Misturadas

Expressões Misturadas

 

 

 

Carla Osorio, Sergio GAG e Geri Garcia.

 

Três artistas de trabalhos bastante peculiares e individualizados, três expressões distintas de seus olhares singulares sobre o mundo estético com suas respectivas interpretações.  O que fazem juntos nessa tríplice mostra de individuais a um mesmo período de tempo? Eles nos trazem um conjunto consistente de expressões que merecem e devem ser observados com atenção.

 

Três artistas de vertentes expressionistas e figurativas, de épocas diversas e contemporâneas. É importante salientar a convergência e o diálogo que se estabelece a partir desta comunhão expressionista. Temos aqui em nosso estado uma tradição de valorização dessa estética e desse olhar expressionista e figurativo, basta olhar atentamente para a obra integral de Iberê Camargo e Ruth Schneider, ou para os trabalhos que fizeram Vasco Prado e Xico Stockinger. Ali estão, em todos eles e em muitos outros, claramente identificados os valores que organizam e compreendem este universo bem definido da arte.

 

 

 

E a mistura das propostas de pintura? A arte espontânea e densa de Carla Osorio enseja ligações e referências à pintura de Sérgio GAG? O que autoriza este cão no meio da sala, ao correr das calçadas do confuso e arbitrário meio urbano?  É justamente dessa mistura e desse pouco dissimulado caos que se constrói a linguagem. A arte de Carla Osorio, bem realizada na fatura aprendida com sua mestre pintora Clara Pechansky e, portanto não estamos falando aqui de uma autodidata e sim de uma fina pintora que conhece as técnicas e os materiais desde o convívio sistemático com quem sabe fazer e ensinar; aponta-nos a direção da vertigem do indivíduo aos seus próprios abismos, às intensidades da solidão, às asperezas de suas ansiedades e angústias insolúveis confrontadas com o mundo externo, natural e injusto, desigual e catastrófico, exatamente como se conduzem as construções e os interesses humanos.

 

Um olhar para dentro e um grito, espectral e infinito, tão paradoxal e incomôdo que se tranforma em cor. Os azuis densos e profundos da noite final, os vermelhos vívidos como a lava da erupção incontrolável de um vulcão de emoções contrafeitas, a explosão de sangue dos seres desesperados na fronteira da vida e da morte. 

 

A cada dia, dia após dia. Nada está mais distanciado da obra de Carla Osorio do que a finalidade da decoração inofensiva dos ambientes. A sua densidade é refratária ao frívolo. Ela nos estimula a pensar como se lêssemos um livro, nessas suas histórias da cor valente.

 

Essa dinâmica expressionista dialoga com os gestos precisos e cirúrgicos de Sérgio GAG. Afirmo o cirúrgico no pincel do pintor paulista porque ele o sintetiza em golpes de urgência e já será o suficiente. Não será preciso voltar à tela para retocar ou para corrigir nada. Basta fechar os pontos e aguardar a cicatrização.  Sérgio pinta um cachorro que anda por uma cidade. Essa cidade pode ser São Paulo, Porto Alegre, Rio, Delhi ou o Cairo. Isso não importa. O que importa aqui é o cão e a identidade do cão. Um cão viralata de pêlo curto e eriçado, de muitas cores, pardo, preto, branco, sempre o mesmo cão. Um dia alguém olhando as suas telas na parede de seu bar-bistrô ateliê na Rua Santa Madalena, no bairro do Paraíso em São Paulo, perguntou-lhe se gostava muito de cachorros e se ele tinha algum cão em sua casa. O artista sorriu com simpatia e disse que nunca fora dono de nenhum cão. Apontou uma tela pintada a óleo em que aparece um cachorro com óculos escuros, fumando, sentado num balcão de bar, em frente a um copo e uma garrafa de cerveja e respondeu: “Auto-retrato”.

 

 

 

 

O cachorro curioso e desvalido, que dorme na rua, que observa os prédios, que conversa, boquirroto e enfático, com os outros cães, que admira sua própria imagem no reflexo das poças d’água, esse cão, todos nós conhecemos bastante bem. Esse é o animal universal, o cão cinzento de Arthur Schopenhauer e de Jorge Luis Borges, o cão de Sérgio GAG.

 

Esse cachorro e esses artefatos boêmios de viver pintados por Sérgio GAG estabelecem os fios invisíveis com as figuras trágicas, de vida intensa de Carla Osorio. É necessário passear entre as telas, criar e estabelecer os vínculos possíveis, pois essa é proposta da mostra, essa ação elucidativa e reflexiva de quem as observa, de quem delas tira o melhor proveito e extrai as próprias conclusões. Expressões Misturadas é uma mostra de quem vê, porque a vê pela primeira vez como nem mesmo os próprios artistas a tinham previsto anteriormente, portanto é uma exposição de primeira leitura, de linguagem própria e autônoma.

 

Certa feita estando em Veneza, durante a Bienal, recebi um catálogo e a informação de que na Fondation Maeght, em Saint-Paul de Vence, no sul da França, estava acontecendo uma exposição de Lucian Freud e Francis Bacon. Fui até lá para ver a mostra e no percurso do caminho, imaginei que veria uma clássica mostra temporária, de um lado numa sala expositiva as obras de um dos grandes artistas e noutro salão, o conjunto do outro pintor consagrado. Não foi isso o que deparei: a mostra, audaciosa e surpreendente, misturava impunemente as obras dos dois artistas e criava múltiplas interpretações, estabelecia diálogos visuais, confrontos e desafios. Foi, sem nenhuma dúvida, um experiência instigante, inédita e provocadora. Uma corajosa proposta curatorial que estabelecia um curioso projeto de interpretação triangular entre os dois artistas e o público.

 

 

 

 

Carla Osorio e Sergio GAG, evidentemente são outros artistas que não aqueles consagrados pintores ingleses, monumentos da arte universal, porém são artistas originais e com linguagem própria, locais e brasileiros, amadurecidos em suas reflexões pictóricas, que têm algo essencial a nos dizer e que estabelecem esse rico diálogo visual, fonte potencial e generosa para nossas próprias reflexões.

publicado por ardotempo às 01:28 | Comentar | Adicionar