter a certeza, desde o princípio do mundo.


 

António Lobo Antunes

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Sábado, 09.04.11

Explosão de estrelas

Breve anotação sobre um tigre

 

Mariana Ianelli

 

Júbilo é uma palavra difícil de viver. Algo raro, tão raro quanto um tigre. Demora para acontecer, mas quando acontece, uma pessoa já não pode mais voltar ao que era antes de ter sentido o que sentiu.

 

Um acontecimento assim é o que excita um poeta a meter-se no escuro, procurando. Porque se existe um lugar além de um templo na Tailândia onde ainda hoje esse tigre passeia livre, longe de armadilhas, esse lugar é um poema. Precisa de silêncio para existir, por isso é tão raro o júbilo.

 

Não é algo que se possa dizer, é algo para ser sentido. Precisa de um tempo que perdure e, sobre esse tempo, um poema não mente. Não importa quantos dias sejam necessários trabalhando, vagando à procura, o tempo do poema depende do fulgor de um momento e esse momento depende de uma vida. Pretender tomá-lo à força, além de inútil, seria ridículo. Pode estar próximo e cada vez mais próximo, pode se fazer pressentir numa pausa do vento, num prólogo de bonança, e ainda assim não é certo que venha. Um júbilo não se compreende, é-se compreendido por ele, envolvido por ele, abraçado, possuído.

 

Traçar um plano de busca, estudar um provável cruzamento de rotas para encontrar esse animal rajado seria perder a explosão de estrelas que existe em ser por ele surpreendido numa estreita passagem. Procurá-lo pede um pensamento vago, qualquer coisa de desejo distraído, um devaneio sem pretensão de eficácia, sem meta a ser atingida, a sugestão de que está bem como está, o júbilo venha ou não venha.

 

É procurar indefinidamente até que chegue esse momento, um momento de presença, esse instante puro de descobrimento em que o poema diz amor e o amor é feito. Entra no poema quem entra nesse bosque sem palavra, nesse erotismo de uma comunicação profunda. Mas tudo o que se fala sobre o júbilo sempre é pouco, muito pouco fora do seu acontecimento. O júbilo acontece livre e no silêncio. É uma alegria rara, que perdura, um prazer de melodia quando irrompe, quando arrebata e transverbera um corpo. Não se pode apanhá-lo numa palavra. E mesmo que ficasse preso, que fosse agarrado, absurdamente enredado numa armadilha, já não seria júbilo, seria só um animal triste.

 

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 14:22 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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