Artistas são mais importantes que museus
O Caso IANELLI
A polêmica em torno da recusa do MAM-SP em receber 14 obras em doação
Olívio Tavares de Araújo
Disse Goethe que a História deve ser reescrita a cada 20 anos, em virtude do progresso do espírito crítico da humanidade. Exceto pelo excesso de iluminismo da segunda metade da frase - típico da época e do pensamento de Goethe -, a ideia continua verdadeira. A história se reescreve todo o tempo, voluntariamente, por indivíduos e/ou grupos, e/ou acidentalmente, por fatos espontâneos.
Não é de outra natureza o problema surgido com os quadros deixados em testamento pelo pintor Arcangelo Ianelli (1922-2009), que se tornaram notícia em virtude de um quiproquó talvez inédito. Há alguns meses, o Museu de Arte Moderna de São Paulo recusou uma doação de 14. Na direção oposta, o Museu de Arte Brasileira da Faap abriu, há pouco, uma exposição-homenagem para apresentar publicamente a também doação que acolheu. Mas não é o caso de lavrar-se um simples protesto emocional pró-Ianelli e reclamar da "injustiça" cometida - já que alguma houve.
É o caso de refletir sobre um fenômeno importante, que poucas vezes temos a oportunidade de surpreender de maneira tão exemplar. Costuma-se pensar apenas na grande História, cujos golpes mudam o destino de países e povos, decidindo da vida e morte de milhões. Esquecem-se as sub-histórias específicas (a da arte é uma delas), e que todas se fazem no dia a dia, aqui e agora, de grandes atos e/ou miudezas que se imbricam, como o famoso nariz de Cleópatra: se fosse menor - ou maior -, não teriam sido outros os destinos do Império Romano e, provavelmente, de todo o Ocidente?
Nos últimos 30 anos, Ianelli se tornou um dos mais respeitados pintores do Brasil, mestre numa abstração de fundamento geométrico porém expressiva, que nunca se deixou limitar por regras e ortodoxias. Contemporâneo e parente estilístico de Tomie Ohtake, partilhava com ela idêntico prestígio e sucesso de mercado. Fez uma carreira cheia de prêmios e honrarias, estabeleceu bom trânsito internacional (o que acontece com poucos brasileiros) e suas obras estão em museus de Porto Alegre a Toronto, Cidade do México a Roma, Skopje a Kyoto. Não importam os argumentos usados, não nos iludamos.
Sabendo ou não do significado pleno de seu ato, o Museu de Arte Moderna não errou por inépcia, desinformação, má fé, deficiência de gosto. Talvez nem lhe caiba o termo erro. Como uma das instâncias que conformam e definem a história da arte (os museus, a crítica, os livros, a imprensa, o mercado), seu recado implícito foi que a atenção até agora reservada a Ianelli (e outros com perfil semelhante) chegou ao apogeu - e basta. Isto, na visão dos que atualmente controlam o museu, é evidente.
O espaço físico do acervo metaforiza, aqui, o espaço simbólico e o histórico, que se devem reservar de ora em diante para novos eleitos. Ao longo dos anos, à medida que forem sendo revelados, poderemos concordar ou discordar quanto a suas qualidades, mas eles virão, inflexivelmente. Acrescente-se que a autoridade de instância definidora conferida aos museus fará com que tendamos a concordar. Não deveria ser, por força, assim, porém as demais instâncias - exceto o mercado, todo-poderoso - carecem de vontade política, energia e instrumentos de ação. Junto com Ianelli, puniu-se também uma linguagem.
No Brasil, as duas matrizes abstracionistas, a geométrica e a lírica, bem distintas em seus propósitos estéticos, emergem ambas na década de 1950. Graças ao febril ativismo dos membros do movimento concretista, a primeira adquire um invejável e excludente prestígio, bafejado ainda pelo brilho intelectual dos poetas concretos. A certa altura Waldemar Cordeiro, o líder dos pintores, ortodoxo, radical e aguerrido, decide declarar que a abstração lírica é "hedonista" - querendo significar, entendo eu, que seria menos séria, menos profunda, fácil de agradar, decorativa. (Como se um quadro geométrico não pudesse servir tanto quanto qualquer outro para enfeitar ambientes.)
O busílis residia, realmente, na questão da expressividade. Para os concretistas e análogos, filiados ao polo da razão, a obra de arte era apenas "produto", no sentido industrial da palavra. Admiti-la como manifestação subjetiva do autor, contendo e despertando emoções, representava uma contaminação romântica decididamente inaceitável. Seguindo a regra brasileira, ao invés de se observar judiciosamente a realidade, erigiu-se em verdade a provocação de Cordeiro, pelo que desde então o abstracionismo lírico vem sendo desqualificado, às vezes com gentileza, às vezes sem. É possível que em alguns casos - por exemplo, em Antonio Bandeira, que o mercado, talvez por isso mesmo, escolheu como um de seus objetos do desejo, pagando milhões por suas telas -, haja efetivamente algum hedonismo: o prazer de uma arte sedutora, não encucada, que se frui sem qualquer dificuldade. No entanto, basta conhecer direito a gravura de Fayga Ostrower para se dar conta de que não contém o mais remoto traço de hedonismo, e sim a discussão talentosíssima e séria dos problemas da arte em seu momento. Sem falar de Iberê Camargo, cuja produção abstrata lírica da década de 1970 é intensa, vital, dramática, exigente, difícil, e de uma qualidade contundente.
Simetricamente, a obra do neoconcretista Hércules Barsotti, rigorosamente geométrica ao longo de toda sua trajetória, é bela sem rebuços, até agradável - sem com isso se tornar menos boa. Apesar de filho dos anos 50/60, Ianelli não foi um abstracionista lírico em sentido estrito; roçou de leve pelo tachismo (uma das subdivisões da matriz), mais de leve ainda pelo gestualismo (outra), para optar, afinal, por estruturas geométricas simples que apareciam ou subjaziam em seus trabalhos. Nada tinha de cerebral e buscava, sem a menor sombra de dúvida, uma beleza feita de harmonia, equilíbrio, apolínea, sem conflito (daí o substrato geométrico), lavrada na ordem do sensível, sutil mas evidente, capaz de estabelecer comunicação imediata. Daí o risco do "hedonismo", punido pela recusa do MAM. Se se tratasse de um geométrico estrito, acredito que as obras teriam sido aceitas. Como são eles, atualmente, os darlings do sistema das artes, não creio que o museu recusasse nenhum concretista nem neoconcretista, ou mesmo geométricos posteriores e epígonos, com os quais acreditaria estar enriquecendo, inclusive materialmente, sua coleção. Há 20 anos nem se cogitaria de recusar Ianelli. Reescrever a história não é negar os fatos. É alterar-lhes o peso relativo, vê-los de ângulos distintos, propor novas leituras, como aí acontece.
Felizmente, nem a memória nem a obra de Ianelli precisam de 14 trabalhos a mais aqui ou acolá. Mesmo porque a doação não era portentosa, incluindo oito bonitos mas nada essenciais pequenos estudos em papel. O golpe foi mais o choque, no início. De resto, Ianelli nunca tentou posar de gênio (o que fez Cordeiro, um pouco), e bastava-lhe cumprir com precisão seu bem delineado projeto, dentro da originalidade possível num país de terceiro mundo. É verdade que sua melhor produção se parece com a de um grande mestre estrangeiro, Mark Rothko. Mas, visivelmente, ele chega lá por seus próprios caminhos, não por imitação. E se a parecença bastasse para relegá-lo, dificilmente sobrariam no Brasil artistas não relegados. Até na vanguarda, exceto por Lygia Clark e, em menor grau, Hélio Oiticica, nossa originalidade permanece caudatária.
Além de que a exigência de originalidade à outrance é uma invenção do Romantismo. Bach e Mozart não se preocupavam em ser originais nem modernos, Cuidavam de codificar e aperfeiçoar a linguagem a que chegava a música em seu tempo. Não procuraram "o novo", mas sim fazer de novo e melhor, sempre melhor, até o limite da perfeição de cada um. Sem embargo de quantos quadros tenha em museus, é um mérito que não se poderá tirar, também, de Arcangelo Ianelli.
Olivio Tavares de Araújo - Publicado em O Estado de São Paulo