Quarta-feira, 20.04.11

8h46 - Conto de José Mário Silva (Efeito Borboleta)

 

 

 

 

 

8h46

 

 

 

 

 

 

Enquanto espera pela hora da reunião, sentado numa cadeira Barcelona, Jonathan K. imagina a mão de Mies van der Rohe a desenhar com minúcia, há precisamente 74 anos, aquele prodígio de design. Tocando muito ao de leve no couro negro, pensa: "Isto sim é uma cadeira, não apenas um assento para corpos demasiado humanos."

 

A reunião, marcada para as oito e meia, vai começar mais tarde. O CEO comeu qualquer coisa esquisita ontem à noite (certamente um dos malditos hors d'oeuvre com que as galerias de Manhattan envenenam os seus clientes) e será substituído por um dos quadros superiores da empresa, infelizmente ainda a caminho, algures no trânsito caótico de Upper East Side. O encontro só começará por volta das nove horas, diz-lhe a secretária, sorridente. "OK", responde Jonathan, "eu espero". Um café? "Sim, obrigado, mas sem açúcar."

 

Na parede de tons claros, uma imitação tosca de Salvador Dali. Elefantes de patas gigantescas caminhando por entre os arranha-céus, uma mulher nua feita de gavetas, o silêncio espectral do deserto insinuando-se atrás da cidade de vidro. O quadro é horrível. Jonathan K. sente uma veia a pulsar no pescoço. "O que raio estou eu a fazer aqui?" Atrás de uma porta transparente, a secretária fala ao telefone e faz-lhe um sinal. Não se esqueceu do café. Continua a sorrir muito.

 

Jonathan revê mentalmente a sua vida nos últimos quatro meses. A queda na piscina do hotel de Miami. O som da cabeça a bater numa aresta de cimento. O túnel de luz (igualzinho ao do quadro de Hieronymus Bosch). A sala dos cuidados intensivos, vista do tecto, fora do corpo. As duas semanas em coma. O acordar violento, como quem regressa ao princípio de tudo. A demorada reaprendizagem dos gestos. A epifania daquela manhã de sábado em que decidiu, com a convicção dos profetas, emendar os muitos erros da sua existência.

 

A outra vida, a vida anterior, está envolta numa espécie de nevoeiro. Já quase não se lembra dos anos passados em África. O negócio das armas, o tráfico de influências, os muitos mortos que as suas decisões, os seus lucros, engendraram. A fortuna manchada de sangue vai sendo repartida por fundações, ONG's, empresas solidárias, causas filantrópicas. Foi também por isso que veio esta manhã até ao 53.º andar da Torre Norte do World Trade Center. "Serei algum dia capaz de salvar a minha alma?", pergunta-se.

 

A secretária sorridente traz-lhe o café. Jonathan K. bebe-o junto à janela. No Patek Philippe, os ponteiros marcam 8h46. Pelo seu rosto passa, súbita e absurda, a sombra de um avião.


 

© José Mário Silva - Efeito Borboleta e outras histórias, edições ardotempo, 2010

ISBN nº 978-85-62984-04-4

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Sábado, 01.01.11

Papelaria

 

 

 

O miúdo


António Lobo Antunes

Costumava ficar na loja, durante o almoço, para que o pai e o irmão pudessem ir a casa comer. As aulas da tarde começavam às três e embora tivesse só onze anos o pai confiava nele:


- Nasceu para isto


dizia à mãe com orgulho, a desfazer-lhe o ombro numa palmada satisfeita, o raio do miúdo nasceu para isto. Era uma loja pequena, uma papelaria, os clientes moravam no bairro, tratavam-no por tu, conhecia-os todos, sabia mexer na caixa, sabia o preço das coisas, e mesmo os estranhos, tão raros, gostavam de ser atendidos por ele. A maior parte do tempo, aliás, não atendia ninguém: lia revistas aos quadradinhos ou essas, de modelos, tão diferentes da mãe, magras, bonitas e quase sem roupa, que namoravam jogadores de futebol ou atores de novela, de peito ao léu e ele pasmado. Eram duas e meia, no relógio hexagonal por cima do tabaco e dos isqueiros de plástico, o pai e o irmão deviam estar a chegar, guardou os modelos na pilha dos modelos


(algumas cá fora, dos dois lados da porta, presas com pinças de roupa)


guardou os quadradinhos na pilha dos quadradinhos


(nenhuma cá fora, dos dois lados da porta, presas com pinças de roupa)


e só então deu pelo sujeito, de costas, a pegar num boneco de feltro, a examinar-lhe o preço, a poisá-lo, trocando-o por um Bambi cromado numa peanha de madeira, a voltar-se erguendo o Bambi à altura dos olhos


- Bonito, não achas?


antes de o deixar cair no soalho, a interessar-se


- Quantos anos tens, miúdo?


um sujeito mais ou menos da idade do irmão, vinte e um, vinte e dois, com uma tatuagem no pulso, de cabelo comprido e trança de cabedal à volta do pescoço. Respondeu


- Onze


no momento em que o sujeito dava um pontapé no Bambi, que desapareceu a saltar no passeio.


- Bela idade, miúdo, bela idade


aprovou o sujeito a fechar a porta da rua e a virar o cartão, pendurado de um anzol, do lado que anunciava Aberto para o lado que anunciava Fechado.


- Assim estamos à vontade, miúdo, só tu e eu cá dentro, não achas?


Depois de virar o cartão desceu a persiana metálica da porta. Não devia fazer a barba há uma semana e usava brincos a imitarem caveiras. O miúdo encostou-se à parede atrás do balcão, a sentir o puxador de uma gaveta contra os rins. Viu um amigo do pai passar lá fora, entre as prateleiras da montra, o senhor Lima, que trabalhava nos impostos, viu a dona da mercearia em frente a inspecionar pêssegos num caixote, com uma freguesa, e um automóvel da polícia, com um par de guardas lá dentro, a rodar devagarinho. O sujeito assentou os cotovelos no balcão numa confidência amiga


- Sou compincha do teu mano, miúdo


e inclinou-se para diante repreensivo


- O problema, percebes, é que me faltou ao respeito


enquanto o puxador da gaveta entrava na carne do miúdo e principiava a doer-lhe. O sujeito insistiu


- Faltou-me ao respeito


e pediu-lhe a opinião, a ajeitar o brinco


- O que é que tu fazes quando te faltam ao respeito, miúdo?


o olho direito guinava-lhe um bocadinho para dentro. Mais cinco ou dez minutos e o pai e o irmão chegavam. Respondeu


- Não sei


e não sabia de facto, nunca lhe tinham faltado ao respeito e não entendia muito bem o que faltar ao respeito significava. Na verdade não entendia mesmo o que faltar ao respeito significava. Às vezes a mãe, para uma vizinha


- O meu marido nunca me faltou ao respeito


a vizinha a aprovar, muito séria, e ele sem coragem de perguntar.


- O que é respeito, mãe?


por se lhe afigurar um assunto grave e terrível. Vinte para as três e a cara do sujeito, desiludida


- Entreguei ao teu mano uns saquinhos com uma coisa cara para vender e ele ficou com o dinheiro, miúdo


e o miúdo contente por aprender o que era o respeito: se a mãe desse ao pai saquinhos com uma coisa cara para vender o pai entregava-lhe logo o dinheiro. O sujeito percebeu o soslaio ao relógio:


- O teu mano gosta muito de ti, não gosta, miúdo?


enquanto tirava uma pistola do blusão e atarraxava, no cano, uma espécie de tubo


- Isto não me dá prazer nenhum mas vais ver como o teu mano entra na ordem


com o miúdo a pensar que a pega da gaveta lhe ia sair pelo umbigo. Não saiu. O sujeito disse


- Gostei de te conhecer, miúdo


e a seguir um estalo, e a seguir outro estalo. De bochecha nas revistas, o miúdo viu-o subir a persiana, virar o letreiro ao contrário, do lado que anunciava Fechado para o lado que anunciava Aberto, deixar a porta escancarada e sair. Por menos de trinta segundos, risquinho por risquinho no relógio da papelaria, não assistiu à chegada do pai e do irmão.


António Lobo Antunes

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Terça-feira, 02.11.10

Conto de José Mário Silva


IC-19

 


Há muitas coisas no mundo que não compreendo. Mas o que me atormenta mesmo, palavra de honra, é não entender por que carga de água existem engarrafamentos. É um mistério inexplicável, um enigma. As filas de automóveis formam-se, crescem, esticam-se por quilómetros e quilómetros, mas quando uma pessoa chega ao sítio onde era suposto haver um estrangulamento, um desastre, qualquer coisa de grave, verifica com espanto que não há nada de anormal e que o trânsito até flui com facilidade.

 

Confesso que este fenómeno não só me deixa perplexo como profundamente irritado. Já que um homem esperou não sei quanto tempo fechado num carro, com os nervos em franja e a paciência a ferver, ao menos que fosse por uma razão forte, um acidente com vários automóveis amachucados, com pessoas feridas na berma e muitas ambulâncias e bombeiros e macas, uma coisa em grande, digna de ser mostrada no telejornal das oito. Mas quase nunca há razão forte nenhuma. Na melhor das hipóteses, estão dois homens de gravata a discutir por causa de um farolim partido. Ou então é uma senhora que deixou o carro ir abaixo e não consegue pô-lo a funcionar por causa dos nervos e das buzinadelas. São sempre coisas destas, coisas menores. Nunca nada que justifique tantas horas com o pé na embraiagem, tantas horas num pára-arranca que nos mói o juízo.

 

No outro dia, lá no emprego, o Antunes tentou explicar-me o mistério. O Antunes é um tipo assim para o esquisito. Tem perto de dois metros de altura, quase outro tanto de lado e raramente toma banho. Há quem lhe chame o urso, mais pelo cheiro do que pela envergadura. Além disso, é gago, passa a vida nos corredores a meter conversa e tem a mania de que é muito inteligente. A meio da manhã, quando saí para beber café, estava ele a falar com o Fernandes sobre o El Niño e a dinâmica imprevisível dos furacões. Quando voltei, a vítima era a Micaela, encostada à parede a ouvir histórias sobre um tal Mandelbrot, matemático ou coisa parecida, um tipo de certeza ainda mais esquisito do que o Antunes. Ele a dar-lhe com o Mandelbrot e a Micaela, coitada, a perguntar: "Mandelquê?"

 

"Man-Man-Mandelbrot", exclamou o Antunes. Com a minha aproximação, a Micaela pôs-se a milhas, enquanto o urso me pregava uma violenta palmada nas costas e dizia "nem de pro-pro-propósito". Era mesmo comigo que queria falar, garantiu-me, porque já descobrira a solução para a minha dúvida existencial. Referia-se, é claro, à história dos engarrafamentos, que eu mencionara uns dias antes, nem sei bem porquê. Segundo ele, o tal Mandelbrot tinha a ver com uma coisa chamada fractais e com uma outra coisa chamada teoria do caos.

 

"Num sistema, pequenas alterações nas condições iniciais podem provocar grandes alterações nas condições finais", disse o Antunes, orgulhoso da sua sabedoria. E eu a esbugalhar os olhos, a dizer "troca lá isso por miúdos". E ele a especificar que "basta um carro abrandar o ritmo, uma coisa de nada, para que esse abrandamento se propague e amplie na sucessão de carros que vêm atrás, provocando um abrandamento generalizado que vai ao ponto de criar uma paragem do fluxo automóvel; ou seja, o engarrafamento".

 

O Antunes é um sabichão mas não me consola. Porque a verdade é que estou parado no IC-19, com milhares de automóveis à minha frente e meia-hora para chegar ao emprego. Saber se a culpa foi de um acidente ou de um abrandamento generalizado é igual ao litro. O que interessa são os factos e os factos dizem-me que estou preso dentro do meu próprio carro, com o motor em ponto morto e a pequena árvore desodorizante a baloiçar, a baloiçar, a baloiçar, pendurada no espelho retrovisor. Estou preso eu e estão presos milhares de outros como eu, que também picam o ponto às nove, que também ganham uma miséria, que também vivem em apartamentos no Cacém e em Queluz, apartamentos T1 com manchas de humidade nas paredes e vista para outros prédios, outros como eu que também pegam no carro todos os dias a pensar "isto não é vida", outros como eu que também desconheciam a origem misteriosa dos engarrafamentos e talvez ainda desconheçam, porque apesar de tudo gajos como o Antunes contam-se pelos dedos.Olho para o relógio digital do meu Opel Corsa e percebo que vou chegar atrasado, mais uma vez. O relógio pisca 08:40, 08:40, 08:40, como antes o despertador piscou 07:30, 07:30, 07:30.

 

É uma violência, acordar com o som estridente do buzzer e aqueles algarismos vermelhos a dizerem-me que não posso fechar outra vez os olhos, que tenho de saltar da cama, atravessar a cozinha descalço, acender o esquentador, enfrentar um rosto em ruínas no espelho da casa de banho, espalhar o creme da barba, fazer um slalom gigante com a lâmina de barbear, ter cuidado para não deixar pêlos no lavatório (caso contrário a Irene aproveitará logo para vir com os seus remoques), entrar para o duche rápido, sair do duche, vestir roupa lavada, acordar a Irene, engolir à pressa um prato de corn flakes, pentear o cabelo com um nadinha de gel, ajeitar o nó da gravata no espelho do hall de entrada, descer no elevador com a vizinha do sexto direito que trabalha num escritório das Amoreiras, beber um café na pastelaria da esquina e chegar ao carro convicto de que hoje vai ser diferente, de que hoje não haverá trânsito nenhum, embora saiba que no IC-19 já está a ser montado o inferno do costume.

 

O inferno, sim senhor, o inferno. Sem labaredas e sem demónios, mas inferno. Aliás, o castigo que nos reserva o outro mundo, a nós pecadores, deve ser isto: um engarrafamento infinito, eterno. O relógio agora pisca 08:50, 08:50, 08:50 e ainda estamos a uns quilómetros de Lisboa. O inferno, sim senhor. E por falar nisso espreito os outros condenados, os meus companheiros de infortúnio. No automóvel em frente, um homem de meia-idade, careca, estendeu o jornal desportivo sobre o volante e lê as últimas sobre o seu clube. No carro ao lado, um casal de trombas. Estiveram de certeza a discutir quem teve mais culpa no atraso, agora estão calados, ele a sintonizar o rádio e a esfregar os olhos, ela a fazer crochet, talvez uma camisolinha para o neto que há-de nascer daqui a uns meses. Atrás de mim, um yuppie de óculos espelhados a gritar, furioso, para um telemóvel.Passam dez minutos. Na fila ao lado, o casal de trombas avança. O carro que vem logo atrás apita. É o Antunes. Apita, gesticula, baixa o vidro. Eu também baixo o vidro e olho para o relógio: 09:04, 09:04, 09:05.

 

Ele grita: "Nunca mais lá chega-ga-gamos". Pois não, digo eu. "É uma cha-cha-chatice", torna ele. Pois é, respondo. E lá vamos nós, lado a lado, sorrindo um para o outro de vez em quando, encolhendo os ombros e abanando a cabeça, resignados aos abrandamentos generalizados que nos paralisam a vida, enquanto o tal Mandelbrot deve estar neste momento a fazer contas num quadro de ardósia, algures num instituto que fica, aposto, a cinco minutos a pé de sua casa.

 

 

 

 


© José Mário Silva - Efeito Borboleta e outras histórias - Edições ARdoTEmpo, 2010

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Terça-feira, 14.09.10

Aldyr Garcia Schlee - CONTO INÉDITO


LA FOLIE ET L’AMOUR

Aldyr Garcia Schlee

 


Desde muitos anos antes de eu nascer, meu tio tinha um aparelho mágico que não sei bem como chegara a suas mãos: se fora como um presente, trazido da Europa pelo padrinho de minha irmã, juntamente com uma máquina de escrever; se fora como algo surrupiado em Jaguarão do espólio do sr. Tomazzo Aimone, que era pai de meu próprio padrinho e que havia explorado em Pelotas uma casa de cinematógrafo.

 

Aquele mágico ou pelo menos misterioso aparelho servia para ver as coisas como elas seriam, se fosse verdade; mas era de mentira, pois embora as mostrasse como verdadeiras, só nos deixava a impressão disso ao fazer de conta que ali elas não eram de mentira e ao gerar a ilusão de que ali elas existiam realmente.

 

Faz tempo. Eu não era nascido, meu pai e minha mãe ainda nem se conheciam, o irmão mais velho de minha mãe já era moço e se dizia sacrílego. Terá sido quando o futuro padrinho de minha irmã voltou da Europa, trazendo como grande novidade a inesperada e inacreditável máquina alemã Adler, uma alta, grande e rara “typewrite machine” – a primeira em que eu viria um dia a escrever. Ou foi quando se quedaram abandonados em Jaguarão os restos dos despojos do cinematógrafo de seu Tomazzo Aimone. O certo é que meu tio tinha aquele aparelho desde antes de eu nascer; desde quando fora a Porto Alegre fazer concurso para calígrafo da polícia civil.

 

Era uma caixa, uma simples caixa de madeira ornamentada que, fantasticamente se abria de dentro para fora dela mesma e se armava para a gente olhar como por um binóculo e ter ali, diante das vistas, imagens deslumbrantes das mais famosas batalhas, dos mais importantes monumentos e dos mais distantes e exóticos lugares do mundo.


A Lápia, a Hercínea, a Tingitânea

O Touro de Perilo, Hercule et Omphale, a medusa de Caravaggio.

A batalha de Ourique, a de Badajoz, a do Salado.


Faz muito tempo. Meu tio recém fora levado pelo futuro padrinho de minha irmã a conhecer mulher, num prostíbulo da beira da praia, onde haveria de ser apresentado a uma china chamada Ignez, suficientemente louca para atendê-lo de graça como o primeiro e último homem do mundo, para iniciá-lo enfim nas mais inesperadas e surpreendentes formas de fornicação humana e animal. Ele ainda era guri, contam; mas foi preciso arrastá-lo à força daquele puteiro imundo, de onde não queria mais sair, onde insistia em ficar o tempo que fosse, sem arredar pé da louca Ignez.

 

Faz muito, muito tempo. Seria de se pensar que tudo aquilo poderia ser esquecido, que nunca mais seria lembrado, que nunca seria revelado (como nunca foi revelado à minha avó, para não se somar como mais um desgosto no rosário de desgostos em que ela rezaria a vida inteira pela salvação da alma de seu pobre filho, meu tio). Assim, o esquecimento, a deslembrança, o segredo acabaram borrando o suceder da vida de meu tio desde antes que eu tivesse nascido. De modo que fica difícil agora rememorar o olvidado. Restou durante algum tempo a rejeitada máquina de escrever; resta comigo o instigante e maravilhoso aparelho que acompanhou meu tio a vida inteira como se fosse coisa de mentira; e já não resta mais nada que possa ser lembrado.

 

Esqueceu-se tanta coisa vista que aquele aparelho quase se perdeu no tempo e, para muitos, é ou foi como se não houvesse existido; mas, sendo um velho objeto que servia para ver as coisas como foram ou deveriam ser, não se pode dizer que era de mentira – pois só o que se via, isso era mentira (não propriamente mentira, mas sim umas figuras, umas imagens, umas estampas caprichosamente coloridas pelo avesso, devidamente emolduradas sob rubrica francesa como “tableaux vivants” e que, postas diante de nossos olhos deslumbrados, revelavam-se imediatamente como se nunca tivessem deixado de ser o que deveriam ser e eram de verdade).


Les vues stéréoscopiques

Meu tio era como um quarto de século mais velho do que eu; e desde pequeno fora capaz de ultrajes, profanações e sacrilégios. Uma vez, chegara ao confessionário da Matriz e dissera ao padre, de maneira a ser ouvido pelas beatas em volta: não me arrependo de ser pecador – sabe? –; e, por isso, não me importo de te mandar daqui mesmo pra puta que te pariu. Antes havia metido a mão por baixo do vestido de veludo da Virgem – e descobrira, aos berros, que a santa era só uma armação de madeira por dentro, com pés, cabeça e mãos de louça! E desde muito vinha mastigando hóstias, mantendo-as na boca mastigadas, trazendo-as mastigadas para casa, num lenço – e rindo com naturalidade daquilo.

 

Pois um dia meu tio fora a Porto Alegre fazer concurso para calígrafo da polícia. Como o convenceram disso, não sei; como também não sei bem se viajou no vapor Juncal ou no Jenny Naval, se minha avó deu-lhe dinheiro bastante e se ele levou consigo o mágico estereoscópio e suas vistas – os seus quadros vivos. O certo é que foi a Porto Alegre aparentemente com uma única finalidade: a de fazer concurso para calígrafo da polícia civil.

Les tableaux vivants


Os quadros vivos eram montados em molduras de cartão grosso, com duas figuras aparentemente iguais postas lado a lado, num retângulo de uns 9 x 18 cm, coloridas e sombreadas manualmente pelo reverso, em diferentes camadas de papel de seda muito fino e transparente, de maneira tal que observadas através de um visor binocular, contra a luz, davam a impressão e per-mitiam a ilusão de uma única imagem, apresentando relevo e profundidade.Ainda tenho comigo apenas e exatamente trinta dessas vistas, das muitas dezenas que pas-savam pelo visor, uma a uma, e a cada vez reviviam-se ante nossos olhos e nossa imaginação. Já não sobra quase nada das coleções de dúzias e dúzias delas, que foram se extraviando, se extraviando, e se perderam definitivamente no esquecimento. Também ainda tenho comigo a surpreendente caixa do estereoscópio: ela permanece fechada – ao lado do montezinho de vistas desusadas, presas entre si por um elástico – sem abrir-se e desencantar-se, avolumando-se sobre si mesma num prodigioso aparelho; tem só um palmo de comprimento por meio de largura, com guarnição de prata lavrada nos quatro cantos da tampa, fecho igualmente de prata, com um aplique posto no centro, talvez para a gravação do monograma do proprietário (mas sem qualquer inscrição).


Porto Alegre, 1929


Meu tio fez concurso para calígrafo da polícia numa quinta-feira à tarde (chegara três dias antes, depois de dois de viagem num vapor desde Jaguarão). Havia mais onze candidatos numa sala escura fedendo a creolina, onde foram dispostas doze largas classes escolares duplas, com tinteiro embutido – ficando cada um numa classe, fazendo-se ditado de duas páginas de um detalhado inquérito policial; e, depois, dispondo-se de até uma hora para copiar o maior trecho, com o menor número de erros e a letra mais parelha possível do Canto III de “Os Lusíadas”.


Agora tu, Calíope, me ensina

o que contou ao Rei o ilustre Gama


Desde a chegada, meu tio metera-se em Porto Alegre nos puteiros da Pantaleão Telles, ruela que se espremia pelo costado da Matriz em direção à velha ponte de pedra, lá embaixo. Embora estivesse ali com a única finalidade de fazer concurso para calígrafo da polícia; e, embora eu não seja capaz de afirmar que ele tenha levado e utilizado o estereoscópio, duvido que não o aproveitasse para impressionar e empolgar as mulheres, acionando-o com indispensáveis gestos estudados tanto de precisão como de encantamento – e as imagino cercando-o, atraídas pela maquina mágica, surpresas e curiosas, arrepiando-se alvorotadas com suas inimagináveis figuras como dos mais longínquos lugares desconhecidos e perdidos do mundo ou do outro mundo – os mais distantes e exóticos lugares sabe lá de onde, seus mais importantes e fantásticos e inacreditáveis monumentos, suas mais sangrentas e famosas e inimagináveis batalhas...


Esta é a ditosa pátria minha amada

à qual se o Céu me dá que eu sem perigo torne,

com esta empresa já acabada,

acabe-se esta luz ali comigo.


Então meu tio tirava de sua mala de papelão moldado a caixa do estereoscópio, a surpreendente caixa do estereoscópio abrindo-se e desencantando-se, avolumando-se sobre ela mesma no prodigioso aparelho que ainda guardo comigo. E apresentava às putas em volta os “tableaux vivants” que, postos diante de seus olhos deslumbrados, através da mágica binocular contra a luz, revelavam-se imediatamente como se nunca tivessem deixado de ser o que deveriam ser e eram de verdade: mulheres desnudas, de rostos insinuantes e cabelos insolentes, de largas cadeiras e generosos seios, em poses sensuais e gestos lúbricos, a exporem despudoradamente suas partes íntimas diante de um cenário onírico dominado pela perspectiva infinita de colunas e mais colunas quebradas sob seus respectivos capitéis.

 

 

 

 

 

 

Cada uma das mulheres do prostíbulo precisava então se despir toda e tentar repetir da melhor maneira que pudesse o mesmo gesto obsceno e provocador daquela que ela estava vendo pelo aparelho (isso tudo eu só imagino agora, pelo que sei que contavam e diziam de meu tio, e pelo que penso do que ele seria capaz – pois, infelizmente, não me restaram entre as “vues stéréoscopiques” mais que o montezinho de trinta, presas entre si por um elástico – nenhuma delas com ao menos a imagem de uma única mulher pelada; embora uma, extraviada como a número 3 e intitulada La Folie et l’Amour, propusesse as imagens de uma impossível mulher cor de rosa e de um provável tipo afeminado posando ambos com gestos imprecisos e cabelos dourados, entre pombas esvoaçantes ou asas de cisnes numa insuspeitada ribalta ou num improvisado picadeiro).


Meu tio dizia-se herege. Mas era desrespeitoso e ímpio, além de irreligioso, porque afrontava, insultava e ofendia quem quer que fosse, quando menos se esperava. Com um sorriso nos lábios era capaz de estragar uma festa, acabar com um velório, comprometer uma simples apresentação – fosse identificando um marido traído diante da mulher que o corneava, fosse anunciando secretas intimidades de quem estava sendo velado, fosse admitindo que não tinha prazer em conhecer quem lhe estendia a mão.


Nesta Chefatura de Polícia consta que N.N., brasileiro, pardo, de 23 anos de idade,

sem profissão fixa, residente à rua do Arvoredo, s/n,

foi identificado e compromissado nos termos constantes deste registro de investigação como depoente,

na condição de testemunha ocular da ocorrência anotada sob número 0117/29,

constante às folhas 34 e 35 do Livro de Ocorrências de numero 2-B desta Chefatura,

tendo respondido as perguntas de praxe


Meu tio fora expulso do seminário onde minha avó pretendia vê-lo transformado em padre e onde ele passava o dia lendo, lendo e contestando em aula o que fosse ante quem fosse; até comprovar-se que incluía em suas leituras os mais ten-tadores livros do index da Igreja – que manuseava às escondidas e distribuía fartamente entre os colegas (eu sei que depois, de volta a casa, ele até foi dado por doido: não tomava banho, não se arrumava, deixara a barba crescer à semelhança de Antonio Conselheiro e andava vagando pela rua arrenegado, a escarrar longe e a patear cachorros, sem cumprimentar ninguém).


1. se teve participação no ocorrido, disse que não;

2. se conhecia as pessoas envolvidas no ocorrido, disse que não;

3. se vinha passando pelo local do ocorrido, dis-se que sim;

4. se viu um homem atacando um outro com uma faca, disse que sim;

5. se sabe se era com uma faca ou facão, disse que não;

6. se sabe se a arma é a mesma que lhe foi apresentada nesta Chefatura, disse que não;

7. se chegou a ver que o agressor fugiu para um baldio, disse que sim;

8. se  sabia que a vítima resultou morta, disse que não;

9. se chegou a perseguir o agressor ou a ajudar a vítima, disse que não;

10. se ficou sabendo de algo mais no local do ocorrido, disse que não.


Não terá sido difícil para meu tio levar o estereoscópio em sua mala para Porto Alegre (o aparelho fechado, sabemos, tem só um palmo de comprimento por meio de largura, com guarnição de prata lavrada nos quatro cantos da tampa, fecho igualmente de prata, e um aplique posto no centro, mas sem qualquer inscrição). A mala de papelão moldado de meu tio, metida embaixo de muitas camas, antes e depois do concurso, terá disputado espaço com penicos cheios e panos sujos e frascos de desinfetantes (e baratas e ratos) em cada chineredo onde ele tratou de se meter a cada noite, tentando dispor de pousada e mulher, ainda que sem encontrar quem o acolhesse de graça ou lhe pagasse a despesa. Em Jaguarão era diferente: em pelo menos três dos nossos muitos puteiros, só pelo prazer do desfrute meu tio dispunha quando queria de ca-ma e mulher; uma destas, a velha e decadente louca Ignez, ainda lhe dava boa parte da féria do dia, para os vícios.


Ignez

 

Ignez da Silva Berneira

 


Meu avô bem que tentara colocar meu tio como seu ajudante no Banco Pelotense, ou de auxiliar de guarda-livros na Mesa de Rendas, ou de escriturário na Alfândega, ou de anotador na Ca-pitania dos Portos – afinal, tinha uma bela caligrafia! – mas meu tio só tinha cabeça para ler, ler e ler; e tanto no Porto como na Aduana e na Exatoria, até no Banco, deixava de fazer as devidas anotações, atrasava a escrita, trocava nomes e valores, escondendo na gaveta mais próxima o livro que mal-parava de ler. Era como se sonhasse com o mundo indizível das vistas maravilhosas.


Mas quem pode livrar-se, porventura,

dos laços que Amor arma brandamente

entre as rosas e a neve humana pura,

o ouro e o alabastro transparente?

 

O futuro padrinho de minha irmã, contudo, admirava meu tio por sua rara inteligência (aprendera francês utilizando apenas um manual de conversação, uma gramática, livros escolares e o dicionário), por suas variadas leituras (lera mais da metade da biblioteca do Clube Jaguarense), por sua boa caligrafia (copiava com letra admirável os trechos que mais lhe agradavam da melhor literatura) – e, vendo-o um dia limpo, enfim, e até falante, deu-lhe de presente a máquina de escrever que trouxera da Europa e falou-lhe em dactilografia. Meu tio, contudo, nunca acionou uma mínima tecla, nunca escreveu uma única palavra na poderosa Adler; jamais leu o manual de instruções em quatro idiomas que ensinava a manejar, lubrificar e manter limpa a imponente máquina negra.

 

q  w  e  r  t  y  u  i  o  p

a  s  d  f  g  h  j  k  l

z  x  c  v  b  n  m


Meu tio possuía uma letra magnífica: graú-da, arredondada, parelha, elegante, levemente inclinada à direita – e sempre primorosamente igual. Cada maiúscula, cada minúscula, fosse vogal, fosse consoante, abria-se e fechava-se sempre da mesma maneira nas suas correspondentes curvas e retas e no requinte de seus remates de pena. Era uma perfeição.

 

Pude constatar a excelência da letra de meu tio no dia em que arrombaram a porta do guarda-roupa do quarto do asilo de velhos em que ele morava (e morrera) e me alcançaram, além do precioso estereocópio, um amarelado caderno Vasquez de caligrafia com suas iniciais, resgatado entre roupas emboloradas e os mais triviais ou inesperados produtos comprados em Rio Branco. No guarda-roupa, havia ainda cubinhos de açúcar Rausa, pedras de anil Rekitt, duas garrafas de leite vazias (ambas de vidro verde, daquelas com boca larga e tampinha de cartão), um pacote de caixas de fósforos de cera Victoria, uma garrafa âmbar de Crush, uma lata de galletitas Cauci, um caixa de sabão Reuter, duas garrafas cheias de Malta Montevideana, uma garrafa vazia de mandarina Urreta, uma outra de pomelo Pomona, dois rolos de papel higiênico verde H-H, e uma lata de erva-mate Armiño.

Largada no chão, desprezada e sem uso, a velha máquina de escrever, coberta de pó.


Adler Werke – Frankfurt


Meu tio nunca chegara a ter um emprego decente. Sobrevivera e envelhecera fazendo de conta que não recebia uma permanente ajuda de vovó, além de parte da féria diária do prostíbulo da louca Ignez. Quando a louca morreu, fora instalado no asilo, onde teve livre a fantasia e pôde dela desfrutar como e quando queria. Jamais deixara, entretanto, de redigir com todo o capricho de sua letra impecável todas as cartas que o padrinho de minha irmã dirigia à amante que deixara no Havre e que lhe ditava seguida e pausadamente em francês (dizem até que meu tio, de posse do endereço da mulher, passara um dia a se corresponder com ela, entabulando uma ardente e paralela correspondência íntima cheia de indecente lubricidade).


Mas quem pode livrar-se, porventura,

dos laços que Amor arma brandamente

entre as rosas e a neve humana pura,

o ouro e o alabastro transparente?

Quem de uma peregrina fermosura

de um vulto de Medusa propriamente,

que o coração converte que tem preso,

em pedra não, mas em desejo aceso?


Meu tio havia permanecido em Porto Alegre o tempo que dava. Para que voltasse, fora necessário mandar-lhe um dinheiro extra – que lhe pudesse garantir a passagem de retorno no vapor e mais um dia de mínimos gastos, evitando-se que ele chegasse a melindrar dona Ercília, solteirona comadre de vovó, que vivia sozinha com seus ga-tos e suas rezas na rua Riachuelo e em cuja casa ele ameaçava meter-se, para ter onde comer e dormir – quem sabe também para espiá-la pelo buraco da fechadura, às gargalhadas, como já fizera em Jaguarão.


A. E. G.      Jaguarão

 

Depois, de volta, não houve aqui quem pudesse convencer meu tio a assumir o cargo de calígrafo da polícia.

 

Foi identificado e compromissado nos termos constantes deste registro

de investigação como depoente, na condição de testemunha ocular da ocorrência anotada

sob número tal, constante às folhas tais tais do Livro de Ocorrências, tal, tendo respondido ...
Não houve conselho que ajudasse, ameaça que intimidasse, promessa que resolvesse.
1. se teve participação no ocorrido, disse que não;

2. se conhecia as pessoas envolvidas no ocorrido, disse que não...


Meu tio fora aprovado em primeiro lugar no concurso para calígrafo da polícia.


se ficou sabendo de algo mais no local do ocorrido, disse que não.


Ele fora aprovado no concurso com mais outros quatro; e fora classificado em primeiro lugar (vovô recebera um telegrama anunciando o resultado).

 

Meu tio fora aprovado em primeiro lugar no concurso para calígrafo da polícia. Mas não quis saber de nada. Com a mesma mala de papelão moldado, com que chegara de volta de Porto Alegre, ele saiu de casa no mesmo dia em que soube o resultado do concurso. Foi-se para não voltar: preferira ficar por conta da pobre louca Ignez em seu puteiro – com a imponente e inútil máquina de escrever Adler, com as maravilhosas “vues stéréoscopiques”, com os deslumbrantes “tableaux vivants”, e como se partisse feliz com La Folie et l’Amour para os mais longínquos lugares desconhecidos e perdidos do mundo (ou do outro mundo).

 

Quem viu um olhar seguro, um gesto brando

Uma suave e angélica excelência,

Que em si está sempre as almas transformando,

Que tivesse contra ela resistência?

 

 

 

© Aldyr Garcia Schlee - "La Folie et l'Amour" - Conto, 2010

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Sexta-feira, 07.05.10

Nova cidade, novo povo, novo país

A chegada da televisão em Taquara do Mundo Novo

 

Sergius Gonzaga

 

Acho que foi em 1960 porque naquele ano o leão fugido do Circo Águias Humanas, que há muito tempo vagava ameaçador por ruas e propriedades rurais, amanheceu morto no Rio da Ilha, interior do município, e, embora ninguém na cidade tivesse visto o cadáver da fera, já estávamos tão cansados do nosso próprio medo, tão fartos de dormir com as portas e as janelas fechadas, mesmo nas mais inclementes noites de verão, que resolvemos acreditar coletivamente no desaparecimento daquele animal aterrorizante. Foi como se então redescobríssemos a alegria de viver.

 

Antes disso, no fim do ano anterior, seu Trombini magnetizara Taquara, comprando o primeiro aparelho televisor da região para acompanhar a programação da recém-inaugurada tevê Piratini. E, sendo homem por demais generoso, a partir de janeiro do ano seguinte, escancarara as grandes janelas de sua casa em frente à Praça da Prefeitura, das segundas às quintas-feira, entre às 20h00 e às 21h30, permitindo que nos acotovelássemos na calçada, em meio a empurrões, tapas, gritos, risos e um sincero espanto diante daquelas imagens que procediam da tela luminosa e mágica.

 

 

Começava ali uma outra realidade, ainda subterrânea, ainda indecifrável, mas que mudaria para sempre as nossas vidas. Era uma multidão todas as noites. Algumas senhoras até levavam cadeirinhas de palha na tentativa de assistir sentadas à programação, contudo a ânsia pela visão deslumbrante que brotava na sala de seu Trombini fazia com que ninguém respeitasse o direito daquelas mulheres ao conforto de suas varizes e de seus reumatismos imemoriais.

 

Atordoado pela novidade, o público emitia comentários diversos. Havia os que celebravam a chegada do futuro.Havia também os que desconfiavam do poder maléfico daquela geringonça.

 

Dona Olga, mãe de Arnaldo Cambota, após assistir um episódio da série Lanceiros de Bengala, sintetizou a perplexidade dos taquarenses mais idosos:

 

Xô égua! Essas invenções do diabo não vão terminar bem!

 

Certa noite, em que havia pelo menos umas trinta pessoas diante das janelas da casa de seu Trombini, o Percival, escondido na praça, pôs-se a berrar:

 

Cuidado com o leão! Cuidado com o leão!

 

Em pânico, todos correram em busca de abrigo. Como um lorde infenso aos medos da plebe, Percival emergiu das sombras, caminhou até uma das janelas e ali ficou acompanhando as emoções de um páreo do Pradinho Sinimbu, em que cavalinhos mecânicos com nome de marcas de cigarro disputavam a vitória, premiando os telespectadores que houvessem enviado maços vazios dos produtos da Companhia de Fumos Sinimbu. Percebida a fraude do leão, vários taquarenses de escol tentaram espancar o Percival que fugiu dali aos gritos:

 

Meu pai também vai comprar uma tevê! Meu pai também vai comprar uma tevê!

 

Todos riram do Percival.

 

Olha aí o rato de esgoto querendo se passar por fino.

 

Sabíamos que apenas os muito ricos poderiam dar-se ao luxo de possuir um daqueles maravilhosos aparelhos eletrônicos. A nós – integrantes da remediada classe média de então – restaria somente a esperança de ser convidado para uma visita noturna à casa de algum dos poucos abonados da cidade, pois estes certamente, nos meses seguintes, também adquiririam um televisor.

 

Vários de meus amigos (e eu mesmo) chegamos a sonhar, naqueles dias, que nas salas de nossas residências, pulsava uma luz branca e fria, trazendo consigo filmes e séries emocionantes. Mas quando acordávamos, descobríamos a impossibilidade concreta desses sonhos.

 

Acho que tudo isso ocorreu efetivamente em 1960, porque naquele ano os candidatos a Presidente da República passaram por Taquara, sendo que um deles – Jânio Quadros – tinha caspa nos ombros e, antes de discursar, mordeu um sanduíche de mortadela para mostrar que era um homem simples, vulgar e confiável, como qualquer um de nós.

 

Nesse mesmo ano, surpreenderam meu colega Jacques em obscenas intimidades com uma jovem donzela nos matos do morro do Colégio Santa Terezinha; ele teve de fugir da cidade e os pais da moça a internam num convento. 1960 foi também o ano em que, ao contrário de todos os taquarense, eu chorei (secretamente) pela morte do leão fugido do circo, pois de alguma forma compreendia a solidão da fera, dividida entre o horror da jaula e a hostilidade brutal das gentes que o caçavam sem pena.

 

Mas, acima de tudo, 1960 foi o ano em que a televisão chegou à Taquara, com suas antenas escama de peixe, seus teleteatros improvisados, suas séries ingênuas, seus simplórios programas humorísticos, seus noticiosos sem imagens, seus equipamentos canhestros, suas falhas, sua modernidade imperfeita.

 

A partir daí, o velho mundo em que vivíamos, um mundo lírico e preconceituoso, educado e autoritário, frugal e arcaico, começou a desabar. O que parecia de ferro, era de areia. Séculos de tradição dissolveram-se sob nossos pés. Foi tudo muito rápido. As mensagens que vinham dos televisores em preto e branco traduziam a nascente ordem econômica industrial e solapavam valores, mentalidades e costumes, anunciando uma outra era, mais aberta, mais libertária, mais hedonista. E assim, simultaneamente, surgiam uma nova cidade, um novo povo e um novo país.

 

(Quase meio século depois, costumo visitar minha irmã, que ainda mora na antiga casa de nossos pais em Taquara do Mundo Novo. Nessas ocasiões, faço questão de sentar numa antiga poltrona marrom, e fechar os olhos e me fixar naqueles tempos de há muito perdidos. Então, como um médium em transe, ouço vozes do passado, meus irmãos correndo e gritando no pátio, o rugido do leão do circo Águias Humanas, e vejo cenas fulgurantes, uma manhã de sol na Rua Grande, um peixe que salta preso ao anzol no rio dos Sinos, e – ó velho nostálgico! – consigo ver, em meio à neblina que um dia dissolverá toda a memória, consigo ver as babosices sedutoras de Papai sabe tudo, o cinismo inocente de Bat Masterson, as carícias mornas entre John Herbert e Eva Vilma e vejo, acima de tudo, as inefáveis coxas bronzeadas de Lélia Parizotto, garota-propaganda de nosso delírio juvenil, infinita promessa de liberdade amorosa, tudo isso na telinha da tevê Piratini, Porto Alegre, canal cinco.)

 

© Sergius GonzagaEscritor, Professor de Literatura e Secretário Municipal da Cultura, Porto Alegre - OS TELEVISIONÁRIOS - Edições ARdoTEmpo

Imagem: © Gilberto Perin / Televisão Predicta Preto&Branco (Os Televisionários, 2010)

 


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Domingo, 28.03.10

Conto inédito de Mariana Ianelli

 

O Abutre-do-novo-mundo

Mariana Ianelli

 
Há pessoas que não foram totalmente corrompidas, como se o diabo não tivesse feito o serviço completo. Elas conservam as mãos limpas em troca de um esgar epilético e ninguém neste mundo seria capaz de julgá-las no lugar do seu próprio corpo de vítima e réu. Eu, por exemplo, cumpro a parte que me cabe no desempenho dos meus talentos e não me queixo. A minha pontaria me deu o que de melhor eu tenho: um bom apartamento, boas refeições e um sono tranqüilo. Por regra do ofício, minhas mãos nunca estão limpas. Quanto pesa a consciência? Nada, absolutamente. Para mim, mais vale não ter senso moral do que ter algum. Eu sigo o rabo de fogo do acaso e tudo o que preciso é ver sem ser visto. Chamam-me o Abutre-do-novo-mundo, o que eu considero, modéstia à parte, um dos títulos mais respeitáveis na hierarquia do crime.
`
Outubro, quinta-feira, nove e meia da manhã: passo em frente ao 102 e meu alvo acaba de cruzar a rua para entrar no café da esquina. Desde que comecei o trabalho, todo dia eu o vejo praticar maquinalmente a mesma rotina, os mesmos prazeres inofensivos. Não sei por que razão o infeliz me foi encomendado, ou melhor, isso não me interessa. Quero descobri-lo por minha conta, no relatório subliminar das repetições de circuito, da casa para o café, do café para o escritório, do escritório para a cantina, da cantina para casa, ad infinitum.
Cada qual há de ter seus motivos para morrer ou agarrar a vida e são esses motivos íntimos que me interessam, insondáveis quase sempre, que não se explicam nem se substantivam nos casos de adultério, nas dívidas empresariais ou nas intrincadas jogadas políticas. Mesmo no cotidiano mais desordenado existirá sempre algo que se repete, alguma triste mania na qual o homem se enraíza, uma cadeira predileta no fundo de um bar, aos domingos, uma avenida, uma tabacaria, uma prostituta preferida. Nessas escolhas viciadas, a chave que tranca um miserável em seu cubículo dá mais uma volta sobre si mesma e mais outra e mais outra ainda. Só assim, pelo que sei, emparedado dentro dos seus limites, é que o homem se vê convocado a ir além, para alcançar o céu ou o abismo. Quanto ao meu pobre alvo, que nesse momento folheia o jornal do dia, ignorante de que amanhã ele será a notícia, os seus limites só poderiam levá-lo ao fundo do abismo, afinal, para onde mais pode ir um sujeito que veste uma gravata estampada às nove e meia da manhã de uma quinta-feira e que põe as mãos na cintura enquanto espera o seu cappuccino? O coitado me faz pena, esperando como se estivesse vivo. Primeiro quadrante, segundo quadrante, centro. Hora de riscá-lo da lista. Digamos que por causa dessa gravata ridícula.
© Mariana Ianelli

 

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Domingo, 21.03.10

Conto inédito de Mariana Ianelli

 

YOLANDA

 

Mariana Ianelli

 
Uma palavra teria sido o bastante, mas veio outra, mais outra e outra ainda, então eu explodi pelos ares. Era uma bomba tão estrategicamente escondida entre baús e móveis estragados que eu já nem me preocupava. Estilhaços. Disseram-me Yolanda, depois acidente, depois hospital e, tudo o que eu mais temia, inconsciente e reanimada. Ia bater o telefone quando a última lasca voou: quarto 49. Isto é a realidade – um enorme, invisível, medonho e ultrajante sorriso de sarcasmo. O suco azedo da videira carregada de respostas. Yolanda de pés descalços, Yolanda cobrindo o corpo, ligeiramente envergonhada, Yolanda na entrada do cinema, se desculpando pela demora, Yolanda muito séria, debaixo da chuva, tempos atrás. Eu precisava ir até lá, só um completo covarde não iria. E de repente eu estava ali, parado diante da porta, de novo massacrado, contrafeito, dividido – um covarde. O homem para quem tudo que existe tem um só nome. Yolanda, quarto 49. Entrei, contornei a cama, cento e trinta batimentos por minuto, eu te olhei, eu precisava te olhar. Fomos apresentados pela primeira vez no meio de uma corja de bêbados e de velhos mal-educados, e não tínhamos mais o que fazer entre eles senão dar início à nossa própria história. Yolanda, vinte e oito anos. Agora eu te reencontro entre aparelhos de oxigênio, bolsas de soro, agulhas e ventosas, e na minha frente vejo uma garotinha recém-saída da escola, os olhos arregalados. Extirparam a tua memória, Yolanda. Deixaram do lado de cá esta mentira viva, como que uma saudação distraída para honrar o plantão de emergências, simplesmente um olá. Nada mais diz teu nome, nada, em nenhum lugar. Eu quero voltar para casa e arrebentar a lâmpada, o relógio, o copo d’água. Vê-los no chão, iguais a mim: os olhos arregalados.
 
© Mariana Ianelli
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Quarta-feira, 17.03.10

Conto inédito de Mariana Ianelli

O rabo da Salamandra
 
Mariana Ianelli
 
 
Já estivemos entre os primeiros da fila, pelo menos, é o que consta nos registros. Havia muito o que perder naquele tempo, mas quem sabia disso? Ninguém sabia. Naquele tempo é o que dizemos quando a simples tarefa de atravessar a rua se tornou um verdadeiro sacrifício, ou quando o espelho do banheiro converteu-se na vitrine de um museu pessoal de arqueologias.
 
Continuamos na fila depois de dar a meia-volta e lentamente vamos chegando à outra ponta, vencidos por um par de sapatos velhos, uma cirrose e o espanto de uma agenda telefônica cada vez mais defasada e fictícia. Nossos antigos colegas de classe bem poderiam ter permanecido naqueles bancos caquéticos, decorando o teorema de Tales, o futuro do pretérito, a Questão das Investiduras ou a estrutura molecular dos polímeros. Mas não. Existe sempre um mensageiro do sinistro que vem, não se sabe de onde, só para dizer que Ana, vocês se lembram de Ana, a campeã dos torneios de basquete?, pois então, nas últimas férias de julho ela voltava de uma viagem com a família, à noite, pela via expressa, quando um caminhão desgovernado simplesmente; e o Gordo, vocês se lembram dele?, pois não foi que o coitado teve um surto, sozinho num sítio lá onde o mundo faz a curva e, sabem como é, de repente o desespero, o vazio por todo lado, a ronda do caipora, as ratazanas, as serpentes, o mato gritando noite adentro e aquela irresistível espingarda na parede. De quando em quando também chegam notícias dos que deram certo e conservaram os dentes fortes, a cabeça razoavelmente lúcida e o sangue, apesar dos pesares, limpo. Entre eles, o Toninho, que nós já desconfiávamos, finalmente ali, na capa de uma revista, com seu rosto lânguido de Psiquê enrolado num manto de caxemira; ou ainda, as famosas pernas do colégio, que de um dia para o outro começaram a desfilar pelos corredores de uma clínica de estética, atendendo a madames e falsas atrizes.
 
Assim vamos passando, nós, montículos de areia no funil de uma ampulheta depois de amanhã mais cheia embaixo do que em cima. Com os pés enfiados nos chinelos, vamos até a mesa da cozinha e invadimos as novas páginas da História para ver quem são agora os vanguardistas, os milhões de meninos e meninas se acotovelando no início da fila. São eles que nos empurram adiante, que sacodem o rabo da salamandra, estas crianças de mãozinhas estendidas, cheias de barro e de fuligem, estas caras alarmadas, esculpidas pela fome e estas patas mansas de filhotes instruídos pela hedionda estupidez televisiva. E nós amamos, nós aprendemos a amar uma geração nascida da loucura e do sublime, que ainda insiste na esperança, quem sabe se por ignorância ou por delírio, e que oferece à roleta do jogo a própria vida, como antes nós arriscamos e perdemos a nossa aposta em um Deus impossível.

 

© Mariana Ianelli 

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Sexta-feira, 08.01.10

Conto

O Futuro

 

Deram-lhes carta branca para fazer o que desejassem, como desejassem, sem limites orçamentais. Junto à costa, os terrenos expropriados eram uma espécie de tábua rasa, estendendo-se até ao horizonte longínquo.

 

Construam o futuro, aqui e agora”, pediu-lhes o Presidente, num discurso inflamado, solene, feito para impressionar os Presidentes dos países vizinhos. Então, eles chegaram. Os melhores arquitectos. Os melhores engenheiros. Os melhores empreiteiros. Nos projectos que pousavam em cima das elegantes mesas de vidro, estava o futuro. O Futuro, com maiúscula. Uma cidade perfeita, ecologicamente sustentada, exemplar. A cidade-síntese. A cidade ideal.

 

Então, o Presidente morreu, em circunstâncias misteriosas. A primeira decisão do sucessor foi embargar o Futuro, dirigir as verbas para outros fins.

 

Os alicerces do Futuro ficaram expostos ao vento, consumidos pelo salitre. Ainda hoje podem ser vistos, junto à costa, por entre enormes extensões de areia, detritos e urtigas.

 

© José Mário Silva

Publicado no blog Bibliotecário de Babel

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Quarta-feira, 09.09.09

A caverna

 
A caverna
 
Ela pediu-lhe para ver qualquer coisa numa das reservas técnicas acerca de uma dúvida que surgira sobre um dos quadros. Foram até os depósitos de telas e movimentaram as grandes treliças metálicas que sustentavam as obras. Ele fez as anotações necessárias em sua fichas, saíram das reservas e apagaram as luzes.
 
No regresso, entraram juntos pelo corredor em curva, de iluminação tênue, indireta, proveniente apenas dos vãos das extremidades ocultas das paredes, de baixo para cima, à uma terça parte do teto, num espaço de passagem magistralmente concebido pelo arquiteto, dentro do qual, de um  determinado ponto não mais se via o seu início ou o seu final, vertiginoso igualmente nas curvas dos encontros sem arestas junto ao teto ou ao rés do chão, um estranho espaço sem divisões em unidades matemáticas mensuráveis, aquilo ali parecia um lugar onde o tempo se paralisava ou se fazia infinito. Para Bernardo aquele ponto aparentava ser um lugar ancestral, assemelhava-se a uma caverna e transmitia-lhe uma sensação bizarra, nuclear, emergencial. Ali sentia-se estranhamente uno, um ser absoluto e integral.
 
 
 
 
Segurou Carolina pelo quadril, abraçando-a e puxando-a para si. Juntou-se a ela e beijou-lhe a boca. Ela, surpresa e quase assustada, retribuiu e na seqüência, apertou o seu corpo contra o dele, respondendo ao abraço e alongando o tempo do beijo inesperado. Bernardo curvou-se sobre seu pescoço e sussurrou-lhe algo ao ouvido.
 
Come, então...”, murmurou Carolina, já assustada pela situação pública e perigosa em que se encontravam. Rapidamente, ele desafivelou o cinto dela, abriu sua calça e fez com ela se ajoelhasse no corredor, livrando-a parcialmente de suas roupas, sem despi-la. Bernardo possuiu-a por trás, de maneira selvagem e direta, foi algo lancinante e satisfatório.
 
Pelo inesperado e pelo perigo iminente.
 
Ele a subjugou segurando-lhe pela nuca, puxou-a vigorosamente com o punho pelos cabelos, prendendo-a e abraçando-a com força, sendo correspondido pelos movimentos ritmados e vigorosos que a fêmea natural imprimiu à relação. Bernando estendeu a mão ao longo de rosto, roçando-lhe a boca e dando-lhe o seu antebraço para que ela o mordesse. O que ela fez, com sofreguidão, cravando-lhe os dentes um pouco acima do pulso esquerdo, marcando-o numa fieira elíptica de hematomas púrpuras, até romper-lhe a pele e provocar filetes finos de sangue que escorreram pelo pulso. Os movimentos acentuaram-se, intensificando-se até uma explosão de gozo vulcânico e silencioso, naquela garganta de tempos primevos em que se transformara, para ele, aquele corredor mergulhado em silêncio e luminosidade incerta.
 
Os movimentos, a força empregada por ambos, os puxões, os grunhidos abafados, as dentadas sangrentas, a ferocidade e o domínio poderiam sugerir um quase estupro, mas alguma coisa animal e grandiosa sobrepujou qualquer observação vulgar. Algo incompreensível, de dimensão trágica e solene, como o clarão prolongado de um raio sobre a noção do sentido da vida, acabara de ocorrer. Perigo, instinto, medo, força, sangue, fluídos, prazer e vida: uma seqüência atordoante que os remeteu ao princípio dos tempos, ao tempo dos sobreviventes das cavernas.
 
Carolina ergueu-se, compondo suas roupas e a sua alma, abraçou com ternura e suavidade o homem em pé à sua frente, ele também um tanto surpreendido, e o beijou com ardor durante algum tempo, com os lindos olhos cerrados. Bernardo também a beijou com os olhos fechados, sentindo sob seus pés, o planeta que girava e flutuava sobre o universo infinito.
 
Homens gostam de uma rapidinha...mas não tem importância, eu também gosto”, disparou Carolina sorrindo, enquanto se dirigiam para as salas administrativas, de novo arrumados e já sob o olhar eletrônico das câmeras de vigilância. Bernardo anotou na memória a provocação da moça.
 
Não trabalharam por muito tempo, nada mais seria importante naquele dia e deixaram a Fundação alguns minutos depois. Naquela mesma noite, passada na casa de Carolina, tiveram  o tempo necessário para um amor prolongado, atencioso e delicado.
 
 
(Extraído do conto A Caverna - do livro A Fenda - © Alfredo Aquino, Iluminuras, 2007)
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Sexta-feira, 03.07.09

Aranhas

 

E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundos dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era, o que fazia?

 

Faço arte.

 

Arte?

 

E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera a memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos – chamados de obras de arte – tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece.

 

 

© Mia Couto - A infinita fiadeira - Do livro de contos O fio das missangas, Companhia das Letras, 2009

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Sexta-feira, 19.06.09

"Nojo...até quando mamãe vai agir assim?"

O vulto da T-shirt laranja
 
Ana Helena estava parada ao lado do carro, em frente à praia, pelo lado da orla. A brisa marítima era intermitente e fria, roçando-lhe as pernas e aguçando os sentidos. A saia curta esvoaçava loucamente entre suas coxas e ela se divertia com aquilo, enquanto olhava para o mar e terminava o seu sorvete. Fazia um calor intenso, amenizado pelo vento do mar, mas ela percebia o perigo do sol como um maçarico sobre seus ombros, dourados e brilhantes de suor. A cabeleira cheia, dançarina, completava a coregrafia alucinante da saia florida. Ainda se estava fora de temporada e a praia continuava deserta.
 
Era engraçado morar num lugar tão lindo e tão frágil como aquele, que só tinha vida efervescente e desesperada durante uns três meses por ano, contando-se em fieira os feriados emendados. Ali não havia futuro para ninguém, um lugar onde se vivia com o que se comia, daí o sucesso de tempo finito para os restaurantes de peixes e mariscos. Um local de férias paralisante, terminal, para se morrer aos poucos, de tédio. Os barões do balneário - e na política local, cheia das pequenas negociatas que todos ficavam sabendo, cedo ou tarde, porque resultavam visíveis, tridimensionais - eram apenas os donos dos empórios de materiais de construção e os das próprias construtoras. essas mesmas que iam arrasando paulatinamente as belezas naturais da praia, em nome de um progresso impossível e derrisório.
 
Ana Helena nem pensava nisso, apenas sentia o frescor agradável da brisa em contraste com o calor extasiante do sol chapado como uma frigideira, enchendo os pulmões com o ar limpo, saboroso de maresia.
 
Distraída com o mar e a brisa agradável, não percebeu o vulto com a t-shirt laranja que se aproximara sorrateiramente pelo eixo de suas costas, antes que fosse demasiado tarde.
 
– “Merda... que azar...” pensou, enquanto tentava entrar com rapidez no automóvel, nervosa, procurando acertar a chave e dar a partida no carro, para fugir. Não deu certo, o sujeito entrou pela outra porta, quase ao mesmo tempo que ela e disse-lhe:
 
– “Vamos lá para o bosque da lagoa”.
– “Não, não vou”. 
– “Vai, sim, vamos agora, sai com o carro”. O rapaz mostrou-lhe a arma e tocou-lhe brutalmente com o cano nos seios. – “Vai rápido, você vai me dar tudo!
 
Ana Helena sentiu um gelado correr por dentro, uma solidão de abandono a invadi-la, apesar do calor do dia e do sol escaldante.
Saiu com o carro e foi contornando a avenida deserta à beira-mar, devagar, buscando ganhar tempo e vendo se encontrava algum conhecido para pedir socorro, mas o horário de sol pleno era desfavorável a ela e o rapaz ia indicando com firmeza os caminhos para os desvios mais ermos do balneário, afastando-se da praia, desse jeito logo estariam na parte rural da cidadezinha. Os que os viram passar ao longe, não desconfiaram de nada.
 
– “Me deixa sair, fica com o carro...
– “Vai dirigindo, não fala nada, vai pra lá, do lado daquela árvore...” falava o vulto da t-shirt laranja, enquanto apertava a pistola contra seu corpo, aumentando o medo de Ana Helena.
– “Pára com isso, me deixa em paz...
– “ Fica quieta, você vai fazer tudo o que eu quiser, não fala, não grita, vou te comer todinha, tira a calcinha, quero ver tudo...” o cara se debruçava sobre ela, a arma apertada em seu peito, machucando-a, Ana estava aterrorizada, quase perdera o controle do carro e saíra da estradinha de terra, por sobre a relva, no local onde ele indicara,  isolado e escondido.
– “Filho da puta...
– “Fica quieta, olha aqui...” ela viu aquele volume horrível e repulsivo à sua frente. Ele a obrigou a abrir a boca e engoli-lo todo, brandindo negligentemente com a arma perigosa e embalada, apontada diretamente para seus olhos, enquanto a segurava pelos cabelos com força exagerada, sacudindo sua cabeça com violência para todos os lados. Os safanões dolorosos não lhe permitiam qualquer reação ou pensamento encadeado Ela somente sentia a dor insuportável dos repuxões nos cabelos.
 
Ele fez o que quis com ela. Possuí-a pela frente e por trás, com violência, ameaçando-a com a arma, ela nem sabia dizer onde nem como ele se satisfizera. Fôra um desatino e evidentemente, um horror, o que acontecera de pior em toda a sua vida. Ela permanecera travada, seca. Num determinado momento, sentiu-se como morta, quis morrer ali mesmo, houve um silêncio longo e então o rapaz, bem mais jovem do que ela, falara:
 
– “Sai do carro e vai caminhando sem olhar para trás, não pára, não olha, daqui a quinze minutos você pode voltar, não volta antes... Sai, sai agora e caminha...
 
Ela estava semi-desmaiada mas saiu arrastando-se como uma zumbi, sem norte. Mas não caminhou muito tempo, deixou-se cair no chão, na areia granulada, na sombra de uma árvore e chorou, de olhos fechados, comprimida numa escuridão ensangüentada de luz, que criara para si naquele instante, olhos apertados, rosto contra a terra, fugindo do acontecido.
 
Depois de um tempo que parecera interminável, sabia lá Ana Helena quanto se passara, de olhos fechados, abismada e humilhada, ela se levantou, abriu os olhos devagar e mirou, aterrorizada por todos os medos, em todas as direções. 
Viu o carro ao longe, bem mais distante do que lhe parecera possível e não viu mais ninguém, nenhuma movimentação ao redor. Nem sombra do vulto da camiseta de surfista, cor de laranja. Retornou com cautela, cambaleante, não tinha as chaves do carro e percebeu, com horror, que estava sem a calcinha. “Que filho da puta...desgraçado, sem pai nem mãe, corno, veado, desgraçado, filhoooo da puuuuta...” ela pensava e rosnava e gritava...
 
Ana Helena circundou o carro, examinando o seu interior, reconhecendo o terreno e o matagal nas imediações. Tudo estava calmo, um tempo paralisado em calor, sem tensões, apesar da sua taquicardia, do seu medo, da sua raiva e de seu nervosismo. A chave ainda estava no contato, por sorte e a sua calcinha, por azar, toda melada e úmida, abandonada sobre o banco traseiro. 
 
– “Onde esse desgraçado tinha gozado? ... dentro dela ou na sua calcinha? ... filho da puta, desgraçado... vou te matar, seu desgraçado sem mãe...punheteiro, filho de padre”.
 
Ela dirigiu de volta para a cidade em alta velocidade, como se estivesse fugindo de seu próprio temor, da sua história futura, olhando com atenção, assustada, para ver se ainda descobria o vulto, a sombra alaranjada temida, na tarde que se fazia deslumbrante sem hiatos de nuvens no céu, aquela brisa revigorante a afagar os vestígios de seus sentimentos destroçados. 
 
Foi direto para sua casa, o mais direto possível, passando pelo centro e fazendo os atalhos que conhecia, os olhos em tempestade no meio do dia renascentista. Ela joga-ra com ódio a calcinha ainda molhada, pela janela do carro, na direção de uma lata de lixo cheia de entulho, na esquina da avenida central do balneário. Ninguém testemunhou o seu gesto de repulsa nem ela se preocupou em ver se acertara o alvo, queria desfazer-se do objeto nojento.
 
Entrara em casa silenciosamente, descalça, correndo e refugiara-se, sem ruídos no banheiro onde se lavara frenéticamente, esfregando-se toda enquanto chorava copiosamente. A água do chuveiro, inundando-lhe o corpo fizera-lhe bem, o sabonete cheiroso consolou-a com a sensação da limpeza e da renovação.  Foi para seu quarto, trancou a porta, ligou o ar condicionado, fechou as janelas, deitou-se nua, ainda molhada e escondeu-se num sono sem sons e sem culpa.
– “Filhoooo da...” ainda pensara enquanto adormecera como uma âncora de navio que se desprende em queda livre, em direção ao fundo da baía protegida das intempéries.
 
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Demorara-se para o jantar, via de longe a família reunida à mesa, seu pai, sua mãe, quase todos os seus irmãos e a sua irmã bem mais novinha. Todos conversando alegremente, fazendo alguma bagunça, o alarido natural que conhecia tão bem. Chamavam por ela. Nunca conseguiria contar nada a eles, muito menos a seus pais. “O que devia fazer, esquecer tudo, lavou, tá novo?
 
– “Oi Ana, dormiu heim? Boa noite, bom dia... Olha essas olheiras...” 
– “Olha, hoje tem o linguado com camarões grandes, que você tanto gosta... sua mãe só pensa em você, só faz essas coisas especiais, quando você volta e vem passar essas temporadas por aqui...” 
– “É, mas todos comem também...venha sempre Ana, que assim todos passamos bem...
– “Ihhh, olha como está silenciosa, nem parece a Ana dos camarões gigantes, parece a bela adormecida mesmo, hipnotizada...
 
Ana Helena comia automaticamente, em silêncio e sem vontade, fingindo interesse para não chamar demasiadamente a atenção de ninguém para um drama que nenhum deles podia sequer suspeitar, enquanto todos jantavam e brincavam uns com os outros.
 
De repente, um ruído na porta e o rapaz entrou com estardalhaço, fazendo ruídos arrastados. Ana viu, com o canto dos olhos, quando a mancha laranja do vulto passou rapidamente às suas costas e refugiou-se no banheiro, como ela fizera à tarde.
 
– “Onde esse filho da puta se mete, nunca respeita ninguém, onde ele esconde aquela arma medonha...?” pensou Ana enquanto parava, definitivamente, de comer...
– “Estuprador desgraçado, covarde, não merece os pais que tem...” pensava com ódio, em silêncio, quase gritando.
 
– “Ehhh, chegou o surfista revoltado...” 
 
– “Vem comer, aproveita, hoje está demais, vem comer os camarões da Ana... esses tesouros maravilhosas que ela abandona...
 
– “Ninguém sabe por onde esse anda, só pensa naquela prancha...acho que passa o dia inteiro no mar...
 
Ana Helena deixou passar um tempo, levantou-se da mesa e saiu silenciosamente procurando não despertar muita atenção, deslizando de volta para seu quarto. Parou em frente a porta cerrada do banheiro, escutou o barulho da água do chuveiro, chutou a porta com violência, enquanto pensava:
 
– “Nojo... até quando mamãe vai agir assim?...nessa proteção, sempre, sempre...
 
Na sala de jantar, em meio ao alarido, aparentemente ninguém se importara com nada, nem com a saída de Ana Helena da mesa, nem o estrondo do chute na porta. Do banheiro, não viera nenhum ruído humano, nenhuma resposta, fora o barulho da água caindo.
 
Ana refugiou-se no seu quarto, trancou cuidadosamente a porta com duas voltas da chave, ligou o ar condicionado, tirou a roupa e deitou-se, olhos abertos na escuridão. Naquela noite demorou a adormecer, talvez porque tivesse dormido excessivamente durante a tarde.
 
 
© Alfredo Aquino - A Fenda, Iluminuras- 2007
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Quinta-feira, 18.06.09

Vagabundos

Vagabundos
 
José Mário Silva
 
[Luar sobre os arrozais. Deitados numa pequena elevação, dois homens olham as constelações muito nítidas que se desenham no céu.]
 
- Quando ficas assim, parado, a olhar para cima, o que vês?
- O mesmo que tu.
- As estrelas?
- Não. 
- O espaço negro entre elas?
- Também não.
- Então o quê?
- A memória da nossa fome.
 
[Um dos homens está agora sentado, com um pano aberto sobre os joelhos, a cortar fatias muito finas de pão seco e tiras ainda mais finas de toucinho. O outro olha fixamente para o movimento da faca, enquanto aconchega o seu casaco em farrapos.]
 
- Queres um bocado?
- Sim.
- O que é que me dás em troca?
- Deixa-me pensar. [Vasculha os bolsos vazios.] 
- Sabes que tens que me dar qualquer coisa em troca.
- Sim, já calculava. Olha, posso dar-te uma história.
- Que história?
- A minha. Uma bela história. A minha história.
- É alegre?
- Não. Nada. Pelo contrário. É até muito triste.
- Então está bem. Podes começar. [Estende-lhe um naco de pão seco; o outro espreita o pouco que lhe coube, sem esconder o desalento.] Querias mais? Pois não protestes. Só levas o toucinho quando chegares ao fim.
 
[Passaram quarenta minutos. Os dois acabam de comer. Parecem saciados.]
 
- Muito boa, a tua história.
- Muito bom, o teu toucinho.
- Há muito tempo que não ouvia uma história tão trágica.
- Há muito tempo que não comia um toucinho tão bom.
- Mas como posso ter a certeza de que a história é mesmo verdadeira?
- Não podes, nem isso interessa. Eu também não sei se foste tu que mataste o porco.
 
[Um dos homens levanta-se, aproxima-se do canavial, colhe um lírio. O outro encolhe-se, com frio.]
 
- O que tens na mão? Um lírio?
- Não.
- Uma estrela?
- Não.
- O amor que perdeste há tantos anos?
- Não.
- A primeira palavra do teu último poema?
- Não.
- Um reflexo da manhã que se aproxima?
- Não.
- A própria ideia de brancura?
- Isso, amigo. A própria ideia de brancura.
 
[Os dois homens voltam a deitar-se na pequena elevação, bebendo saké de uma garrafa opaca. Olham as constelações lá no alto, agora difusas. Luar sobre os arrozais.]
 
 
José Mário Silva - Efeito Borboleta
Pintura de Vincent Van Gogh
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Terça-feira, 09.06.09

Conto inédito de Jean-Michel Lartigue

Equívoco
 
Jean-Michel Lartigue
 
Começou na hora do jantar. Estava segurando o garfo quando sentiu um leve formigamento nos dedos. Aos poucos foi intensificando, até ficar tão forte que teve de deixar o talher. Passou. Ficou na cabeça.
 
Na hora da novela, voltou. Uma vibração desagradável deslizava pela espinha, dos ombros até os rins.  Lembrou das sessões de fisioterapia que tivera no ano anterior, ele nunca havia gostado das ondas curtas. Passou também. Mas a estranha sensação fincou uma bandeira escura na sua mente. Pressentia alguma coisa e a coisa tinha uma cor sombria, verde escuro precisamente. Estremeceu. Nem conseguiu assistir o beijo apaixonadamente estúpido no final do capítulo, deu vontade de escovar os dentes e deitar.
 
Foi na frente do espelho que a percepção tomou forma e adquiriu sentido e palavra: metamorfose. A compreensão súbita de que estava se transformando em algo o deixou mais perplexo do que apavorado. Algo. Era uma palavra sem sentido, indefinida, vazia. “Algo” não era nada, não era ninguém. Em que “algo” estaria se tornando? Sentiu a pele do rosto mais esticada, a boca ligeiramente mais curta, as sobrancelhas mais finas, o olhar mais suave. Notou a ausência absoluta de barba de final de dia, afecção exclusivamente masculina.
 
Estava perfeitamente liso. Imberbe. Como uma mulher. Reprimiu um sorriso. Era melhor ser uma mulher do que um inseto kafkiano. Verificou os membros, quatro, que bom, pensou, aparentemente tudo estava normal por esse lado, as pernas apenas um pouco dobradas para fora, coisa a toa, não tinha motivo para agachar-se, tentou ficar reto e não conseguiu.
 
Estranhou e esqueceu em seguida, havia notado uma, duas, três espinhas verdes no rosto, mais pareciam escamas. Ao passar a mão no queixo e na bochecha voltou a sensação ruim que tivera assistindo a novela. A pele estava fria. Lisa, fria e esverdeada. Um sapo! Estava se transformando em sapo! Pensamentos oblíquos colidiam desordenadamente nas paredes parietais do crânio: tinha que ligar imediatamente o chuveiro ou encher a banheira, água era necessária, urgente, coisa de vida ou morte, se via pulando o tempo todo no recinto do seu quarto sala até morrer de cansaço ou de tédio ou de solidão, a solidão do sapo era terrível e nunca tinha sido objeto de pesquisa zoológica, não se podia aliviar a angústia dos batráquios, no final uma moça caipira iria surgir do nada e de um beijo na boca transformá-lo de volta em humano encantado. Foi para a cama sem mais olhar no espelho, pensando se valeria a pena voltar a condição de homem, voltar a enfrentar a inutilidade de sua vida, se não seria melhor ficar pulando mesmo atrás das moscas de verão que entravam pela varanda.
 
Quando acordou avistou a cama a uma distância de uns dois metros, bem abaixo. Virou a cabeça e deu de cara com um ângulo reto e metálico prolongado por uma borda do mesmo metal azulado. Seguiu-a até o ângulo seguinte. Deu a volta do quadro - reconheceu a gravura de Peticov pendurada no seu quarto - e subiu até o teto. Sentia-se seguro, perfeitamente grudado às paredes. Olhou para baixo e leu as horas no despertador digital: três horas.
 
Estava escuro no quarto, mas na sala entrava o luar; correu pelas paredes e parou em cima da porta que dava para a sacada. Voltavam lembranças de acrobacias infantis, quando escalava as macieiras do jardim de sua avó. Curtiu, percorrendo o apartamento inteiro numa velocidade incrível, sem jamais precisar ficar no chão. Na luz tênue que banhava a sala acabou enxergando a sua cauda e as patas. Assim, tinha se metamorfoseado em lagarto.
 
Por que não? Era um destino talvez inusitado para um ser humano, mas quem falou que havia algum mérito em ser um ser humano, ter mãos e pés simiescos, uma coluna fraca e uma cabeça mais ainda? Rememorou a semana anterior, a crise aguda de depressão, a televisão ligada - a televisão era melhor amigo que um cachorro, falava sozinha sem se incomodar do silêncio dele e até chegava a emitir sinais de inteligência em algumas ocasiões - lembrou do programa do National Geografic Channel e da morte de um lagarto pelo bote certeiro de uma víbora. Coisa terrível a de nascer lagarto, havia pensado. A idéia de que ele poderia ter vindo ao mundo na pele lisa e verde de um lagarto o deixara paralisado por longos minutos, num bloqueio mental introspectivo salutarmente interrompido pelo interfone, a pizza havia chegado. Lagarto não come pizza e comedor de pizza não é mordido por víbora em apartamento com carpete. Esquecera do acontecimento, até a metamorfose.
 
Por que não um lagarto afinal. De toda evidência, era um lagarto urbano, com riscos remotos de cair na cadeia alimentar de cobras ou águias. Ele, por sua vez, podia caçar a vontade os pernilongos que antes o atormentavam. Ia se vingar de todas as picadas sofridas na vida.
 
Ouvira dizer que apenas pernilongos fêmeos sugavam o sangue dos adormecidos indefesos. Mulheres. Não tinha por que se vingar delas - entre as que o fizeram sofrer e as que ele fizera sofrer a conta devia estar empatada - tampouco tinha por que não se vingar. De qualquer modo, iria nada mais do que obedecer ao instinto do lagarto. Ia rastejar em silêncio, sem deslocar sequer uma molécula de ar, ficar na espreita, dar o bote de língua afiada nas asas e comê-las sem pudor nem remorso. Seria um ato de sexualidade antropofágica. Uma pura delícia. Decretou que a vida de lagarto urbano valia a pena. Iniciou a caça.  
 
Aventurou-se na varanda, atrás de um pernilongo particularmente apetitoso. Imobilizado do lado de fora da sacada, virou lentamente a cabeça, acompanhando o vôo despreocupado do inseto. Enxergou o seu próprio reflexo no vidro da porta, mas não durou mais que um décimo de segundo. Estava pelado. Viu os olhos estarrecidos e só. O pavor tomou conta de oito andares imediatos.  
 
Encontraram o corpo de madrugada. Ao lado acharam uma pequena cauda de lagarto quebrada. A polícia concluiu em suicídio. 
 
 
 
 
© Jean-Michel Lartigue
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Quarta-feira, 18.03.09

Anônimo Noturno

Anônimo Noturno

 
 
 
 
As unhas rasparam a porta no meio da noite. Um som incomum, inesperado. 
 
RRRRRRR. RRRrrrrrrrrrrrrr. RRRRRRRR.
 
Flávio Aurélio esperou, no escuro, no outro lado da porta, no interior do apartamento, para ver, ou melhor, para ouvir se a coisa se repetiria. Coisa de filme de suspense, porque não soaram  a campainha? Bem, isso seria impossível, a campainha estava estragada mesmo ou nunca fôra ligada naquele apartamento. Não existindo essa possibilidade, tinha que ser assim, com batidas convencionais na porta ou esse surpreendente e novo rascar de unhas, no meio da madrugada.
 
O cara, Flávio, no escuro absoluto, esperou em silêncio até que o som se repetisse. 
 
RRRRRRRR. RRRrrrrrrrrrrr. RRRRRRRRR. 
 
Flávio girou a chave, na escuridão da noite e na loucura do seu espírito. O som das linguetas metálicas ressoou  com  ecos nos corredores do edificio, às escuras na madrugada. O interruptor temporizado da iluminação de segurança do andar não tinha sido acionado.
 
Ele entreabriu a porta na escuridão, sem acender a lâmpada da sala. A  silhueta, o calor do vulto, o perfume de bom gosto, sutil mas suficientemente insinuante, passaram por ele, roçando-lhe de leve a tangência da pele, entrando e dominando o espaço da sala. 
 
Flávio não tivera temor e sim uma excitação instantânea. Compreensível. O perfume da moça causara um efeito promissor e ele deixara-se levar.
 
Ele conseguiu distinguir no escuro acomodado de cinzas e negros de veludo, o contorno definido do corpo da mulher, aspirou com prazer seu perfume, percebeu o seu hálito rescendendo a hortelâ. Tentou mas não reconheceu no primeiro instante a figura da memória, a da moradora vizinha que vira várias vezes no imenso estacionamento do conjunro de prédios onde morava, manobrando o chamativo carro preto, com  quem ele nunca tinha conversado ou trocado qualquer frase mais longa, além de uns miseráveis cumprimentos rápidos e formais. Não a conhecia nem sabia seu nome. Nunca viria a sabê-lo.
 
Ela nada falou. Não precisava, qual seria a justificativa para entrar assim  no meio da madrugada, no apartamento de um cara desconhecido, que vinha observando a algum tempo, nas entradas e saídas do estacionamento, algumas vezes subindo juntos no elevador, cumprimentos superficiais, olhares nem tanto?  Ela sabia o nome dele, Flávio Aurélio, descobrira de algum jeito, com os porteiros, com a síndica, com algum outro vizinho, sabia alguma coisa dele, inclusive o que ele fazia. Mulheres são metódicas e costumam ir mais fundo nas suas investigações  e, principalmente, nos alvos de sua curiosidade.
 
Ele a enlaçou com firmeza, segurando pela cintura e beijou-a. Ela correspondeu prontamente e Flávio começou imediatamente a tirar-lhe a roupa, surpreendedo-a pela rapidez da segunda iniciativa, essa agora dele, enquanto giravam lentamente no meio da sala, beijando-se com os olhos fechados na escuridão, olhos que poderiam até estar abertos mas que nada veriam, valiam-se naquele instante da visão do tato, esparramando-se em queda lenda sobre o sofá e pelo chão, no tapete persa, de nós apertados.
 
Ele percebeu que ela bebera um tanto de algum álcool espirituoso, talvez um licor, pelo fundo de sua alma no momento do beijo, enquanto ele, a sua vez, estava completamente sóbrio.
 
Essa seria uma característica comum a todos os encontros futuros, não muitos, jamais marcados previamente mas de lembrança irremovível. Daí em frente, ele manteria uma garrafa de vinho tinto de boa marca sempre ao alcance do braço, uma garrafa de uísque escondida e um champagne prestes a mergulhar na geladeira. Ele não poderia saber nunca o momento em que ela arranharia a sua porta.
 
 
Extraído do conto Anônimo Noturno, de A Fenda (contos)
© Alfredo Aquino - A Fenda - Iluminuras, 2007

 

publicado por ardotempo às 11:54 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Sexta-feira, 20.02.09

Conto inédito de Junia Nogueira de Sá

Dois minutos
 
Junia Nogueira de Sá
 
Dois minutos. É tudo que eu preciso, dois minutos. Preciso falar com você para explicar o que aconteceu. Vai ser rápido, você nem vai se aborrecer, eu prometo. Dois minutos. 
 
Vou contar tudo. Como foi que ele chegou em casa naquele dia, e como foi que eu ouvi os passos na escada da frente. Pesados, pesados. Pelos passos eu já sabia tudo. Juro. Mesmo. Não estou, brincando: os passos dele eu podia ouvir da cama, todas as noites quando ele chegava tarde. E pelo ritmo, pela maneira de pisar na pedra das escadas da frente de casa, pelo peso, entende?, eu já reconhecia o humor dele. 
 
Você não acredita mas não tem problema, porque você nunca acreditou em mim. Nunca. Eu me lembro que, desde a escola, quando eu brigava na hora do intervalo e acabava estapeando alguma das meninas, você não acreditava. Eu voltava para a sala de aula com os cabelos desgrenhados, a maria-chiquinha desfeita, e você achava que eu tinha apanhado em vez de bater. Logo eu, que nunca fui de levar desaforo para casa. Logo eu, que era pequenininha mas resolvia tudo no braço, e você nunca acreditou nisso. Eu batia nas meninas no intervalo, mas acabava apanhando de você no caminho de volta para casa. Enquanto você dizia que eu era mentirosa e tinha de revidar quando apanhasse, eu apanhava. 
 
Mas isso não vem ao caso agora. Não mesmo. Eu quero contar o que aconteceu sem aborrecer você. Como prometi. Dois minutos. Acho que já gastei um, não? Mas me deixe falar. Vou contar tudo. Ouvi os passos dele, parecia um bicho bem grande subindo as escadas. Um. Outro. Mais um. Passos pesados. Como os dinossauros dos filmes, sabe? Eu podia imaginar a barriga gorda, a cara gorda, a bunda gorda dele pesando em cima das pernas, dos pés ecoando na pedra das escadas. Eu não podia ouvir, mas podia imaginar a respiração pesada dele, a mesma que tantas vezes ouvi tão de perto, ele por cima de mim, a barriga gorda, a cara gorda, minhas mãos tentando tocar a bunda gorda dele sem conseguir. Claro, não? Eu sempre fui pequenininha, você sabe, como ia conseguir abraçar aquela montanha de gente em cima de mim? Minha vontade era tocar a bunda para cravar as unhas; eu tinha um desejo, um delírio melhor dizendo, de que poderia agarrar a bunda gorda com as duas mãos, com as unhas todas enterradas nela, e puxá-lo para cima, e depois lançá-lo longe, bem longe de mim. Mas eu nem alcançava a bunda, então ficava ali, tentando, tentando me distrair e pensar no que eu faria se pudesse, e ele se movimentando, se chacoalhando, se esfregando, sabe como é, resfolegando e suando. Horrível. 
 
Mas isso não vem ao caso também. Droga, acho que falta pouco tempo agora, não? Vou acelerar. Vou contar depressa. Ele subiu as escadas e abriu a porta da frente. Eu cobri a cabeça com o lençol e fechei os olhos. Primeiro, bem apertados. Mas eu me lembrei que ninguém dorme de olhos apertados, e fui soltando. Tentei deixar as pálpebras apenas cerradas, não é bonita esse expressão? Pálpebras cerradas. Eu adoro. Vi num livro, uma história bem romântica. Também pensei que ninguém cobre a cabeça quando dorme. Mas isso eu não sei onde aprendi. Puxei o lençol um pouco para baixo e ouvi, nitidamente, ele virar a chave na porta lá embaixo, pelo lado de dentro. Casa é assim mesmo, não? A gente alonga os ouvidos quando mora numa casa como a minha, numa cidade como esta, violenta, cheia de histórias assombrosas nos jornais, nos telejornais, em qualquer fila em que se entre para fazer qualquer coisa, basta dar uma chance e sempre tem alguém com uma história assombrosa desta cidade. Eu tenho medo, claro. Tento controlar, mas tenho. Passo a noite toda ouvindo os barulhos da casa, da rua, do vizinho da direita, sei identificar exatamente cada um deles, os ouvidos alongados, alongados. Uma janela que se abre. Uma porta que se fecha. Um estalo no telhado por conta do dia quente. Sei até que cachorro é de quem, apenas pelo latido. Mais do que isso: já aprendi que existem latidos de alerta, de aborrecimento, até de pesadelo dos cachorros. Conheço alguns deles, já. É verdade... São latidos diferentes, sabe? O cachorro que não está alertando o dono, não está vendo ninguém estranho pulando o muro ou forçando o portão, apenas como exemplo, um exemplo bobo mas é um exemplo, esse cachorro late frouxo. Uou, uou, uou, uou. Frouxo e rouco, quatro vezes. Pode contar... 
 
Por falar em contar, eu vou contar. Calma. Você nunca tem calma, isso sempre ficou por minha conta: acalmar as coisas. Eu sempre fui mais sensata do que você, não? Não disse esperta, por favor, não confunda. Sensata. E calma. Eu estava calma naquela noite. Tinha ido cedo para a cama, não tinha nada para fazer, o que não chega a ser uma novidade na minha vida. Então eu ouvi a chave girando na porta da frente e tentei ficar imóvel, naturalmente imóvel, como eu disse antes. Puxa, estou com sede. Mas não vou parar para buscar água, senão a história não acaba hoje. Dois minutos, foi o que combinamos, certo? Vou continuar. Minha língua está seca como uma folha no outono, deve estar até amarela, ocre, marrom. Cor de terra, como as das folhas secas. Cor de bosta, que feio. Eu adoraria ter um copo de água aqui perto, mas não tenho, vamos seguir com a história. Eu fui relaxando o corpo, a boca, os olhos, as mãos, as mãos são muito importantes, quando a pessoa dorme, as mãos ficam nem abertas, nem fechadas, já reparou? Conscientemente, fui relaxando tudo. Queria mesmo parecer que estava adormecida. Profundamente adormecida. Fácil. Faço um exercício bem parecido com esse pelo menos três vezes por semana, na aula de yoga, deitada no chão, todas nós deitadas no chão, e a instrutora dizendo: agora, os dedos dos pés. Sabia que eles ficam tensos? Você tem que prestar atenção neles para poder relaxá-los. Agora, a língua dentro da boca. A mesma coisa! Ela está lá, dura, você nem percebe. Dura e seca como agora, porque quando acaba a aula eu sempre tenho sede. Relaxo a língua, e ela se banha na saliva do fundo da boca, é bem gostoso. Não dá para fazer isso aqui e agora, porque eu estou falando. Vou ficar com a sede, que chato. Eu queria tanto um copo de água... E os músculos da pelve então, aqui embaixo, sabe? Ficam tensos como os dedos dos pés. Da primeira vez, a instrutora falou: agora, a vagina. Era para relaxar, mas acho que todo mundo fez como eu. Falou vagina, pronto: os músculos se retesaram como se tivessem ouvido. Travados. Trincados. Uma ou duas riram, e todas caímos na gargalhada. A sessão de relaxamento acabou na hora, e na aula seguinte a instrutora disse: meninas, em vez de vagina, vou falar pelve. É a mesma coisa, vocês vão relaxar os mesmos músculos. Mas não vai acontecer aquele efeito risadinha da aula passada. Funcionou, sabe? 
 
Bom, pelo menos para mim. Vagina é uma palavra feia, esquisita, que não tem a menor graça. Mas me deixa tensa. Isso, a palavra vagina tem esse poder. Quando ouço, quando leio, fico tensa. E no consultório da ginecologista, então? Ela repete umas setecentas vezes por consulta. Pior. Em cima da mesa, ela tem uma peça pequena feita em plástico, espetada num pedestal de metal preso a uma base de madeira onde está escrito aparelho reprodutor feminino. Já entendeu tudo, não? É uma vagina completa, que desemboca num útero que se desdobra em dois ovários pendurados lá em cima. Tudo coloridinho, tudo rosinha, tudo desmontável. Ela usa a peça para explicar os efeitos, os fluxos, os refluxos, os defeitos também. Tira, põe, deixa ficar. Escravos de Jó. No final, volta para a posição correta, ela olhando por cima, literalmente por cima dos óculos, nem sei o que eles fazem pendurados no nariz dela, coloca tudo de volta no lugar. E fica ali aquela vagina, não, vagina não, aquela xoxotinha cor-de-rosa em cima da mesa. Virada pra mim. Para mim! Logo eu, que escuto vagina e fico tensa, passo metade da consulta, sempre, invariavelmente, sendo observada pela xoxotinha. Despelada. Nuinha, a xoxotinha. De plástico, mas bem realzinha. Dava para colocar uma câmera escondidinha naquele buraquinho do meio e filmar a minha cara. Tensa. Devo ficar horrível. Tensa. Nem ia querer me ver nesse filme. Acho que ia ficar com aquela boca pequenininha que eu tenho quando estou tensa, já notou que eu quase engulo os lábios? Minha boca fica um risco, um traço apenas, uma linha fechada entre o nariz e o queixo. Nem parece uma boca. Horrível. 
 
Mas vamos ao que interessa, chega de vagina. Bom, pelo menos eu falo vagina. Ou xoxotinha. É, sempre assim no diminutivo, mais bonitinho. Ele, não. Sempre busssseta, assim, com u e um monte de s, para ficar bem do jeito, você entende, do jeito dele. Jeito escroto. Eu também não gosto de falar escroto, acho vulgar, mas tem palavra melhor para definir ele falando busssseta, me olhando com aqueles olhos meio abertos, meio fechados, aquela boca mole de cerveja, me falando eu quero foder essa sua busssseta hoje? Não tem. Se tem, eu não conheço. Nunca vi nada mais, mais, mais a cara dele do que isso. Onde é que eu estava com a cabeça quando resolvi me casar com ele? Você é que tinha razão, nem apareceu no casamento. Eu me arrependi no meio da festa. Juro. Acredite em mim, no meio da festa eu já estava pensando: isso não vai dar certo. Ele veio dançar comigo, era apenas para fazer as fotos, ele veio dançar e me apertou demais. Eu sou pequenininha, você sabe. Ele me apertando, eu disse: está doendo, eu não consigo nem sorrir para as fotos. Ele respondeu: quieta. Abriu a mão gorda, não era tão gorda mas já era gorda, agarrou a minha bunda por cima do vestido de noiva, ficou bonito, não?, todo mundo vendo, e apertou até que eu gritasse. Todo mundo rindo, achando graça. Eu ri também, mas sabe quando você ri para não chorar? Eu ri. Ainda bem que você não estava lá, ia querer que eu revidasse. Eu podia pisar no pé dele. No meio do peito do pé, com o salto fininho do sapato de noiva, lembra do sapato de noiva? Você comprou comigo. Um tapa na cara. Cuspir? Uma cabeçada na barriga? Qualquer coisa menos rir com ele e com os outros, eu sei. Você ia querer que eu revidasse. 
 
Mas vamos terminar a história. Afinal, você veio aqui para isso. A porta fechada, ele parou de fazer barulho. Completamente. Nem passos pesados, nem leves, nem nada. Não respirava, não se movia. Pelo menos, eu não escutava. Meus ouvidos alongados não identificavam nada, nem um mísero movimento. O cachorro do vizinho latiu, frouxo e rouco. Quatro vezes. O meu respondeu. Mais quatro. Ambos se calaram. Ainda bem, eu pensei. Não tem ninguém arrombando porta, portão, pulando muro. Precisava ouvir o que acontecia lá embaixo. Nada. Nada mesmo. Parecia que a casa inteira, toda, tinha se transportado para um mundo sem sons. Nem novos, nem familiares, sem sons. Sem ruídos. Tudo quieto, tudo esperando. É, porque quando as coisas ficam quietas, elas estão esperando. O leite em cima do fogão, esquentando, espera só a hora de se derramar todo. Meu cachorro é assim. Os passarinhos são assim. Lembra de quando nós éramos crianças e ficávamos sentados no degrau da porta da cozinha, olhando o quintal e a mangueira, e o céu ia ficando preto porque vinha chuva grossa e os passarinhos paravam de cantar? Lembra disso? Mamãe dizia: passarinho aquietou, lá vem tempestade. Assim, tempestade. Mamãe achava que qualquer chuva era uma tempestade, e as tempestades, o fim do mundo. Trancava portas e janelas, colocava as crianças para dentro e sumia pelo corredor, ia rezar no relicário de Santa Bárbara, acender vela, cobrir espelhos com medo dos relâmpagos, guardar panelas de metal bem no fundo do armário para não atrair raios, organizar a casa para o fim do mundo que nunca vinha. Mamãe era maluca. A chuva passava, ela pegava a sombrinha, lembra que o nome do guarda-chuva das mulheres era sombrinha?, e ia para a igreja agradecer por o mundo não ter acabado. Maluca. Enquanto as crianças se esbaldavam nas poças d´água do quintal, ela lá, rezando. Voltava com os joelhos amassados, meio sujos, de uma cor de poeira de igreja, um cinza que eu reconheço até hoje, andando ligeira com a sombrinha fechada. Eu olhava aqueles joelhos e via o sangue por baixo da pele. Verdade. Eu via sangue ali, juntado num lugar só, muito sangue, sangue pisado de quem passou muito tempo de joelhos, toda a culpa do mundo e todas as tempestades da terra pesando nos ombros, amassando os joelhos. E quando ela vinha ligeira, eu olhava os joelhos pontudos e imaginava que eles podiam se abrir, deixar o sangue escapar, e ia ser um sangue em pó. Sangue pisado, me disseram uma vez, vira sangue em pó. Não ia escorrer como nas imagens da igreja, um Jesus, um São Sebastião. Ia sair voando, soprado pelo vento, e ela ralhando com as crianças, colocando todo mundo para dentro de novo, no banho, porque estávamos molhados e poderíamos morrer de resfriado. Maluca e exagerada. 
 
Às vezes tenho saudades da mamãe. Tenho uma foto dela em casa, de quando papai era vivo ainda, eles estão juntos, ninguém tem cara de feliz na foto, eu devia ser um bebê de colo ainda, está num porta-retratos no aparador ao lado da entrada. Ah, a entrada da casa. Desculpe, pois é, eu estava contando que ele havia entrado e estava tão quieto, mas tão quieto que eu sabia que alguma coisa iria acontecer. Tinha certeza. Uma tempestade, daquelas da mamãe. Fiquei esperando. Nada. Mais um pouco. Nada ainda. Comecei a achar que eu tinha sonhado. Estava acordada, mas tinha sonhado com os passos dele nas escadas de pedra, a chave na porta. Sonho não: esse homem chegando em casa nunca foi sonho. Pesadelo. Pesadelo tem a ver com peso? Eu acho que tem, sabe. Nesse caso, tudo a ver. Pesadelo, pesado, peso. Toneladas de peso em cima de mim. Aí foi que eu percebi que o silêncio também estava pesando. Li isso num livro, mas achei tão ridículo na hora... Silêncio pesado. Mas existe. Eu comecei a prestar atenção no peso do silêncio, e ele foi crescendo. Eu não ouvia mais nada, nem a minha própria respiração. Nada, acredite. Nada. Foi então que eu senti o cheiro. Um cheiro quente e metálico que eu não reconheci na primeira vez que invadiu meu nariz. Era familiar, e era bom, mas eu não reconheci. E então ele veio de novo, um cheiro de tempestade, não, de tempestade não. Um cheiro de trovão. Melhor ainda, um cheiro de raio. Tem gente que acha que é a mesma coisa; não é. O que foi, você pensa que raio não tem cheiro? Tem sim. É quente, metálico, imenso. O que foi agora,  você pensa também que cheiro não tem tamanho? Esse tinha. Enorme. Entranhou em tudo, no meu nariz, nas minhas roupas, até nas de baixo, nos lençóis, nos meus cabelos. Cheira aqui se você quiser, ainda está nos cabelos. Vá até a minha casa, ele ainda está no quarto, eu sei que está. Quantos dias se passaram? Dois? Três? Está lá, o cheiro. No começo era bom, eu já disse, mas agora estou enjoada dele.  É nojento. Eu lavo, lavo, lavo e ele não sai. Grudou em mim. Você está sentindo? Acho que não. Você está tão longe, mas eu estou sentindo, sim. Acredite. Você acredita em mim? Acredita? 
 
Escute bem agora, porque eu vou contar como foi. Eu prometi, você veio até aqui, eu vou contar. Foi o cheiro que me fez sair da cama. Nenhum som, nenhum ruído, nenhum barulho. O cheiro. E  me lembrei dele porque era o mesmo cheiro de sangue que eu sentia quando nós voltávamos da escola, e você me batia, e meu nariz sangrava escorrendo, não o sangue em pó da mamãe, e você brigava comigo, o tempo todo, a volta toda para casa. O mesmo cheiro bom, familiar, eu gostava de importar para você, eu gostava de contar para você, eu gostava de ser alguém para você, de ser alguém em quem você batesse, você me batia porque queria que eu fosse como você. Queria que eu revidasse tudo, tudo, tudo na vida. O bem e o mal. Acho que era isso. Então eu senti o cheiro e me lembrei de você, e me levantei da cama, e quando dei um passo, tropecei nele caído no chão, estirado. Senti um calor úmido nos pés e o cheiro ficando cada vez maior, maior, maior. Encheu o quarto. Entranhou em mim. Eu fiquei ali parada, em pé, esperando, até que alguém chegasse. Não sei quem foi a primeira pessoa, nem a segunda, nem se isso demorou. Eu estava esperando, apenas. Estava com medo de andar no escuro, e estava escutando os ruídos da casa, só isso. Os cachorros latiram muito, todos eles, da vizinhança inteira. Muito. Eu estava com medo deles também. Eram latidos que eu não conhecia, não sabia o que podiam significar. Latidos estranhos. Às vezes eles chamavam meu nome latindo. Ana, Ana, Ana. Eu me lembro de você chegando, é a única pessoa de quem me lembro no quarto. Você também disse: Ana. Ana, o que é isso?, acho que era essa a frase. Você não entendeu. Eu precisava explicar. Dois minutos. Eu me lembro do cheiro e de você, só lembro disso. Estava querendo que você chegasse depressa para acender a luz, mandar embora o meu medo, para você ver o que eu tinha feito: ele estava caído no chão, acho que estava morto, não sei o que aconteceu. Mas quem escreveu nas costas gordas dele fui eu, isso eu sei. Com a pontinha da faca: Ana. A sua pequenininha. Uma assinaturazinha. Eu revidei. Acredita agora?
 
 
© Junia Nogueira de Sá
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Quinta-feira, 19.02.09

Conto de Aldyr Garcia Schlee - em espanhol

El día en que el Papa fue a Melo
 
Aldyr Garcia Schlee
 
CUENTO II
(en castellano, este cuento se llamará SOLEDAD DE JESUS MARÍA; en portugués también, aunque sin el mismo alcance del significado)
 
 
 
 
SOLEDAD DE JESUS MARÍA
 
El día en que el Papa fue a Melo, desde temprano se oía el movimiento: un rumor sin fin, distinto de lo de las otras mañanas, y que no permitía identificar con seguridad si era de todos los autos y camiones y ómnibus que llegaban o si era de una poderosa máquina encendida quién sabe donde o una descomunal cascada tragándoselo a todo o el sordo tronar de una tormenta armándose a la distancia. Los ronquidos más próximos, de los motores, o — un poco más lejos — algunas bocinas, voces, tropel de caballos, un silbato, pasos allá afuera, gritos, una acelerada fuerte, los ruidos aumentando y disminuyendo en los oídos, las paredes y la casa toda como si temblasen de vez en cuando, como cuando pasaban gimiendo los gigantescos camiones cargados con bananas o con autos importados de Brasil.
 
Era como si el frigorífico funcionara y todos pasasen alegres para el trabajo en las viejas mañanas doradas de sol. Venían todos en bandadas coloridas con sus botas blancas — la sirena sonaba a las siete — ; los lecheros pasaban con sus carros, pasaban las jardineras de las panaderías, los soldados a caballo, peones, empleadas domésticas, gente de comercio, todos con sus ropas, sus sonrisas y sus adioses.
 
¡Hola compadre! ¡Adiós! ¿Cómo le va?
 
Los rostros sonrosados, los ojos brillantes, las manos diciendo cosas. El camino vecinal recién abierto en el pasto verde del campo, para servir a las casitas iguales, las viviendas donde cada uno trataba de arreglarse y se acomodaba como podía entre las paredes de ladrillos sin revoque, en el suelo grisáceo de cemento, bajo los tejados negros de cartón alquitranado.
 
Las casas sombrías quedaron atrás y fueron ganando colores, una allí, otra aquí: paredes blancas, flores en las ventanas, puertas azules, rosales, gatas mariposa, banderas de fútbol, retratos de casamiento, colchas, sofá-camas, limoneros cargados, gallineros, ropas en la cuerda... Pero el frigorífico nunca pasó de una esperanza de olvidar el esqueleto abandonado del Saladero María Elizonda, las varas para el charque abandonadas y vacías en los campos amarillentos, 13.600 reses muertas para vender 1.000 toneladas de tasajo y dar ocupación a una 300 personas...
 
A fin de cuentas, cuando se iba de mal en peor, cargaron camiones y camiones con una partida de charque no exportada y la tiraron a los chanchos. Jesús María se acuerda: vio todo. Jesús María era un gurí cuando empezó a trabajar en la charqueada. Ahora, al levantarse de la cama, el día en que el Papa fue a Meló, siente en las manos y en los pies las marcas que la sal gruesa le dejara para siempre, callos de dolor ardiente de la piel marchita y blanca, de las grietas, de las heridas que se abrían como bocas, de los días sin remedio y sin sueldo.
 
Jesús María extiende la mano y enciende la radio: "...que estaremos presentes y seguiremos sus palabras por la TV y la radio... La Voz de Melo, con todo el pueblo de esta ciudad y de este departamento, se complace en unirse a la voz de todo el pueblo uruguayo y decirle con toda emoción: ¡Bienvenido Juan Pablo Segundo! ¡Bienvenido, Mensajero de la Paz!".
 
Las calles ya deben estar llenas de gente. Pero es temprano aún: hay tiempo para cebar un mate, para matear un poco mientras las gentes se atropellan y arman un fragor de maquinarias, de cascadas, de truenos que algunas veces hasta hacen estremecer las paredes de la casa, entre los sones tan claros y tan conocidos de un perro asustado, de un gallo tardío, de una vecina alegre. Jesús María va hasta la ventana, en busca de otras mañanas; en busca, por lo menos, del ladrido del perro asustado, del cantar del gallo, de la risotada de la vecina.
 
Está muy, muy frío. Se siente en la humedad el cielo nuboso, el sol ausente, la cerrazón que a todo domina.
 
Alguien dice: "¡Buenas, Jesús María!"
 
Pasa un niño llorando; Jesús María dice: "¡Buenas!" (pasa todo el mundo frente a su ventana, camino a la explanada de la Concordia).
 
"...Más allá de lo que significa la figura de un Sumo Pontífice para los hombres de fe, Juan Pablo II sobresale de una manera especial entre todos los personajes del presente por su continua lucha por el bien común, por la paz mundial, por la justicia entre los hombres y los pueblos", dice la radio.
 
Alguien dice: "¡Hola Jesús María!" Y le contesta él: "¡Hola, Soledad!"
 
Soledad se ríe. Ríe, pregunta si no va él a ver al Papa; y se ríe. Es la vecina que siempre está riendo. Jesús María compone el pecho y dice apenas: bueno. Entonces, si no llega a hacerse un silencio entre ambos es por culpa de los ruidos de la calle. Pero Jesús María percibe que Soledad ya no está más en la acera, percibe que ella cerró la puerta en silencio y se fue para adentro.
 
Jesús María está ciego desde hace mucho tiempo. Desde una noche de verano en que le pusieron acetona o ácido de batería o algún otro líquido grueso en los ojos pensando que se trataba de colirio. Aquello quemó como si le hubiesen metido los dedos y las manos con las uñas por dentro de las vistas y le hubiesen arrancado los ojos junto con pedazos de los sesos y de las tripas. Fue una aflicción imposible de contar, de no poder siquiera gritar, de estirar el cuerpo en la cama como una tabla, de sólo mover las puntas de los pies. No hubo compresa ni ungüento que le valiese. Lo último que Jesús María vio, después de un rostro con bigotes y del pico del cuentagotas, fue su propio pestañeo.
 
Continúa la radio: "...importancia de estas fechas. Porque Jesucristo vivió, murió y resucitó por nosotros los hombres, por cada persona humana. Cuando permitió que le martirizaran y mataran, lo hizo para pagar por las faltas de cada uno de nosotros, también por las que cometiste tú, oyente".
 
Jesús María había trabajado hasta al oscurecer con otros dos peones en una labranza. Era ya noche alta cuando llegaron de vuelta a las casas. Había cascarudos y mariposas en cantidad en torno de los focos de luz. Hacía un calor bárbaro. Los cuerpos estaban sudorosos y cansados. Él, con las manos sucias, se restregó los ojos; los ojos empezaron a arder. Entonces cayó en el disparate de decir que se había quemado las vistas con las manos sucias de abono. Por eso se les ocurrió aquello de echarle el colirio.
 
Ahora vive midiendo sus pasos, tocando las cosas, palpando, vive de sonidos y olores, y de la memoria iluminada por todos los blancos, colorida por todos los azules y dorada por todos los amarillos que viera un día en las banderas desplegadas, en los cielos, en los ríos y en el sol. Vive de la fragancia de los campos y de la entonación de las voces, adivinando todos los tonos de verdes y todos los tipos de rostro que pudo distinguir y que supo identificar.
 
Hace mucho frío. Es mejor cerrar la ventana. Las personas se dirigen al terraplén de la Concordia, allí cerca. El ruido de un carro se distingue claramente de los demás. Pero la radio está diciendo que todo el tránsito de vehículos será desviado y que luego nadie podrá circular por las calles, salvo a pie.
 
Dice la radio: "Es enorme el entusiasmo que está provocando esta histórica e importante visita a nuestro departamento. Acá, en la explanada de la Concordia, desde donde Juan Pablo II hablará a nuestro pueblo, hay ya una innumerable muchedumbre".
 
El Papa vendrá en un palanquín, cargado en brazos como los santos en procesión. La gente rezará el rosario entre avemarías y padrenuestros. Habrá lisiados y enfermos a la espera de un milagro.
 
Jesús María hace fuerza para imaginar al Papa sin los anteojos de Pío XII, hace fuerza por verlo como viera a Nuestro Señor de los Pasos llevado al encuentro de la Virgen. Jesús María piensa en los desengañados de toda suerte, en gente cargada en catre, llevada en brazos, gente de muletas, sillas de ruedas, mancos, mutilados, sordos, mudos, gangosos... Y no piensa en milagro.
 
Los ojos sin luz habían sido corroídos, habían sido carcomidos, y ya no existía en ellos una mínima chispa que por milagro les restituyese los brillos y colores, las formas que poblaban su mundo de recuerdos y de sueños y que eran, al mismo tiempo, consuelo y desesperanza.
 
Vivía en la certeza de que sólo la memoria le permitía ver, vivía en el miedo de que se apagase esa memoria que le enseñara definitivamente a mirar hacia atrás; vivía seguro de que la imaginación también le permitía ver - pero temía que incluso ella se fuese, la imaginación que le daba la alegría de mirar adelante. Con todo, el miedo mayor que lo acuciaba y que no confiaba a nadie - ni podía explicar por qué lo tenía -, era el miedo de un día ya no poder ver, sin los recuerdos y los sueños con que veía nítidamente todo.
 
La radio avisa que el Papa llegará dentro de cinco minutos; anuncia el coro y la orquesta municipal. Una voz desgañitada, la conocida voz de Sergio Sánchez, de CW 53, comienza a gritar:
 
¡Juan/paaa/bloa/mii/go//elpuee/bloes/tá/con/tiii/go!
 
Mucha gente repite en coro:
 
¡Juan/paaa/bloa/mii/go//elpuee/bloes/tá/con/tiii/go!
 
Antes de cinco minutos Soledad llamará en la ventana como sólo ella sabe llamar. Jesús María abrirá la ventana y se desbrozará hacia la calle en la renovada mañana de poca gente y ningún barullo; traerá la radio para que Soledad la comparta con él como en las tardes de fútbol y en las noches de radioteatro. Y quedarán los dos sabiéndolo todo; ella riendo, riendo mucho; y él allí, muy cercano a ella.
 
La radio dirá: "Juan Pablo viene a nosotros".
 
Dirá Juan Pablo II: "Que Dios bendiga sus hogares cristianos donde reina el amor y la paz".
 
Soledad no dirá nada. Quedará quieta. Luego estrechará fuertemente el brazo de Jesús María, sollozando.
 
Jesús María va, inquieto, hasta la ventana. Ya nadie pasa, cesó todo movimiento, sólo se oye la radio y unas voces muy distantes.
 
El Papa está llegando a la explanada de la Concordia.

 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
© Aldyr Garcia Schlee
Conto publicado originalmente no livro El día en que el Papa fue a Melo, em 1991, pela Ediciones de la Banda Oriental, de Montevideo Uruguay. Foi vertido ao português pelo próprio autor e editado no Brasil pela Editora Mercado Aberto, de Porto Alegre RS Brasil, em 1999.
Ilustração de Pablo Benavídez, Escenas Cotidianas - Desenho a tinta china e gouache sobre cartão.
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Terça-feira, 20.01.09

Talento em síntese

38 miniaturas

 

José Mário Silva 

 

 

Pequeníssimo conto (quase bíblico)
No princípio, era o Verbo. Ou outra coisa qualquer. Deus já não se lembra.
 
Fósforos
Dentro de cada caixa de fósforos, dezenas de incêndios adormecidos.

 

 

América
A América, para K, é o equívoco. Colombo procurava a Índia e encontrou a América. «Sei bem o que isso é», diz K, que ao longo da vida também procurou umas coisas e encontrou outras.
 
Arte da guerra
Não confundir o fio da espada com o fio do horizonte.
 
À la carte
Foi sincero: o que ele desejava, para usar a expressão da empregada de mesa, nunca constaria da ementa.
 
Enxoval
Para o seu casamento levou tudo o que era suposto (excepto a paixão).
 
Caçador nocturno
Regressa de madrugada, os perdigueiros exaustos, meia dúzia de estrelas à cintura.
 
Winterreise
A meio do recital, inexplicavelmente, começou a nevar dentro da sobreaquecida sala de concertos.
 
Assalto ao museu
Cúmulo da sofisticação: alguém conseguir roubar, não os quadros de Monet, mas apenas os nenúfares dos quadros de Monet.
 
Parafilia
Tatuava no corpo uma fragilidade imaginária: nódoas negras, cicatrizes, fracturas expostas desenhadas sobre a pele.
 
Gesso
Ao fim da manhã, visitou o amigo no hospital e assinou-lhe o gesso (mesmo por baixo da frase: «Fui eu que te empurrei»).
 
Catedral
Só as gárgulas conhecem todos os segredos de uma cidade.
 
Terramoto
Quando o grande terramoto sacudiu a cidade, com o fragor de um castigo bíblico, a primeira coisa em que pensou foi no lustre da avó Cremilde, tão antigo e de cristal.
 
Caixa negra
No rescaldo de cada relação falhada, lia de novo todos os e-mails e SMS, à procura do erro humano.
 
Fatalidade
O rosto que mereces está sempre noutro espelho.
 
Manhã
Ao acordar, C teve um pressentimento: «hoje vou morrer.» Só depois, muito depois, lhe explicaram que nem sequer tinha acordado.
 
Homodiegético
Há histórias que puxam tudo lá para dentro. Até o narrador.
 
Noções de geometria afectiva
Os triângulos amorosos nunca são equiláteros.
 
Ressaca de uma história de amor
O coração arrancado, preso ao peito com velcro.
 
Tacto
B ainda espera toques que não sejam de telemóvel.
 
Crise de identidade
Andava tão confuso que criou um heterónimo chamado Fernando Pessoa.
 
Espírito Santo
Ao ver uma pomba morta no chão, enquanto em Roma elegiam o novo Papa, suspeitou que algo não correra como previsto.
 
Serviço de socorro a náufragos
As miúdas giras iam saindo da água - ilesas, magníficas, botticellianas - enquanto ele ficava a tarde inteira junto à bandeira verde, fazendo respiração boca-a-boca a septuagenárias e homens de bigode.
 
Adagio molto con paura
Pesadelo do primeiro violino: ser enterrado vivo no poço da orquestra.
 
Roleta russa
Já perdera tudo na vida. Não queria perder aquela bala.
 
Hades
Já lá estavam todos há muito tempo, ignorando ainda que não regressariam nunca.
 
O quadro que Vermeer não pintou
Um xadrezista na penumbra, mão no ar, ponderando o gambito.
 
Nonagenário
De manhã muito cedo, o senhor W sai à rua com a morte atrás, puxada pela trela.
 
Na prancha mais alta
Lembro-me que os outros rapazes ignoravam olimpicamente as leis de Newton, antes de cairem na água como maçãs.
 
Bailarina
Uma noite, durante o salto, apercebeu-se que os braços dele não estavam lá.
 
Berlindes
Depois de alinhadas três pequenas covas na terra seca, esperávamos ansiosos a inconfundível música das esferas.
 
Janela de oportunidade
Estava aberta, a dois passos, escancarada. E o gestor suicida aproveitou-a.
 
Hockney
"Nesta casa", disse V, irónica, «a piscina fica na sala, mesmo por cima do sofá».
 
Ritual
Colhia romãs de madrugada, antes que explodissem.
 
Soldado
Extirparam-lhe o medo do corpo, como quem arranca um quisto. E é esse vazio deixado pelo medo que o assusta.
 
A fasquia
Em tudo aquilo a que se lança, coloca a fasquia alta, cada vez mais alta, altíssima. Tão alta que com o tempo deixa de a ver.
 
Florista
Também ela murcha de repente, ao fim do dia, sem que ninguém perceba porquê.
 
O que está no meio não interessa
Era uma vez e foram felizes para sempre.
 
 
© Publicado no livro Efeito Borboleta, de José Mário Silva - Oficina do livro, 2008

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Segunda-feira, 12.01.09

Conto inédito de Junia Nogueira de Sá

A luz

Ela olhou pela fresta da porta e viu a luz do abajur acesa no quarto. Acordado, ainda. Ele estava acordado, talvez naquele estado de quase sono em que permanecia antes de finalmente dormir umas poucas horas, e então despertar assustado. Para não dormir mais até o dia amanhecer, e a luz entrar, dessa vez pela janela mal servida por uma cortina leve, diáfana, inútil, que ela odiava exatamente por isso. Ele gostava assim. Disse uma vez, para explicar a cortina, que a luz do dia o fazia sair da cama com mais vigor. Mas ele estava sempre cansado, e se arrastava para fora dos lençóis pela manhã, em direção à janela que dava para a rua lateral do edifício e que ele nunca abria, com medo da altura. Ficava um tempo ali, cansado, respirando compassadamente, cansado, antes de sumir pela cozinha, cansado, enquanto ela se levantava, se arrumava, saía de casa, sem saber dele, esgueirando-se no corredor, até a porta da rua, para não encontrá-lo. Cansado.


Eram já alguns anos juntos, e a maior parte deles assim. Ele de noite, ela de dia, isolados em universos distintos, próprios. Ímpares, singulares, que ninguém saberia dizer se um dia estiveram juntos, ou quando foi que se separaram.


Ela voltou para a sala, sentou-se na poltrona e procurou no livro um parágrafo que pudesse reconhecer. Estava distraída nos últimos tempos, precisava voltar umas tantas páginas a cada vez que se levantava para conferir se ele já dormira. Preferia se deitar quando ele estivesse adormecido. Apagaria o abajur antes. Acordaria com o susto dele, mas dormiria de novo. Ele então ficaria imóvel a seu lado, a noite toda, até ver a luz na janela, e até que essa luz fosse suficiente para inundar a rua lá embaixo e o quarto lá em cima. Ela estava acostumada com aquela presença pétrea na cama de casal. É verdade que nunca reclamou quando, no começo, ele se revirava sobre o colchão, esperando a manhã surgir na janela. Apenas permanecia acordada, acompanhando os movimentos dele, sentada na beira da cama. Mas ele entendeu. Passou a ficar imóvel. Essa era a condição de ambos para atravessar a noite juntos, lado a lado, nunca explicitada. Ele, imóvel. Ela, calada.


Ela não o amava mais. Gostava apenas de seus pés, que achava lindos mas via pouco, pouquíssimo. Estavam sempre enfiados em meias, em sapatos, enrolados no lençol, na toalha, no tapete, cobertos. Escondidos. Ele sabia que ela gostava de seus pés, e não se importava em mantê-los longe do olhar dela. Fazia questão, às vezes, mas na maior parte das vezes, nem se lembrava, nem se importava, nada. Apenas mantinha o hábito infantil de enfiar os pés debaixo, dentro, atrás, ao redor de qualquer coisa que pudesse abrigá-los. Fazia assim, ela não sabia, ele não revelava, talvez por conta do mesmo pesadelo diário, de que algo, ou alguém, alguma coisa enlaçava ambos os seus pés enquanto ele andava dentro de um grande inundado de água grossa que lhe chegava aos joelhos, e o arrastava para baixo, com violência, para o que parecia ser um inferno gelado e escuro, barulhento como uma fábrica velha, irrespirável. Ele nunca viu o lugar, mas era assim que parecia ser. Era assim que ele imaginava que seria, cada vez que a coisa o enlaçava e arrastava, dentro do pesadelo. Era assim que descrevera para ela numa única manhã, muito tempo atrás, parado junto da janela, cansado, quando eles ainda conversavam coisas rotineiras. Todas as noites, acordava. Assustado, muito assustado.


Anos assim. Não saíam de casa à noite, não jantavam com os amigos mas sentados, quietos, um diante do outro, a mesma sopa sem graça e malfeita, não iam ao cinema nem viam televisão, não caminhavam na calçada à beira da praia nem na rua lateral, coalhada de lojas e de restaurantes pequenos e cheios de gente. Foi para isso que se mudaram para o apartamento. Tinham planos de aproveitar as noites quentes como dois namorados e as frias como dois amantes, de passear a pé pelo bairro, de fazer amor na sala, de viver a vida de casal recém-casado longe da casa dos pais dele, onde ele sempre morara, primeiro na mansarda azul e espaçosa do terceiro piso, que ela visitou apenas uma vez, depois no quarto bagunçado em cima da garagem, para o qual ela se mudou uma semana depois de conhecê-lo, um mês antes de se casarem.


Nunca aconteceu, e ela não lamentava. Nem no primeiro, nem no segundo dia aconteceu. Nunca. Depois que a diarista saía, no final da tarde, a casa ficava às escuras exceto pelo abajur do quarto, que ele comprara, e a luminária de leitura da sala, que ela herdara da avó e trouxera antes de tudo o mais para o apartamento. Ela apagava ambas antes de se deitar, quando ele enfim dormia. E depois do boa-noite formal da diarista, que só se despedia depois de deixar pronta e sobre a mesa da copa a mesma sopa de todos os dias, porque ninguém falava com ela nem lhe pedia nada, quase nenhuma palavra se ouvia dentro do apartamento.
Ela se acostumara a passar horas calada.


Porque tinha de voltar e voltar e voltar nos parágrafos, ela levava mais, muito mais tempo para ler um mesmo livro que, lá se vão todos aqueles anos com ele, leria em quantos dias? Uma semana? Tinha dúvidas sobre o enredo, confundia personagens, se perdia na história. Lia apenas para ocupar o tempo entre ele se deitar, e ele dormir. Agora mesmo, procurando a última frase de que se lembrava, ela topara com um nome, Cecília, que não vira antes. Onde Cecília entrava na trama? Quem era Cecília? O que Cecília tinha a ver com os outros? Não sabia. Por um segundo, achou que tinha apanhado o livro errado na mesinha a seu lado. Mas era o mesmo. Seu único livro há anos.


Cecília.


Fechou as páginas sem fazer barulho, bem devagar. Olhou o relógio pequeno em seu pulso. Estava certa, passava de meia-noite, ele podia não ter dormido ainda mas ela se sentia pronta para fechar os olhos a qualquer momento. Estavam pesados, plúmbeos. Incontroláveis. Pensou de novo em Cecília. Não entendia como, com os olhos tão devastados pelo sono, tinha esbarrado numa novidade dentro do livro. Talvez por isso mesmo, pensou melhor. Só porque era uma novidade. Então Cecília entrava agora na história, e ela não teria de voltar tanto para trás, naquelas páginas, para entender o que estava acontecendo. Teve a tentação de retomar o livro, mas seus braços, suas mãos, tudo estava fatigado e seu corpo, pronto para dormir. Ansiando por dormir. Deixou o livro quieto em seu colo.


Precisava se levantar e conferir, mais uma vez, se ele já estava adormecido. Fez o esforço de pousar o livro na mesinha, de apagar o abajur e seguir, sem tatear como nos primeiros tempos, pelo corredor escuro até o quarto. Olhou de novo pela fresta da porta, e agora sim, ele dormia. Ele sempre ficava virado para a janela, de costas para a porta, e mantinha um dos braços ao longo do corpo enquanto estava acordado. Mas bastava adormecer, e relaxar os músculos, o braço escorregava para a frente, como uma senha que dizia: pronto, agora é sua vez de vir para a cama. Sua vez.


Ela entrou no quarto bem devagar, como todas as noites. Puxou os lençóis do seu lado da cama, e sentou suavemente nela. Levantou os pés, tocou com eles o tecido morno e deixou que deslizassem devagar. Então, tombou leve sobre o travesseiro, cobriu-se e esticou o braço para apagar a luz do abajur.


- Quando amanhecer...


Era a voz dele, grave, muito baixa, para não se fazer ouvir.
Ela interrompeu o movimento. Deixou a mão no meio do caminho e esperou. Ele suspirou, ela ouviu.


- Quando você acordar, eu não vou estar mais aqui.


Ela esperou outro tanto. Ele não disse mais nada. Ela, então, continuou a esticar o braço até tocar o botão, e apagar a luz.


- Só hoje, a luz...


A voz dele era menor ainda.
Ela fingiu não ouvir o pedido. Parecia um pedido. Enfiou o braço, depressa, de volta sob o lençol, prendeu-o entre as pernas, fechou os olhos com força, fechou a boca com força para ficar calada. Calada. Estava vencida, arrasada. Derrotada. Dormiu depressa. Não se lembra de ter acordado com o susto dele nessa noite, mas se lembra de ter sonhado com Cecília. Cecília era uma mulher bonita, jovem, alegre, que ela jamais tinha encontrado antes e não tem a menor idéia do que poderia estava fazendo em seu sonho, equilibrada nas pontas dos pés, parada naquele lugar tão claro, tão iluminado, tão ofuscante, vestida com uma roupa que refletia tanta luz, uma roupa feita com o tecido da cortina, que balançava e balançava por causa da janela escancarada na manhã, Cecília sorrindo para ela, Cecília sorrindo com a boca e com os olhos, Cecília sorrindo com o corpo todo, Cecília sorrindo como uma boba.

 

 

© Junia Nogueira de Sá
 

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Terça-feira, 16.12.08

Conto-Carta, de Ignácio de Loyola Brandão

Ignácio de Loyola Brandão

 

 

 

A foto no meio do atlas
 
Querida Tatiana,
 
Ao olhar a fotografia que encontrei no meio do atlas compreendi o que aconteceu. 
 
Uma coisa me intrigou. Como ela foi parar no meio de um atlas dos anos, 30, usado pelos alunos do ginásio, se você nos anos 30 não era nascida e seus pais ainda não tinham se casado? A quem pertenceu esse atlas? Por que estava em minha estante? Empoeirado, páginas faltando (imagine, não tem a Alemanha, nem parte da Rússia), estava jogado no alto, naquela parte onde atiramos livros que não queremos mais e não temos coragem de jogar fora.
 
Por que nos apegamos às coisas?  Que apego teria eu a um atlas que não sei de onde veio, de quem era?  Como a sua fotografia, de um tempo em que nos gostamos tanto, fomos tão felizes, foi aparecer no meio dele, junto aos mapas da China? Logo a China, o país de O Último Imperador, o filme que você tanto curtiu. Foi naquela tarde em que, entrando no cine Marabá, porque sabia que você estaria lá, te flagrei junto com ele. Você se assustou e chorou. Inutilmente, porque fiquei feliz, foi uma tarde feliz, eu estava à sua procura para dizer que estava tudo terminado e quando te encontrei vi que estava mesmo, mas preferi te deixar levar a culpa, porque imaginou que eu ainda gostasse de você e estaria sofrendo e nunca me recuperaria. Você adorava me ver aos teus pés, mas olhei teu rosto e percebi como foi difícil aquele encontro furtivo no escuro do cinema. 
 
Era uma traição – e o que é traição?  Você estava me traindo, ainda que há muito tempo eu te enganasse. Saí dali, você veio atrás, segurou a manga do meu paletó (por que eu estava de paletó numa tarde de terça-feira, no centro da cidade?) e pediu: "Vamos conversar, me desculpe, você vai entender tudo". Respondi: "Entendi, acabo de entender o amor, as mulheres, os homens, a vida, o mundo, a política, o buraco negro da atmosfera!" E você: "Quero te explicar". Mas explicar o que? Eu não queria explicações.
 
Tive medo que explicando você pudesse querer ficar comigo, quisesse estar bem, sem remorsos, amarguras. Era uma coisa que eu não podia suportar. Empurrei, você caiu na poltrona de couro vermelho do hall, uma poltrona anacrônica, toda estourada. Por que foi naquele cinema que cheirava a mofo? Para se esconder? Nunca vai saber como soube que você estava lá e espero que tenha passado esses anos todos remoendo, cheia de ansiedade. Nunca saberá que gostei de te castigar, ainda que eu merecesse o castigo, traí antes, há muito não gostava de você. 
 
Nunca saberá como descobri o seu endereço nesse spa que na verdade é um asilo. Sei que está nele, passo todos os dias pela frente, te vejo ao sol, com o mesmo jeito altaneiro (usei essa palavra no primeiro dia que nos encontramos e você gostou, lembra-se?). Você sempre foi mulher determinada, brava às vezes, risonha outras, cheia de altos e baixos, cheia de surpresas, carinhosa hoje, raivosa amanhã. Esse teu jeito me encantava, me deixava siderado (usei essa palavra no momento em que te recebi do teu pai  no altar, na hora do casamento, e você riu: “Cada palavra que você usa”, disse). 
 
Não achou engraçado: te recebi do teu pai? Estou escrevendo às pressas, escrevendo mal, repetindo muito você, você, logo eu, que tinha estilo para escrever. A bic está se acabando, não tenho dinheiro para comprar outra e o papel  é o saquinho da padaria. Percebeu? Mas quem se importa com estilo, se aquela tarde em que te vi no cinema me marcou, me acompanhou, não sai de dentro de mim?
 
Nunca reparou, no seu banco ao sol, em um homem que pelo lado de fora se agarra às grades do jardim, esperando que você olhe para ele, lembre-se de quem tirou a foto que estava dentro do atlas? Nessa foto você sorri, bebendo Frascati, uma garrafa que fui buscar correndo, porque fazia calor, você suava na têmpora, tinha a pele úmida, o vestido se colava ao seu corpo. Bati a foto e nela você está quase nua. Você roubou a cópia, disse que não era conveniente que eu ficasse com ela, podia mostrar aos meus amigos, ao pessoal da escola. Foi no recreio, antes da aula de química que a foto passou para você e nunca mais a vi. 
 
Agora, reencontrei nesse atlas em que há mapas de países que não existem mais. Quando essa foto saiu de suas mãos e como foi parar em um atlas em minha estante? Se eu conseguisse entender isso entenderia também o que aconteceu entre nós. De que adianta entender?  Quando entendimento melhorou o mundo? Quero que saiba que ninguém é mais bonita do que você, dentro desse asilo. Quer sair dele? 
 
Beijo do
 
Amoroso
 
 
© Ignácio de Loyola Brandão - Cartas / Lettres - Iluminuras, 2005

 

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Domingo, 05.10.08

Conto-Carta, de Ignácio de Loyola Brandão

 

 

O horror de minha autópsia

 

 

Minha mais do que adorada, amada Luisa

 

O que me deixa apreensivo é a perspectiva de, por qualquer razão, ter de sofrer uma autópsia. Não sei os motivos que levam a lei a exigir uma autópsia. Morte em circunstâncias suspeitas.

 

Sempre que leio essa frase em jornais, me delicio. Agora, a possibilidade me deixa consternado. Ser estendido em uma mesa de mármore — ao menos é mármore nos filmes e romances, mas acho que no Brasil ninguém vai gastar mármore com defunto. Digamos ser estendido em uma mesa de granito, pedra, madeira, fórmica. Branca, não muito limpa, que nada é limpo nesses lugares, com restinhos de sangue, talvez excremento — Deus me livre de tal inglória — ou pedacinhos de vísceras secas. Eu nu. Indefeso, exposto, a pele amarela, cheirando mal sobre o tampo repelente. Situação incomoda, estarei à mercê do legista insensível que vai me cortar com bisturis e serras, sem se incomodar com o que fui, pensei, sonhei.

 

Jamais passou pela cabeça dele que o corte possa doer em um morto, porque os mortos não podem reclamar, comprovado está que não falam. Certeza de que serei — ele fez milhares de autópsias e as executa com frieza, automaticamente — um objeto qualquer, ele vai me cortar como se estivesse abrindo a boca de um saco de carvão, uma lata de sardinhas, uma lata de comida de gato, jamais como uma latinha de precioso caviar. Não importa que esteja frio ou faça calor, ou que moscas voem ao redor, pousando sobre meu corpo impotente, quem sabe me fazendo cócegas. Nenhuma preocupação com a higiene ou a assepsia. Não poderei mais ser contaminado, não estarei sujeito a infecções. Parece que a morte traz imunidade, o cadáver fica isento de perigos corriqueiros em hospitais.

 

Pode ser que o legista trabalhe com música, tomara que goste de Brahms, não vou suportar o rock vulgar, barulhento, odioso, rotineiro em nossas cidades, em qualquer lugar, em todos os lugares, nos bares, supermercados, restaurantes, salas de espera, elevadores, garagens, lojas, igrejas (bem, não sei, há tanto tempo não entro e uma, apesar dos cinemas todos estarem se transformando em igrejas. São boas essas novas religiões, minha cara?). Não podemos mais fugir do som, ele está à nossa volta, incessante, qual peste negra, grudando-se em nossa pele, invadindo as cabeças.

 

O legista estará fumando, enquanto corta. É impossível que não o faça, o cheiro da fumaça é um modo de desviar o nauseabundo odor de um cadáver. Não é improvável que tendo as duas mãos ocupadas, o cigarro ou o charuto, ou a cigarrilha, fique o tempo inteiro na boca, sem que ele possa bater as cinzas. Assim, é cem por cento provável que a cinza caia dentro mim, sobre meus pulmões, cubra meu coração rígido, inutilizado. De que adianta um coração que não bate mais?

 

Tenho pavor que seja um velho médico pachola, funcionário público em vias de se aposentar, com alguns dentes podres e que, ao trabalhar de boca aberta, babe dentro de mim. Mesmo morto, posso vomitar, não suporto baba viscosa. Ou que, ao tossir, injete perdigotos nos meus pulmões abertos. Logo eu que me cuido tanto! Penso nesse homem serrando minhas costelas, arrancando meu estômago, abrindo, verificando o que comi. Por isso quero ter uma última refeição decente, boa. Devo estudar o que pode ser agradável ao paladar e tenha bom aspecto, quando os ácidos da digestão atuarem. Para que ninguém tenha nojo. Para que me admirem como um gourmet, apreciador do melhor.

 

Vão me extirpar o pâncreas, a vesícula, pedaços do intestino, os rins, examinar o fígado. Será possível, antes de morrer, ir ao banheiro esvaziar meus intestinos? Como evitar que a minha autopsia seja envolvida pelo cheiro pestilento da carne putrefata, fezes envelhecidas, gases e tudo o que está num corpo em decomposição? Recuso-me a morrer, enquanto a ciência não encontrar meios de me proteger desse repugnante pós-final. Não quero participar dessa cerimônia horrenda e sem sentido, caso morra em circunstâncias suspeitas. Vou pesquisar, saber se é possível deixar um documento pedindo: mesmo que as circunstâncias sejam suspeitas, deixem correr. É excitante morrer no mistério insolúvel, participar de um caso não esclarecido. Assim, vou estar sempre lembrado, presente, citado. Nunca morto definitivamente, um mito solidificado. Morrer naturalmente nunca trouxe glória pra ninguém, é passagem rápida para o esquecimento.

 

Ao pensar na autópsia, fico a supor o que farão com o que retirarem de dentro de mim. Tudo será recolocado, junto com serragem, como ouvir dizer? Ou guardam em vidros, dentro de formol? E se algum dia alguém, por descuido, ou sacanagem — porque existe muita corrupção nos hospitais, estão sempre comprando corações, fígados, rins, órgãos para transplante, vendem crianças, há contrabando de córneas — e se alguém apanha aqueles vidros e vende a um desses caminhões que percorrem o Brasil, com exposições pseudo-científicas de anormalidades em parques e pavilhões? Até perdi o fôlego.

 

Ou após os exames e análises serei colocado em um saco plástico, desses de lixo, e jogado, dado aos cachorros, abandonado em terrenos baldios, vendido aos quilos em circos para alimentar as feras? Outro dia, li que no quintal de uma casa próxima a um hospital foram encontrados dezenas de corações humanos, atirados fora sem mais nem menos.

 

Se recolocam tudo em meu corpo, não ajustarão cada coisa em seu lugar, devem imaginar que não há necessidade. Farão suturas, me enviarão ao túmulo. As suturas serão bem feitas ou costuras apressadas, com agulhas para se fechar sacos de feijão ou soja? Nada de grande cuidados com o pobre defunto vilipendiado. Não exijo cirurgias plásticas, mas tenham a bondade de me fechar com atenção, reconstituindo este corpo que me será necessário no Juízo Final. Não posso comparecer estropiado diante do Senhor, com as costuras arrebentando. Imaginem o bom Senhor me olhando e vendo o coração invertido, os intestinos mal enrolados, a pequena vesícula fora de lugar!

 

Cavaleiro de triste figura, eu, que as pessoas admiram tanto, com tão belo físico, bem cuidado, musculado, massageado, pele tratada com cremes magníficos, perfeito exemplo do metrossexual, eu, logo eu, sendo objeto de escárnio, sarcasmo, galhofa, o próprio Senhor não poupando um riso zombeteiro, como se me censurasse: “não disse sempre que as vaidades humanas eram tolices?” Triste espetáculo no último instante da humanidade, momento que marcará o fim do ciclo do ser humano. Fim.

 

Se existe o Juízo Final, existe uma data para tudo se encerrar, fazer o balanço, avaliar o que se passou, se valeu a pena. E o Senhor — ou quem quer que seja que iniciou tudo isso e se tornou o âncora do show  — decidir se continua ou não com suas velhacas experiências. Ou se tenta um nova, porque esta aqui não está adiantando nada.

 

 

Com todo o meu imenso carinho te beijo

 

 

 

................................

 

 

 

 

 

 

 

(Não assino, quero ver se você adivinha o remetente)

 

 


 

© Ignácio de Loyola Brandão – CARTAS, Iluminuras, 2005

Cigarros – Fotografia de Irving Penn – 1972

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Quarta-feira, 27.08.08

Conto-Carta: Ignácio de Loyola Brandão

 
O homem que precisava de um sonho
 
 
Estimado Arthur,
 
Você que é um incansável estudante da condição urbana tem aqui uma historinha a mais. Não sei para que ou o que vai fazer com ela, mas é fundamental que eu conte, para tirar de dentro de mim, repartir com alguém. Para que são as cartas se não para isso, dividir as coisas. Uma carta como esta, com envelope e selos, com destinatário e remetente, escrita em papel pautado de bloco verdadeiro, é coisa rara, admita. O bloco é o Farol, com aquela figura antiga na capa. Ainda existe. Será a mesma gráfica? Tantas coisas mudaram... Mas, veja a historinha, me responda, adoro ler seus comentários. Além do mais, aí onde está, o que mais pode fazer além de receber e responder cartas para não se isolar do mundo?
 
Estava na confeitaria e vi quando ele se aproximou do balcão. Vestia uma calça surrada e a camiseta estava limpa, mas indicava ter sido lavada e não passada. Tinha o rosto arranhado e os braços estavam lanhados.
 
— Quanto custa um sonho?
— R$ 2,10.
— Caro! E um copo de groselha?
— Groselha?
— Isso. Groselha misturada com água.
— Não vendemos groselha por copo. Só em litro, o xarope.
— Ah! E o recheio do sonho é do quê?
— Doce de leite ou creme de baunilha.
— Pode deixar um sonho por R$ 1,00?
— Não!
— Nem pedindo pelo amor de Deus?
— Nem pelo amor de Deus nem pelo amor dos meus.
— Por quê?
— Tenho de fazer a comanda e colocar o produto e o preço para você pagar no caixa. O patrão confere tudo no final da noite.
— Diz que era sonho de ontem e você deu abatimento.
— Aqui não existem sonhos de ontem.
— Como não?
— A confeitaria é famosa pelos produtos frescos. No fim do dia, recolhem todos os doces, doce estraga fácil, fermenta.
— O que fazem com os doces recolhidos?
— Não sei, vai tudo numa caixa que o patrão leva. Acho que dá para caridade, distribui à noite para os sem teto.
— Sabe onde distribuem?
— Não, não sei dessas coisas. Qual é, ô meu? Olha a fila! Vai comprar?
— Só tenho R$ 1, 00.
— Pede a alguém para completar!
— Não sou mendigo.
— Qualquer um completa, é pouco!
— O senhor já pediu alguma vez?
— Não!
— Não conhece a humilhação pelo olhar. As pessoas parecem ter nojo.
— O senhor exagera.
— Não. Já pedi. Senti. Dói mais do que a fome. Do que a vontade.
— O senhor é orgulhoso!
— Não, sou gente. 
— Para que quer um sonho e um copo de groselha?
— Para minha companheira.
— Onde ela está?
— No hospital. Foi atropelada por um motoqueiro.
— E o senhor? Também foi atropelado?
— Não!
— E esses machucados?
— Apanhei dos motoqueiros. Quando briguei com o motoqueiro que atropelou, pararam cinqüenta motos. Nem quiseram saber, caíram de pau em cima de mim, depois fugiram.
— E sua companheira?
— Está internada e queria comer um sonho, é o que mais gosta. Naquele pronto-socorro do SUS não dão nada, é uma miséria.
 
O vendedor se afastou, chamado por um mulher de avental impecável.
        O homem de rosto lanhado contemplou a vitrine havia bolos de chocolate com cobertura envernizada, tortas mostrando recheios vermelhos, amarelos e brancos, polpudas, sensação de serem macios, desmancharem na boca. A confeitaria era grande e havia mesas nas quais as pessoas tomavam café, comiam sanduíches de pão branco, sem casca, havia pratinhos com minicoxinhas, empadas, croquetes. A mulher de avental branco impecável estava a segui-lo, com olhar desconfiado, mas ele não percebeu.
 
         O que fazer para ter o sonho? Se alguém acabasse, levantasse e deixasse alguma coisa intocada em um daqueles pratinhos, ele teria coragem de apanhar, disfarçando.
 
 Deixariam?
 
         Um homem de terno preto, camisa preta, gravata preta aproximou-se.
 
— Vamos lá, companheiro! Não vem pedir aqui.
— Não estou pedindo! Não pedi nada!
— Veio comprar, não comprou. O que queria?
— Um sonho.
— Por que não levou?
— Meu dinheiro não dá!
— Então, quando der, volta.
— Preciso do sonho hoje.
— O sonho pode ficar para amanhã.
— Nem sempre! Sonhos precisam ser realizados na hora.
— Cai fora.
 
O vendedor que atendera o homem lanhado no balcão se aproximou. Fez um sinal para o segurança se afastar.
 
— Tenho uma idéia. A casa fecha às oito. O senhor fica por aí, faltam duas horas. Antes das oito, volta, fico de olho nos sonhos, se sobrar algum o senhor leva. Sempre sobra, deixa comigo! 
— Valeu! Obrigado.
 
   Saiu, escritórios despejavam secretárias e funcionários, pontos de ônibus se enchiam, passavam minivans com os cobradores gritando os destinos, bares se enchiam para a happy hour, cervejas abertas, chopes com colarinhos, cheiro de lingüiça calabresa com cebola, os caça-níqueis se viam rodeados por homens barulhentos. 
 
Quarenta minutos depois, ele voltou, restavam seis sonhos na vitrine. Andou mais um pouco, estava inquieto, entrou em um supermercado para se distrair olhando pessoas comprando, observando o que havia nas gôndolas. Às sete e meia os sonhos eram três.
 
         “Fique calmo”, disse o funcionário que o atendera, “sempre sobra. Estamos começando a fechar, volte em meia-hora”.
 
           Ele entrou em uma locadora de filmes, havia tantos que gostaria de assistir, um dia compraria um vídeo para ver  O Pagador de Promessas. Voltou correndo, com medo da padaria fechar, olhou para a vitrine restava um sonho, o funcionário que o atendera fez um sinal e mandou-o encaminhar para o balcão. Ao chegar, havia duas senhoras à frente dele. Uma levou dois pãezinhos de leite. A outra apontou o prato e pediu: “Me dê aquele sonho. Todos os dias preciso de um sonho quando a noite começa”.
 
 
 
 
 
 
© Ignácio de Loyola Brandão - Cartas, Iluminuras, 2004 
Foto de Mauro Holanda
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Sábado, 23.08.08

(bip) José Mário Silva (bip)

 Atendedor de chamadas

 

(bip) Olá Alfredo, não sei se te lembras de mim, sou a Teresa, aquela miúda avantajada com quem tu gozavas, no terceiro ano de Medicina. Estudávamos juntos em casa do Rodrigo, lembras-te, rodeados pelos calhamaços de Anatomia, eu a ouvir os The Cure e a curtir uma depressão, vocês a beber gin e a fumar ganzas. A verdade é que já não nos vemos há uns anitos e entretanto deixei de ser miúda, embora continue avantajada. Hmmmm, por que é que estou a falar disto? Desculpa, Alfredo, acho que não me sinto à vontade a falar para uma máquina, acabo por nunca dizer as coisas como queria, baralham-se-me as ideias, sabes como é. Conseguir o teu número foi uma odisseia porque não vens na lista, meu safado, mas isso agora não interessa. A razão do meu telefonema é muito simples: queria convidar-te para um jantar dos antigos colegas de faculdade. E adivinha lá quem é a organizadora de tão distinto evento? Acertaste, that’s me, imagina só, a gaja que abandonou o curso no quarto ano para se dedicar à pintura, a degenerada, a ovelha negra. Resumindo, se puderes estar presente, dia 20, às oito da noite, num restaurante do Bairro Alto a confirmar, diz-me qualquer coisa. Espero que o meu número ainda conste da tua agenda. E se me puderes arranjar os contactos de alguma malta, era óptimo. Que é feito do Rodrigo, o maluquinho dos carros? E a Magda, a nossa menina de ouro, a nossa promessa, já estará perto do Nobel? E a Ana Maria? Sempre casaste com ela? Tiveram filhos? Diz-me qualquer coisa. (bip)

 

 

(bip) Alô big boy, daqui fala o Rodrigo. Ouvi dizer que estavas de férias em parte incerta, sem telemóveis e sem morada, longe do mundo civilizado. Só espero é que tenhas escolhido um sítio porreiro, tipo cabana debaixo das palmeiras no Havaii ou um iglo redondinho no pólo Norte. Desde que haja uma rapariga com flores ao pescoço por perto, ou uma esquimó insaciável, estás no Paraíso. Olha, quando chegares apita. Com sorte, ainda te levo a passear na minha nova máquina, um BMW descapotável que é uma bomba que até faz impressão. Esta semana vou fazer a rodagem do bicho para Espanha, a ver se impressiono nuestras hermanas com o fulgor do turbo. Mas depois volto, está descansado. Há muito álcool na tua casa, muita conversa para pôr em dia, muito jogo do Benfica na SportTV. Até breve, um abração. (bip)

 

(bip) Alfredo Manuel, fala a tua mãe. Tu só sabes é apoquentar-me, é o que é. Então havia alguma necessidade de desapareceres assim, de um momento para o outro, sem dizer água vai? Só me dás arrelias, filho. Lá na clínica, disseram que foste de férias. Pois, pois, foste de férias e não me disseste nada. Tanto podes estar no Tibete como nas Ilhas Maurícias, a morrer de sede no deserto ou de fome numa prisão turca. Um dia ainda me matas, é o que é, com as ralações. Sim, que o meu coração anda fraquito, com sopros e coisas dessas, mas tu, que és médico, nem te dás ao trabalho de telefonar-me a perguntar como estou. Andei eu a criar um filho para isto. Ai Alfredo Manuel, Alfredo Manuel, quando é que ganhas juízo? Beijos da mamã. (bip)

 

(bip) Olá querido, fala a Cristina. É só para dizer que adorei, adorei, adorei. Foi tudo perfeito. A viagem, as montanhas, a pousada, a manhã de domingo, a compota de morango no pão quente, os miminhos, os abraços, as palavras, tudo, tudo, tudo. Só não percebo porque não estás em casa há três dias. E porque não disseste nada desde o regresso a Lisboa. Acho que precisamos de beber um café e reflectir um pouco sobre a nossa relação. (silêncio). Isto é, se na realidade tivermos uma relação. Liga-me, por favor. Muitos beijos da tartaruguinha. (bip)

 

(bip) Alfredo, sou eu, a Ana Maria. Falei há pouco com a tua mãe, que também não sabe por onde tu andas. Afinal, o que é que se passa contigo? Na semana passada parecia tudo em ordem e agora está tudo de pantanas. Ou muito me engano ou deu-te outro amock, outra pancada na cabeça, e fugiste para Marrocos, à procura do sentido da vida nos cumes do Atlas. Se assim foi, espero que faças bom proveito da tua loucura e que voltes depressa. Daqui a pouco, só falta a polícia procurar por ti. Aliás, já que vem a talhe de foice, chegaste a pagar aquelas multas de quando andaste com o meu carro, a fazer as mudanças para o novo apartamento? E a miúda, a que dias é que vens buscá-la, afinal? É a tua filha, lembras-te? Como a tua mãe costuma dizer, e olha que nunca pensei dar-lhe razão, tu não tens remédio, Alfredo. Vê se te dignas a aparecer, ok? (bip)

 

(bip) Senhor doutor Alfredo Barros, é o seu contabilista. É só para dizer que surgiram umas dúvidas em relação às suas contas de Fevereiro, nomeadamente no que concerne às facturas de táxi e de refeições. Lembro também que está na altura de passar o cheque do IVA e de pagar mais uma prestação da dívida à Segurança Social. Fico a aguardar uma resposta da sua parte, espero que tão rápida quanto possível. Com licença. (bip)

 

(bip) Alô big boy, é Rodrigo quien habla. Estou a ligar de Valência. A Espanha é um espanto, meu amigo. E as espanholas nem se fala. Digo-te uma coisa: se tivesse que pagar por todos os pecados que cometi nestes últimos dias e nestas últimas noites (sobretudo nas noites), já era meu o lugar mais quentinho do inferno. Isto é que é vida, amiguito. Liberdade absoluta, uma estrada pela frente, dinheiro no bolso. É o Easy Rider em versão de luxo e só para um gajo, estás a ver? Olha, tenho que desligar. Estou num motel com uma pantera a precisar de festas, compreendes. Amanhã sigo para os Pirenéus. Talvez telefone quando chegar a Paris. Tchauzesku até Brejnev. (bip)

 

(bip) Alfredo, é a Cristina outra vez. Assim não dá, Alfredo. Não pode ser assim. Sempre que passamos um fim-de-semana juntos, foges de mim logo a seguir. Da outra vez compreendi, ainda estavas muito fragilizado com a separação, essas coisas todas. Mas desta vez não compreendo. Posso parecer forte e decidida, mas também tenho as minhas fraquezas, as minhas crises de auto-estima. E assim não pode ser. Já fui abandonada demasiadas vezes e não quero entrar noutra espiral de sofrimento, entendes, não quero. Pensa nisto tudo e fala comigo. Depressa, está bem? Um beijo. (bip)

 

(bip) Eh, Alfredo, lembras-te do Joaquim Veloso, o especialista-mor em traqueotomias? Sou eu, rapaz. Estás por cá? Gostava de falar contigo e de saber como é que montaste uma clínica tão próspera em tão pouco tempo. Sabes quem é que me deu o teu contacto? Nem vais acreditar: foi a Teresa, aquela maluca gordinha que abandonou o curso e foi para Belas Artes. Lembras-te? Ela está a organizar uma jantarada com a malta e não pára de falar em ti. Sabes que mais, encontrei-a no cocktail de uma exposição com quadros dela, na galeria Vértice Negro. A série intitula-se Obsessão e é composta por uns trinta e tal retratos de um mesmo homem, pintados em vários estilos: hiperrealista, abstracto, pontilhista, à la Warhol, cubista. Uma coisa muito pós-moderna. E olha, posso estar enganado, mas o homem é a tua cara chapada. Se não nos virmos antes, até dia 20. Um abraço. (bip)

 

(bip) Alfredo, nunca estás quando as coisas se tornam difíceis, não é? Só queria avisar que a menina está com sarampo e pergunta de três em três minutos pelo pai. Fala a Ana Maria, claro, para o caso de já teres esquecido a minha voz. (bip)

 

(bip) Está lá? Está lá? Não estás mesmo em casa, Alfredo? É a Magda. Preciso muito de falar contigo. O Rodrigo morreu. E eu acho que fiz um grande disparate. (Choro convulsivo). Porquê? (bip) 

 

(bip) Olha, Alfredo, daqui é o Joaquim, quatro da tarde, dia 21. Nem tenho palavras. Costumavas dizer que o destino é o mais irónico e cruel dos juízes. Tinhas razão. Em vez do jantar de reencontro, o velório do Rodrigo, estupidamente morto numa curva perto de Bordéus. E tu, o melhor amigo, ausente. Depois, a Magda internada de urgência, com duas caixas de comprimidos no estômago e uma carta em cima da cama, explicando a paixão antiga pelo colega de curso. Parece que aconteceu tudo de uma vez. O Rodrigo metido num caixão; a Magda no hospital, a soro. E até o desaparecimento da Teresa, hoje de manhã. Ela não disse nada a ninguém, limitou-se a partir sem deixar rasto. Mas sabes, eu era capaz de apostar que foi à tua procura. Até sempre. (bip) 

 

 

 

 


 

© José Mário Silva - Efeito Borboleta e outras histórias, edições ardotempo, 2010

Salvador Dali - Telefone-Lagosta - Objeto escultórico, 1936

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Domingo, 17.08.08

8h46 - Conto de José Mário Silva

8h46

 

 

Enquanto espera pela hora da reunião, sentado numa cadeira Barcelona, Jonathan K. imagina a mão de Mies van der Rohe a desenhar com minúcia, há precisamente 74 anos, aquele prodígio de design. Tocando muito ao de leve no couro negro, pensa: "Isto sim é uma cadeira, não apenas um assento para corpos demasiado humanos."

 

A reunião, marcada para as oito e meia, vai começar mais tarde. O CEO comeu qualquer coisa esquisita ontem à noite (certamente um dos malditos hors d'oeuvre com que as galerias de Manhattan envenenam os seus clientes) e será substituído por um dos quadros superiores da empresa, infelizmente ainda a caminho, algures no trânsito caótico de Upper East Side. O encontro só começará por volta das nove horas, diz-lhe a secretária, sorridente. "OK", responde Jonathan, "eu espero". Um café? "Sim, obrigado, mas sem açúcar."

 

Na parede de tons claros, uma imitação tosca de Salvador Dali. Elefantes de patas gigantescas caminhando por entre os arranha-céus, uma mulher nua feita de gavetas, o silêncio espectral do deserto insinuando-se atrás da cidade de vidro. O quadro é horrível. Jonathan K. sente uma veia a pulsar no pescoço. "O que raio estou eu a fazer aqui?" Atrás de uma porta transparente, a secretária fala ao telefone e faz-lhe um sinal. Não se esqueceu do café. Continua a sorrir muito.

 

Jonathan revê mentalmente a sua vida nos últimos quatro meses. A queda na piscina do hotel de Miami. O som da cabeça a bater numa aresta de cimento. O túnel de luz (igualzinho ao do quadro de Hieronymus Bosch). A sala dos cuidados intensivos, vista do tecto, fora do corpo. As duas semanas em coma. O acordar violento, como quem regressa ao princípio de tudo. A demorada reaprendizagem dos gestos. A epifania daquela manhã de sábado em que decidiu, com a convicção dos profetas, emendar os muitos erros da sua existência.

 

A outra vida, a vida anterior, está envolta numa espécie de nevoeiro. Já quase não se lembra dos anos passados em África. O negócio das armas, o tráfico de influências, os muitos mortos que as suas decisões, os seus lucros, engendraram. A fortuna manchada de sangue vai sendo repartida por fundações, ONG's, empresas solidárias, causas filantrópicas. Foi também por isso que veio esta manhã até ao 53.º andar da Torre Norte do World Trade Center. "Serei algum dia capaz de salvar a minha alma?", pergunta-se.

 

A secretária sorridente traz-lhe o café. Jonathan K. bebe-o junto à janela. No Patek Philippe, os ponteiros marcam 8h46. Pelo seu rosto passa, súbita e absurda, a sombra de um avião.

 

 

© José Mário Silva - Efeito Borboleta, Oficina do Livro, 2008

Fotografia de Mário Castello, 2008

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Quarta-feira, 16.07.08

Os dois


 

 

Os Dois

 

 

Não havia espelho. Os dois estavam parecidos e tinham o mesmo nome. Cláudio. Um era 25 anos mais velho que o outro, um pai e um filho. Um Cláudio e outro Cláudio. Eram pessoas simples e indiscutivelmente anônimas. Jamais tiveram seus nomes publicados em jornais ou citados na TV. Amigos sempre foram e já não eram jovens. Estavam solitários e isso doía, pois tinham sido, ao longo de cada uma de suas vidas, sociáveis, expansivos, generosos além do que o bom senso lhes recomendara, e souberam assim agregar vários grupos, em diferentes momentos e locais.
 
O tempo, no entanto, passara para os dois, com velocidade. Hoje, ninguém mais os procurava, pessoalmente ou por telefone. De internet, eram analfabetos. Dos numerosos antigos amigos do mais velho, a maioria capitulara e já estava enterrada ou pragmaticamente incinerada na fornalha, novidade cosmopolita reinventada para livrar os parentes, instantaneamente, da inconveniência de corpos imobilizados; cotidianamente ele constatara isso, silenciosamente alarmado, no necrológio dos periódicos. Para o menos velho as razões tinham sido outras, mudanças de cidades e de empregos, mas a solidão resultara a mesma.
 
O tempo passara para ambos com seus reflexos especulares. Cada um perdera um pouco da respectiva saúde e a maior parte dos cabelos. O mais velho cuidava-se muito ainda, com uma quantidade considerável de remédios, enquanto o mais jovem negligenciava metodicamente os cuidados mais elementares, evitando remédios e médicos, como fizera sempre.  Essa era uma diferença nas atitudes. Tornavam-se idosos a cada minuto que passava e, talvez em razão disso, assemelhavam-se pouco a pouco na aparência, uma vez que os velhos, à maneira dos peixes, tendem a ficar mais parecidos com o passar do tempo.
 
Os humores eram um tanto diversos, um permanecia sorridente, ainda bem humorado, sem recorrer à armadilha da ironia, que abandonara a bom tempo, no distanciado período da juventude por ter constatado o efeito sulfúrico de seu veneno sobre as afeições duradouras, e especialmente para as então recentes relações, ainda superficiais e frágeis. O outro, cada vez mais silencioso, concentrado e sério como sempre fora, tornara-se aos poucos mais exigente, fazendo-se algo intolerante e um pouco ranzinza.
 
Ambos tinham-se fechado para o mundo que os agredira e conservavam secretamente em algum ponto misterioso de seus cérebros ou de suas costelas as justificativas consideradas convincentes para suas condutas.
 
O mais velho desejava, sem segredos, viver o mais longo período de tempo possível, apreciaria tornar-se centenário e ultrapassar o recorde. O outro tinha inúmeras dúvidas sobre um desejo (ou um ardil) desses, pois testemunhara na velhice estendida uma fórmula incorrigível de colecionar ausências: todo tipo de carências, de desafeições, de abandonos, de tristezas e desconfortos. Dessa maneira tinha refletido profundamente sobre a condição destinada ao seu papel no decorrer dessa história, na contribuição que deixara para si, para os outros, para os dois, talvez, e no seu não revelado desejo de sair logo da cena, enquanto ainda estava bem de saúde e não se tinha encanecido demasiadamente.
 
Considerava que perdera o fio da vida com sentido, num impreciso instante e que dali mergulhara vertiginosamente rumo ao inferno.
 
Alguém o acusara certa feita, com crueza, de sentir-se vitimado pela vida. Ora, a vida não vitima ninguém, ela produz intensidades e resulta até na felicidade, num caso extremado de sintonia, de um amor correspondido. O que vitima alguém são os outros, são as doenças, são os acidentes, são as crueldades planejadas e realizadas, são as malícias, são os sistemas, são as falhas inevitáveis dos sistemas e a falta de dinheiro.
 
Não havia espelho. Eles não se compreendiam. Os dois seguiam agora os caminhos e os relógios ritmados de suas pequenas vidas, cada um esperando pelo desfecho imaginado de seus próprios destinos.
 
 
 
 
 
© Alfredo Aquino - do livro A Fenda, Iluminuras - 2007 
publicado por ardotempo às 12:52 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Segunda-feira, 14.07.08

Conto-Carta, de Ignácio de Loyola Brandão

Na porta do cinema
 
  
Cara Amália,
 
O que você me pediu para contar foi simples. Aconteceu com Emílio, aquele que detestava o nome, mas o cartório se recusou a mudar. Tudo se passou assim: 
 
Aproximava-se da porteira do cinema.
 
— Ela chegou?
— Quem?
— Minha namorada.
— Como vou saber quem é?
— Verdade, você não a conhece. Devem entrar aqui centenas de pessoas.
—  Por dia? Milhares, principalmente num filme como esse! Não sei o que viram nele.
— História de amor. Todo mundo gosta.
— Amor! Como se alguém acreditasse no amor.
— Eu acredito. Por isso estou aqui, à espera de minha namorada.
— Há meses você vem todos os dias. Meses!
          
Ficou por ali, com o rabo do olho na entrada do cinema. Terminou a primeira sessão, nada. A segunda, tudo igual. Antes da terceira – porque eram sessões corridas, normais, sempre que havia um filme de sucesso – houve uma troca de porteiros. Chegou o sujeito carrancudo que sempre desconfiava dele e, um dia, tinha chegado a chamar o segurança para expulsá-lo. O porteiro acenou:
 
— Continua à espera?
— Sempre!
— Não entendo, juro que não entendo.
— Porque nunca amou.
— Quem disse?
— Veja a sua cara! Amarrada, amargurada, tem o olhar triste e fundo. Cadê a alegria de quem ama?
— Gosto muito.
— Gostar não é amar.
— Achei que era a mesma coisa.
— Amar é tudo.
— E gostar?
— Gostar é gostar. Amar é amar. Gostar quer dizer trinta por cento do sentimento. Amar é cem por cento.
— Você é estranho. Diz coisas complicadas.
— Amar é simples.
— Fico te olhando, você vem todos os dias, à espera  dessa namorada  que nunca aparece.
— Vai aparecer.
— Por que não liga para ela?
— Não tenho o número!
— Namora e não tem o número?
— Não namoro ainda. Vou namorar.
— O que?
— Vou namorar. O dia em que ela chegar e entrar por essa porta, vou saber que é ela.
— Como? Como é que se sabe? 
— Sabendo. É olhar e sentir. O coração acelera, a gente começa a suar, o estômago sobe para a garganta, a respiração fica ofegante, as pernas ficam bambas, as unhas tremem.
—  As unhas tremem?
— É a melhor coisa. Tão bom viver assim. Você sente desaparecer.
— Desaparecer?
— Some. E quando percebe, você é outro. Está naquele que ama. Inteiro dentro, uma coisa só. Daquele momento em diante, dois viram um. Tornam-se uma só pessoa em tudo.
— Sei, sei …
 
Nesse momento, ele se afastou para deixar entrar uma jovem morena, de olhos miúdos e um riso que se esparramava pelo rosto e começou a suar. Os dois se olharam e ele percebeu que após meses e meses tinha acontecido. O coração acelerou. A espera tinha terminado. As unhas tremeram. Ela continuou olhando e também sentiu. O estômago subiu à garganta. E o porteiro ficou assombrado, quando em lugar de duas pessoas, viu entrar apenas uma no cinema. Onde estava a outra? A pessoa que entrou piscou maliciosamente para ele. “Entendeu?”, perguntou. O porteiro fez que sim…"
 
 
Beijos do
 
Luiz Ernesto
 
 
© Ignácio de Loyola Brandão - Cartas, Iluminuras - 2005 
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Sábado, 28.06.08

Fantasmas

Conversa de fantasmas no museu

 


 

Na penumbra noturna do museu de Nova York, apenas as luzes pontuais de segurança testemunham o encontro das duas fantasmagorias. Silenciosamente alheias ao anterior rumor diurno dos sussurros e ao, agora inexistente ecoar dos passos estalados pelos saltos de sapatos dos visitantes nas salas expositivas, antes generosamente iluminadas e apinhadas de gente. No momento existe apenas o silêncio dos túmulos e o frescor da climatização do ambiente controlado. 

 

No cenário sombrio estão frente a frente, a escultura articulada em dobraduras metálicas, superfícies anguladas, refletindo em chapa nua de aço a pouca luminosidade, ocultando sombras profundas, sem nenhuma camada de pintura; e a pintura de grande formato, povoada de inscrições em dialetos urbanos, intensa estética da figuração das ruas dos guetos, em óleo de excelente qualidade de fatura sobre o tecido espesso da tela.
 
Frente a frente, igualmente, os fantasmas de L. e de B.
 
Uma reunião no não-tempo dos dois artistas de gerações, pensamentos e continentes diversos, que nunca tinham se encontrado antes.
 
Os dois fantasmas flutuam serenamente nas cercanias de suas obras de arte, gravitando em torno delas num balé sem música, enquanto se encaram com o tédio conformado da eternidade.
 
Sou L., venho do Brasil, morei durante algum tempo em Paris, morri em 1988, como talvez você até saiba. Sei também quem é você, o famoso pintor B., que morreu tão jovem, acidentalmente, em 88. Lamento muito”. L. apresenta-se com segurança.
 
L. falecera no Rio aos 68 anos, tinha sido uma artista significativa e corajosa junto aos movimentos artísticos da segunda metade do século 20 e suas propostas estimulantes estavam tendo reconhecimento nos grandes centros culturais contemporâneos de todo o mundo. Daí a presença de suas obras em vários museus e em certames nos pontos mais variados do planeta. 
 
L. que não fora de viajar muito, agora como fantasmagoria célebre estava indo a 
vários locais distantes. Chegara recentemente de Santiago do Chile, onde gostara bastante de um museu recém-inaugurado e de conversar com outros fantasmas de artistas que por lá circulavam.
 
É, foi bem lastimável mesmo. Naquela época tudo estava dando certo para mim. Foi chato, eu tinha muito o que fazer ainda e virar fantasma assim, tão rapidamente, não estava nos meus planos naquele instante.” responde B. com melancolia.
 
B. morrera de overdose de drogas com apenas 27 anos em 1988, em Nova York, no início de um estrelato fulgurante com a sua pintura, muito original, alegre, povoada de ícones e de textos, garatujas e graffitis, de construção dita “jazzística”, segundo os críticos mais entusiasmados. Tornara-se assim imediatamente um herói negativo, um daqueles que perderam algo, impedidos instantaneamente de realizar todo o seu potencial, mas que permanecem mitos. Idolatrados, como o guitarrista negro e o ator branco, também mortos prematuramente. 
 
B. tornara-se um fantasma mas não se percebera direito nessa nova condição.
 
Tentara em vão interferir no universo dos vivos e aos poucos entendera que podia circular livremente por onde estava a sua obra e até mesmo conversar com outros fantasmas que encontrasse vagando por ali, no espaço virtual, mas nunca poderia ser visto ou comunicar-se com o espaço da natureza tangível. 
 
Porque você ainda fazia a pintura?” dispara L. em sua voz de fumaça, curiosa.
 
Porque você já não pintava ou nem fazia mais as suas esculturas, tia?” retruca B., irônico e provocativo, da aristocracia de sua juventude truncada.
 
Eu já tinha superado a vaidade e o hedonismo, queria fazer com que todos se sentissem artistas, intensos, vivos, participativos… eu passei a ser uma não-artista, estava mais ocupada com outros conceitos, muito mais complexos.” responde L. na defensiva, atacando, na sua linguagem universal, um pouco em espanhol e um tanto mais em francês, algo um pouco estranho para uma mineira tão carioca.
 
B. que tinha sido nova-iorquino, era descendente de haitiano e portoriquenha, entendia bem o francês do pai e falava fluentemente o espanhol materno. Eram as suas línguas nas ruas juntamente com o inglês da grande metrópole.
 
Pode ser, tia… mas é paradoxal, nem todos são artistas, como nem todos podem ser médicos, ou dentistas ou até mesmo policiais, você não teria gostado, viva, de ser atendida por um não-médico, por um não-dentista num caso agudo, numa emergência…não é verdade?... Além disso, nos locais por onde circulo agora, que são os museus e as exposições onde estão as minhas pinturas, tenho encontrado de vez em quando, os seus trabalhos. Muito bons os seus Bichos, e percebo que as pessoas, que não são artistas, se surpreendem, gostam bastante e comentam isso entre si… em Berlim, em Paris, em Barcelona, aqui em Nova York …e ninguém fala que você é uma não-artista, falam que a obra é muito boa, elogiam muito…” completa B., suavemente.
 
Paradoxo é fazer pintura, quando se sabe que  a pintura já estava morta e enterrada há tanto tempo…, e não me chame mais de tia! Aliás, você saiu do jogo cedo demais, no mesmo ano que eu, mas sem viver a vida, integralmente…” responde L., com certa aspereza. 
 
Ahhh, tia… foi um brutal erro de cálculo! Mas os que compraram a minha pintura acertaram direitinho nos seus próprios cálculos, confiaram nos seus narizes…e resultaram satisfeitos e muito ricos”, diverte-se B. soltando uma gargalhada fantasmagórica. “Agora, paradoxo mesmo é dizer que a pintura e a Arte estão mortas, e testemunhar os museus cada vez mais cheios de gente interessada, aqui e em todos os lados dos oceanos…” completa B. ainda rindo de maneira sobrenatural.
 
Minino…!” escapa com algum sotaque mineiro a expressão da fantasmagoria internacional, “…nem todos puderam entender completamente o que fiz na continuidade, uma forma artística de expressão etérea, muito original, criada pelos sentidos dos próprios participantes, com as suas presenças, com o seu tato, com a percepção das texturas diversificadas, das temperaturas cambiantes dos objetos e dos ambientes, tudo aquilo que não se percebe habitualmente…isso também deve ser encarado como Arte”,  sentia-se uma certa inconformidade nas palavras exaltadas da fantasma.
 
Veja que as bienais de arte mais avançada em todo o mundo e as escolas de arte contemporânea nos melhores centros, acabaram com tudo isso, nesses lugares não existe mais a pintura, o desenho, a gravura e a escultura convencionais, ensinam-se e discutem-se outras coisas, tudo muito mais próximo ao jeito que eu fazia…não será esse um novo caminho, uma nova luz?” continua L. com severidade nos argumentos de sua esgrima. 
 
Pode ser, tia…pode ser, mas o que vejo concretamente é o interesse e o entusiasmo com que todos manipulam as suas esculturas, os Bichos, que se fazem tão bonitos quando essas pessoas redescobrem neles novas formas nos desdobramentos e nos planos que vão mudando pelos gestos, nas trocas das luzes e das sombras… a gente pode dizer que são esculturas, não é mesmo…?” comenta sorridente o fantasma mais jovem.
 
…e ainda existe o público, o grande público fora da academias, fora das escolas oficiais de arte, o que anda pelas ruas, o que constrói a cultura real nas cidades, o que coloca os objetos de arte nas suas casas e nos locais de convívio, o que viaja para ir aos museus, o público que verdadeiramente são todos eles, os que vêem, os que lêem, os que ainda se divertem, se emocionam e pensam sobre o que fazemos… ou melhor, fazíamos…” completa B. com algum sarcasmo.
 
O fantasma de L. fixa um olhar gelado e inquisidor sobre o fantasma de B.
 
Ficava dificil contestar quando se está frente a tantas afirmativas comprovadas, e ela era uma fantasmagoria sensível aos comentários também positivos e genuinamente surpreendidos do público acerca a pintura vigorosa de B. Ela não podia negar ou menosprezar isso. 
O público, aparentemente, gostava do que via, ela sabia que todos os dias vinha cada vez mais gente observar o seu próprio trabalho e também aquela pintura esquisita mas bem interessante, que ela julgava extemporânea, mas que reunia tanta gente à sua frente, durante alongados períodos de tempo. Vinha gente de todos os cantos do mundo, de todas as raças e etnias, interessados, que ficavam analisando o trabalho de ambos. Ora o de um, ora o do outro, com muita atenção. Acontecia invariavelmente assim, todos os dias.
 
L. continuava a considerar tudo aquilo um estranhamento e um paradoxo.
 
Pelo outro lado, o fantasma está pairando por ali bem mais leve, percebe-se até um sorriso sutil na fumaça azulada de B.
 
As duas névoas esvanescentes ficam se olhando através de suas próprias obras, agora em silêncio absoluto. Dentro de umas poucas horas, o museu estará novamente aberto, repleto de gente, algum alarido às vezes estridente de vozes, muitos sussurros e a paradoxal perpetuidade da presença daqueles dois artistas, consagrados pelo reconhecimento internacional, tangibilizada nas obras impecavelmente expostas e descritas com informações minuciosas nas etiquetas museográficas.

   


 

 

© Alfredo Aquino - Publicado pela revista GETULIO, São Paulo

publicado por ardotempo às 01:04 | Comentar | Ler Comentários (2) | Adicionar
Quinta-feira, 26.06.08

O Efeito Borboleta

Um conto de José Mário Silva

 

CAMA

 

Ela dormia sempre no lado direito da cama

e ele dormia sempre no lado esquerdo.

Ela tinha sonhos agradáveis. Ele, pesadelos.

Decidiram trocar.

Agora ela dorme sempre no lado esquerdo da cama

e ele dorme sempre no lado direito.

De manhã, não se lembram de nada.

 

 


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publicado por ardotempo às 13:29 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Sábado, 07.06.08

Conto-carta de IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO

 

O ônibus da madrugada

 


    Glorinha, amiga do coração,

    Sei, percebi tudo ontem, ficou claro e este bilhete é o da minha libertação...

    ... descobri à  medida que o ônibus avançava pela Marginal do Tietê e o cansaço me dominava, o amargo subia, eu me enchia de decepção, perguntando o que estou fazendo aqui? O que estamos todos fazendo?


    ... não, não estou mais dominado pela ambição de vencer na vida, naquele sentido que todos davam ao tema na década de 70 e se avolumou nos 80, com aquela cambada de yuppies...


    ... naquele momento, na madrugada, quatro horas, todos dormiam no ônibus, olhei as ruas desertas, deixei de compreender minha presença


      na cidade... corríamos por entre fábricas, depósitos, galpões, novos,
em construção, velhos, caindo aos pedaços, vidraças rompidas, telhados caídos, ruínas, terrenos estaqueados, empresas de plásticos, tecidos, autopeças, trilhos de trem, roupas, misturadoras de concreto com suas torres vermelhas e centenas de caminhões betoneiras, linha de frente avançada de um exército pronto a atacar, e começaria  pela manhã a levar concreto para mais um prédio, outro, outro, e dezenas centenas...


    ... prédios serão novos apartamentos, milhares, escritórios, milhares, para abrigar gente e gerar emprego a render dinheiro, tudo o que estava à minha volta era para fazer dinheiro, bares, casas, armazéns, lojas, mercadorias empilhadas, vagões de carga prontos a conduzir, empresas de transporte, fachadas de vidros, aço, pastilhas, tijolos, concreto aparente, prédios dominados pelo cinza, cobertos de poeira, limalha de ferro, fumaça que respiro,  sufoca, tudo para fazer dinheiro...


    ... a nossa finalidade é fazer dinheiro, produzir, vencer, possuir, ter, acumular, investir, crescer, evoluir, aumentar o pib, o pob, o pub, a pqp...


    ...ônibus passando por anúncios luminosos, néon e eletrônicos,
out-doors, cartazes, letreiros, faixas, o cansaço era visual, físico...


    ... não, não é a luta que desejo, que busco, todo o sentido da cidade e do mundo reunido nessas quadras, cada tijolo, prego, telha, sacos de cimento e cal, parafuso  a serviço do vencer na vida, pequenas empresas, grandes, indústrias, industriazinhas, telhados, muros, portas, janelas, vitrines, padarias, farmácias, quitandas, bancas de camelô, bancos, em tudo a marca das coisas que eu nego e me sufocam...


    ...não fui feito para isso, não admiti por anos e anos, e minha barriga cresceu, inchou, meus olhos se gastaram, meus ossos doem, nem sei porque estou  contando estas coisas, nem sei porque não fiquei naquele ônibus e me afastei, desci na rodoviária e vim para minha casa, entrei...


    ...entrei, porque há trinta anos abro este portão que vou reformar um dia, há trinta anos coloco a chave na fechadura...


    ...há trinta anos tiro os sapatos na sala, vou para a pia do banheiro, lavo o rosto com água fria, muito fria...


    ...e me deito pensando ...e me deito pensando...
    ...e me deito pensando...
    ...pensando que amanhã vou mudar tudo.
 
    Você ainda acredita em mim?

    Com a profunda amizade do

    Leon

 


 

 

© Ignácio de Loyola Brandão - Cartas, Iluminuras, 2005

Foto de Irving Penn - Embalagem, 1975

publicado por ardotempo às 23:50 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Quinta-feira, 08.05.08

As casas sem flores - A Fenda

                       


As casas sem flores


As casas do mundo, organizadas e comandadas por mulheres, casadas ou não, ao lado de seus companheiros estáveis, com suas amigas, sozinhas por opção pessoal ou de um outro, com ou sem filhos, com netos...isso pouco importa, as casas com mulheres sempre têm flores, vasos de folhagens, trepadeiras, xaxins com avencas, plantas que ligam diretamente os seres dessas casas à natureza e à vida. Homens solitários, ao contrário, moram em  casas sem flores.

Roberto estava solitário e fazia algum tempo.

Béco. Esse tinha sido seu apelido desde o tempo em que jogara futebol na praia e praticara um pouco de surf com um pranchão de madeira no qual ele próprio pintara, em azul turquesa, uns filetes estriados muito finos. Ele sempre tivera namoradas abusadas e notáveis a seu lado, o que o fizera ser notado e suficientemente assediado para sentir-se intensamente feliz, por um breve período de sua vida, sem muitos esforços.

As coisas se transformaram em seguida, depois que terminara a faculdade de Direito.
 
Casara-se (cedo demais), separara-se (cedo demais), tornara a casar-se (cedo demais) e voltara a ficar só, mas aí já era tarde demais. Fôra deixando lentamente de ser Béco, principalmente em suas jornadas cotidianas de trabalho, por causa dos outros e, pouco a pouco durante seus casamentos, por sua própria culpa.
           
Resultara ser apenas Roberto, Dr. Roberto ou Dr. Sobil, o que lhe atribuía mais respeitabilidade, muita severidade, mais velhice, muita chatice e, por fim, como decorrência de tudo isso, uma solidão anunciada e insuportável.

Roberto tentara voltar a ser Béco, mas atrapalhara-se, fôra mal sucedido, sentindo-se ridículo numas roupas novas que comprara, o desconforto espiritual correspondendo com rigor à realidade física. Saiu-se muito mal também em tentativas com algumas moças, daquelas do tipo que sempre apreciara, esguias mas com curvas e volumes delineados a compasso e que, aparentemente, gostaram dele no passado. Mas as moças, que não tinham passado, não eram mais as mesmas, ele tampouco tornaria a ser o Béco de antes, e percebeu de maneira dolorida que era invisível para elas. Aliás, por experiências recentes, tornara-se invisível a todas as mulheres do mundo.
  

Extraído do conto As casa sem flores - © Alfredo Aquino, A Fenda - Iluminuras, 2007

 

publicado por ardotempo às 20:56 | Comentar | Ler Comentários (2) | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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