Mediáticos, galácticos e recatados
Desobediência
Maria do Rosário Pedreira
Conheço Eduardo Pitta há muitos anos e aprecio, acima de tudo, a sua frontalidade desarmante – qualidade que nem sempre se encontra nas gentes da cultura, por vezes demasiado preocupadas com o afecto dos outros ou a possibilidade de um tacho onde possam fazer os seus cozinhados sem grandes temperos.
Além de pessoa que assume o que diz e pensa, Pitta é um poeta consolidado há décadas, um crítico literário regular e um bloguista de respeito, escrevendo todos os dias no Da Literatura. Pois acaba de reunir uma escolha de poemas seus num volume que dá pelo nome de Desobediência, título que lhe fica bem, sob a chancela da Dom Quixote e com prefácio de Nuno Júdice, autor com obra publicada na mesma colecção. Entre os textos presentes na colectânea, há muitas pérolas, das quais destacaria para amostra este par de versos de que gosto particularmente: “Tinha na retina corpos / imperdoavelmente disponíveis.”
Se gosta de poesia, guarde a sua retina e a sua disponibilidade para a leitura desta recolha.
Maria do Rosário Pedreira - Publicado no blog Horas Extraordinárias
dois homens em elba
Pedro Gonzaga
dois homens se encontram em elba
fora dos séculos que os separam
dois homens não sabem que em elba
reserva-lhes a força vulgar do destino
uma queda e uma esperança
que hão de acometê-los
cada qual a seu momento
como sói ocorrer nos falsos paralelismos
da história e da poesia.
em elba está ovídio
na companhia do amigo fiel
insciente de que já o convoca
o imperador com a ordem do desterro
que lhe espera uma terra esquecida
para além do bósforo
que a crença no perdão
e a volta à roma eterna
perduradas apenas nos versos tristes
finamente encadernados na edição
da loeb classicals
em elba está napoleão
imerso ainda nas sombras frias
da desastrosa campanha na rússia
abandonado por seus marechais
a tramar o triunfal retorno
entre ameaças de veneno e morte
a uma paris por ele mesmo modificada
a um mundo que agora mais bem o terá
como uma estátua de madame tussot
tendo por cenário santa helena
dois homens reproduzem em elba
o desperdício infinito dos gênios
dois homens encarnam em elba
o estratagema dos maus atores
que não escapam à armadilha
de serem personagens de si mesmos
© Pedro Gonzaga
Imperativo
Pedro Gonzaga
Se puderes pedir uma coisa
a Júpiter
pede uma ilusão adamantina
não a verdade.
Somente filósofos e tolos,
inquisidores
e síndicos
estão atrás da verdade.
Se puderes fechar os olhos para o real
fecha agora.
Não te preocupes,
antes,
aproveita.
Hão de acordar-te os credores
a dor no ciático
o fingimento da mulher
que nunca se entrega
e que julgas siderar
com tuas carícias de manual,
enquanto ela organiza no teto
uma lista de afazeres vitais.
Percebes?
Somente em sonhos
podes ser quem imaginas
apenas em tua memória
seletiva
tuas ações recebem
a devida camada
de nobre pátina.
Por isso, nega as fotos
foge dos amigos
sentimentais
e nostálgicos
evita as reuniões de
dez
de quinze
de vinte anos
da formatura do colégio.
Investiga menos,
questiona menos,
de que te serve
a dúvida e
o relativismo
vetusto
dos pós-modernos?
Não há fatos,
só versões, dizem.
Ora, deixa que guardem para si
tais patacoadas,
elas não podem te salvar.
Se puderes pedir uma coisa
a Júpiter
pede uma ilusão adamantina
não a verdade.
Porque somente filósofos e tolos,
inquisidores
e síndicos
estão atrás da verdade.
Pedro Gonzaga - Escritor e poeta
Formigas do Colorado
Pedro Gonzaga
À luz de um sol branco
- dezembro arde em Porto Alegre -
busco abrigo às cegas
na fachada do antigo sebo
tantas vezes percorrida
em horas mais cálidas.
Mergulho na penumbra,
e um cheiro doce
que sabe a mofo
brota dos cadáveres,
silenciosos e encadernados faraós
desprovidos de pirâmides.
Enquanto meus olhos
se acostumam à noite ali dentro
meus dedos percorremcom vaga cautela
as estantes empenadas em que
livros de fantasiosas ciências,
roucos,
apelam da escuridão:
um compêndio de biologia,
um tratado de química orgânica em espanhol
que cansou de dizer a realidade em 1940,
tantos carbonos e hidrogênios
inutilmente
desperdiçados.
Pouco depois,
uma grossa lombada diz
em inglês
Fomigas do Colorado.
Assusta-me o fato de que um homem
perdido entre longínquas montanhas
tenha dedicado sua vida às
formigas do Colorado.
Que promessa de felicidade terrena
ou eterna
pode levar alguém
a dedicar a força de seus membros
a usina de seu cérebro
o combustível limitado das gônadas
às formigas do Colorado?
Quase posso vê-lo,
senhor das formigas,
circunspecto
lustroso de autoridade,
garboso na sala decorada com esmero
madeiras escuras
e envernizadas
o feltro verde sob o tampo
o digno gabinete
do digno autor de
Formigas do Colorado.
Você não tem seriedade,
mr. Gonzaga,
você se farta na galhofa.
Onde está sua obra,
mr. Gonzaga,
onde está o seu legado?
A custo
penso nos dois volumes de contos
e no exíguo livro de versos
à espera de publicação.
Uma coisa, no entanto, me consola,
senhor Formigas do Colorado,
e a você dedico este semi-sorriso frouxo
que meus lábios não labutam para manter:
eu estou aqui,
vivo,
meu sangue ferve,
posso ser fera esta noite,
meus músculos vibram
e tenho uma mulher
que me espera.
Tudo isso passa, eu sei,
mas, ah,
que se fodam
as formigas do Colorado.
Dia 20 de novembro no Museu da Casa Brasileira - São Paulo
Das 11h às 14h - Sábado (20 de novembro)
Recital AVE, FLOR - com LAURA DE SOUZA (e a pianista Nancy Bueno)
De Fernando Mattos sobre os poemas de Cleonice Bourscheid
com Deisi Coccaro e Fernando Mattos
PROGRAMA
PARTE I AVE, FLOR (ciclo de canções)
Música: Fernando Mattos
Poesia: Cleonice Bourscheid
I. Poética
II. Lírios
III. Asa-de-anjo (Flor-do-céu)
IV. Mal-me-quer
V. Lição de poesia
SOPRANO: DEISI COCCARO
VIOLA: FERNANDO MATTOS
PARTE II TRIBUTO À NATUREZA
Diversos Compositores
R.Schumann
“Myrten” op. 25 (H.Heine)
Die Lotosblume , n°7
- Du bist wie eine Blume, n° 24
- Der Nussbaum, n°3
C.Guastavino
“Flores Argentinas”(León Benarós)
- El clavel del aire Blanco
- Qué linda la madreselva!
- Campanilla, adónde vás?
La Rosa y el Sauce
F.Mignone
Quando uma flor desabrocha (Toada)
H.Villa-Lobos
“Modinha carioca” (Cattulo Cearense)
- Tu passaste por este jardim
SOPRANO: LAURA DE SOUZA
PIANO: NANCY BUENO
Exposição no Jardim do Museu da Casa Brasileira
Imagens botânicas de ANELISE SCHERER
De 20 de novembro de 2010 a 16 de janeiro de 2011
Lançamento do Livro AVE, FLOR
Poemas de CLEONICE BOURSCHEID
Imagens de aquarelas botânicas de Anelise Scherer
Edições ARdoTEmpo
as chuvas de porto alegre
a chuva de porto alegre é uma chuva triste
não tem as marcas de caos que arrasam as metrópoles
coloca-nos frente a frente
com nossas memórias
mais secas
encharca nossas almas
individualmente
a chuva de porto alegre assoreia a margem dos prédios
esquece a façanha dos bustos
e empoça os passos do vento
zela no abraço das casas
as pessoas mais remotas
às outras nos guarda-chuvas
chove para dentro
nem as gotas são felizes quando chove em porto alegre
Guto Leite – Publicado no livro ZERO UM, Editora 7 Letras, 2010
Poema em linha torta
De todos os lados armam-se de teorias
futuristas cansados
tecnologias que cantam
com a ingenuidade
forjada dos pilantras
ou com a estupidez assanhada
dos paspalhos.
Debatem o fim da lira por todos os lados
locupletam-se com artigos
em revistas indexadas
descolam um pouco de sexo
entre o furor inerme das
comunicações de 20 minutos
tempo mais que suficiente
para os que esqueceram
Garcilaso.
Anunciam eufóricos a descoberta
da interatividade
tão antiga
vejam só
quanto o bom Homero.
Alfabetizam-se com histórias
em quadrinhos
rebatizadas com novos
e lustrosos
nomes importados:
romances gráficos
orientais mangás,
alegam ser capazes de ler na tela
300 páginas,
mas não vencem uma quadra
de Quevedo.
Estão por toda a parte
e vão vencendo,
falam mais alto
amasiam-se
lubrificam-se à voz procaz
dos suplementos literários.
Arre!
estou farto
da maçada de lhes dar combate.
Pobre de quem ergue versos e é
classe média
(valha-me a complacência do IBGE),
pois antes poderia ser maldito,
decadentista
amigo de Braque.
Hoje,
renderei no máximo
uma monografia,
louvada não por sua coragem
mas por seguir à risca
as normas da ABNT.
Pedro Gonzaga
Publicado no blog Pedro Gonzaga
Sensíveis hieróglifos - MARIANA IANELLI
Entrevista concedida a Rogério Pereira - Jornal RASCUNHO, Curitiba PR Brasil
Aos 30 anos, Mariana Ianelli é uma das mais destacadas vozes da poesia contemporânea.
Estreou em 1999, com Trajetória de antes. Agora, com Treva Alvorada, chega ao sexto livro. Nesta entrevista concedida por e-mail, Mariana fala de sua trajetória poética, da composição da nova coletânea, do panorama da poesia brasileira e de dois temas que lhe são muito caros: a morte e Deus, entre outros assuntos.
Rogério Pereira: Você diz que cada um de seus livros compõe um percurso. Ao chegar a Treva Alvorada, a sexta reunião de poemas, como você avalia a composição deste percurso, iniciado em 1999, aos 20 anos, com Trajetória de antes?
Mariana Ianelli: Enquanto um livro está sendo escrito, existe uma lógica interna que não aparece e, nesse caso, tentar o cálculo perfeito seria tão ingenuamente ambicioso quanto querer premeditar uma vida. Digo isso pensando não exatamente no percurso de uma década, mas em ciclos, cada livro uma vida. Agora, reavaliando esse caminho, vejo que os títulos falam de um lugar (Trajetória de antes, Almádena), de um estado de espírito (Duas chagas, Fazer silêncio), de uma duração (Passagens, Treva Alvorada). Há temas que sempre ressurgem, mas a cada livro o olhar é outro, um olhar novo, nascente, porque a vida é outra. Assim acontece um ciclo de nascimento e morte, morte e renascimento.
RP: Treva Alvorada foi escrito em 2009 durante os meses de enfermidade e morte de seu avô, Arcangelo Ianelli. Como foi todo o processo de escrita dos poemas em um momento tão delicado, em que a vida nos parece ainda mais incerta?
MI: Foi um período dificílimo, de guerra interna, de sofrimento, um desses momentos em que nenhum subterfúgio funciona. Nessa hora ficamos sozinhos com as palavras. Na realidade, Treva Alvorada começou a ser escrito no final de 2007 e terminou meses depois do falecimento do meu avô, em 2009. Os poemas assimilaram essa despedida, é verdade, mas não há uma referência explícita ao meu avô no livro senão na dedicatória e nos poemas da oitava parte. Ou seja, o que foi uma circunstância pessoal se transfigurou em uma vivência poética, houve uma redescoberta dessa morte, porque a realidade concreta pode ser também a grande metáfora de uma realidade invisível. No livro, os poemas acabaram agrupados em nove partes.
Na primeira parte, foi um despojamento de projetos, de expectativas; na segunda parte, um apelo ao outro, um pacto amoroso com o outro, na promessa, na renúncia ou em um último abraço; na terceira parte, foi um questionamento da fé, da esperança, daquilo que nos resta quando sobrevém a ruína; na quarta parte, a figura do soldado, aquele que se vê no campo de batalha, outro que é prisioneiro, e o desertor, espelho do filho pródigo; na quinta parte, a Quimera, o Narciso, a Esfinge, mitos que se aproximam uns dos outros, me parece, por um despertar que envolve sacrifício; na sexta parte, o assentimento na morte, a descida ao fundo da noite, onde começa a alvorada; na sétima parte, poemas que visitam algumas passagens bíblicas, como a parábola do filho pródigo, a peste das casas, a destruição de Sodoma, a origem dos Moabitas; na oitava parte se concentram os poemas dessa experiência pessoal de morte do meu avô, a provação de um homem levado ao limite das suas forças, um homem como Jó, ou Hércules em seus trabalhos; na última parte, poemas que falam para Deus, ou que desembocam em um desarmamento final, em um consentimento lírico. Resumidamente, o caminho foi esse.
RP: No texto de apresentação de Treva Alvorada, você escreve que “a paisagem que se delineia, agora, espera seu redescobrimento”. Você acredita que os poemas serão outros quando absorvidos pelo leitor? O que você pretende causar neste leitor?
MI: Penso que o sentido de um poema depende de um leitor comovido e essa comoção, esse transporte, vem de uma experiência pessoal, por isso acredito sim que cada leitor faz o seu mergulho, o seu percurso de leitura, cada um é peregrino do seu próprio labirinto. Eu mesma redescobri os poemas de Treva Alvorada depois de terminado o livro.
Por exemplo, o fato de o primeiro poema se chamar Exílio e o último Na casa do pai não foi algo que eu tivesse planejado, foi um itinerário que se formou no fim de tudo. E, quando terminamos um livro, já estamos em outra parte, é como se deixássemos uma gruta cheia de hieróglifos. Então um dia alguém entra ali, acende um fogo e descobre todas aquelas imagens. Os poemas esperam por isso, por essa visita, esse fogo que está com o leitor.
RP: A morte está no centro de Treva Alvorada. De que maneira você lida com este tema no dia a dia, já que “É inútil desafiar o pó / E, contudo, desafia-se”?
MI: A morte está presente para mim todos os dias e em todos os livros. Morremos tantas vezes, enfrentamos tantas passagens que a última delas não faz mais que romper um último vínculo. Conviver com essa perspectiva educa a atenção, a palavra passa a ter um outro peso, é preciso prestar contas do que é dito, assumir um compromisso, uma vigilância, além de certa modéstia diante do que escapa ao nosso domínio. Todos desafiamos o pó construindo, criando, sabendo admirar, é um pacto pela beleza que nos põe do lado da vida. Não é a presença da morte enquanto desolação, esterilidade, mas aquele intervalo de criação entre tarde e manhã, um vazio que está ali como embrião de coisas vivas.
RP: De que maneira a literatura (e em especial a poesia) tornou-se protagonista em sua vida? Quando você decidiu ser escritora?
MI: Desde os quinze anos a poesia me acompanha. Tive uma adolescência, digamos, mais recolhida, então, com o tempo, inevitavelmente a literatura foi ganhando espaço. Além de prazerosa, tornou-se necessária, uma espécie de tempo interior que foi se alargando. Trajetória de antes e Duas chagas foram resultado desse meu primeiro contato, ainda muito intuitivo, com a poesia. Passagens, que veio na seqüência, de certa maneira é uma síntese dessa experiência inaugural, aquele que poderia ter sido o meu primeiro livro.
RP: Há uma profusão de poetas espalhados Brasil afora. O que tem a dizer a poesia contemporânea brasileira? E o faz com qualidade?
MI: Há centenas de poetas, realmente, alguns muito bons, já com prestígio, outros que ainda esperam ser reconhecidos. O que às vezes parece faltar à poesia é um arrebatamento que não seja somente intelectual, algo parecido com aquela sinceridade pungente que levou o jovem Vinicius de Moraes a dizer em um poema: “Afugenta o infinito que me chama/ Que eu estou com muito medo, minha mãe”. Falta um pouco essa coragem, essa entrega a alguma coisa comovente, desobrigada de uma exibição de inteligência. A metalinguagem, por exemplo, expôs os alicerces da poesia como um enorme esqueleto. Agora, me parece, seria o caso de dar vida a esses ossos, fazer o espírito entrar neles.
RP: Nestes tempos dos mais apressados, interligados e insones, a poesia e sua lentidão são o necessário contraponto? É possível cobrar isso da poesia?
MI: A poesia não se submete à pressa, seu tempo é outro, é o tempo da liturgia, como diria Cristina Campo. Acontece que vivemos em uma época de violenta desatenção, de falta de silêncio, de tirania da eficácia, uma época em que o espalhafatoso se tornou uma das mais emblemáticas expressões da nossa angústia. Quando parece não haver mais o que dessacralizar, dessacralizamos o tempo. Talvez nada seja tão subversivo hoje quanto fazer durar, ter paciência. Creio que a pergunta é, na verdade, se podemos cobrar da poesia imediatez, rendimento, participação nesse ritmo convulsivo.
RP: Deus percorre as páginas de Treva Alvorada com uma presença robusta e importante. O que Deus significa para você? Ele é imprescindível a sua vida?
MI: Acho que basta uma imagem. Quinze anos atrás, uma menina chamada Cassiana, que era minha colega de classe, morreu. Eu me lembro de entrar em uma sala lotada de crianças e ver aquela menina tão bonita, ali, impassível, no meio das flores. Era uma beleza insuportável de se ver. Para mim, esse é o rosto de Deus.
RP: A poesia lhe satisfaz plenamente a necessidade criadora ou está em seus planos dedicar-se também à prosa: conto, romance ou crônica?
MI: Estou começando a escrever crônicas, é um gênero que me encanta porque flerta com a poesia, tem esse olhar mágico sobre o instante. Já o conto e o romance têm outro tempo, outro foco, e, nesse território, eu me contento em ser uma boa leitora.
RP: Quais autores nunca lhe abandonaram? Como é a sua rotina como leitora?
MI: Leio sempre Drummond, Hilda Hilst, Marguerite Duras, Wislawa Szymborska. Minha rotina geralmente envolve algum tipo de pesquisa, algum estudo, e, como um livro chama para a roda muitos outros, acabo alternando a leitura de poesia, ensaio e romance. Costumo também traçar alguns roteiros, mas é difícil segui-los à risca porque as descobertas, os interesses vão se ramificando.
RP: Que tipo de literatura não a atrai de maneira alguma? Quais pecados literários são imperdoáveis?
MI: Ficção científica e literatura policial, confesso, não me atraem. Pecados literários existem vários, mas os imperdoáveis, para mim, são os trocadilhos, o uso do silêncio como mero recurso, a inovação pela inovação, o construto.
RP: Hoje, discute-se muito o impacto que as novas plataformas de leitura (em especial os e-readers) podem ter sobre os leitores e a literatura. Você acredita que o mundo digital também dominará a literatura? O livro de papel está com os dias contados?
MI: Não acredito nessa concorrência. Vejo as plataformas digitais como um novo suporte, de caráter utilitário, digamos, emergencial. O livro como objeto tem outra natureza, é sensual, tem densidade, cheiro, textura, e todos esses prazeres fazem parte da intimidade da leitura, não são descartáveis nem substituíveis, sem contar que o texto impresso tem outro peso, no papel a palavra se cristaliza.
RP: Você é mestre em Literatura e Crítica Literária e publica resenhas em jornais e revistas. Como você avalia o espaço para a literatura na grande imprensa e a qualidade da crítica literária nela publicada?
MI: O espaço para a literatura na grande imprensa, de um modo geral, é escasso. A crítica, em boa parte também por falta de espaço, acaba sendo tímida, limitada a vôos mais curtos. Convencionalmente falando, não temos mais a figura do crítico, temos escritores e jornalistas que assumiram esse papel, o que pode ser enriquecedor em termos de uma abordagem criativa, por outro lado, pode ser perigoso, porque a crítica corre o risco de ficar condicionada às convicções literárias de seu autor.
RP: No poema Entusiasmo, lê-se: “A morte vacila um passo/ E nos concede uma hora”. O que você faria se a morte lhe concedesse apenas mais uma hora?
MI: Seria como um parto do espírito. Iria me ocupar dessa hora, simplesmente.
RP: Há no Brasil uma quantidade imensa de oficinas literárias. A maioria está voltada à prosa. Você acredita na eficácia destas oficinas? Elas podem ensinar algo a quem deseja escrever poesia?
MI: Creio que as oficinas podem ajudar na sensibilização do olhar, instigar perspectivas, além de dar uma orientação sob o ponto de vista técnico. Acredito, porém, que existem sutilezas que não se ensinam, que o escritor precisa descobrir por ele mesmo, errando, na dupla acepção do termo, na errância e no equívoco, porque é aí que o poeta encontra sua voz própria, quando ninguém o auxilia, quando há somente ele e um abismo.
RP: Que conselho você daria a quem ambiciona dedicar-se à literatura como poeta?
MI: Antes de tudo, paciência, “não forçar o poema a desprender-se do limbo”, como diria Drummond, porque o tempo da precipitação poética não se submete a prazos preestabelecidos. Depois, o diálogo com outros escritores, poetas, ou simplesmente bons leitores, não importa que esses interlocutores sejam poucos, importa que sejam interlocutores verdadeiros. E o paraíso de uma biblioteca, claro, onde um poeta pode estar sozinho, mas nunca estará desacompanhado.
Entrevista publicada em RASCUNHO - Publicação gentilmente autorizada por Rogério Pereira
Retorno ao sagrado
Rachel Gutiérrez - Rio de Janeiro, RJ
Carlos Drummond de Andrade terminou sua famosa Elegia com os versos:
“Amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia”.
Mariana Ianelli, cujo novo livro é, em grande parte, uma elegia para seu avô, o artista plástico Arcangelo Ianelli, encontrou em outros versos de Drummond a epígrafe: “Vazio de quanto amávamos,/ mais vasto é o céu. Povoações/ surgem do vácuo./ Habito alguma?”. E os 45 poemas que compõem Treva Alvorada estão distribuídos em nove “povoações” habitadas, sim, por densa e intensa poesia.
Aqui, se jogo há é o que começa no oximoro do título e na capa, que reproduz um quadro da fase abstrata do pintor, triunfo da cor que se expande no escuro que a emoldura. Depois, é o jogo do claro/escuro da vida e da morte, ou o da evocação de mitos longínquos em contraste com a noite, “que durou anos”, um longo percurso de agonia e despedida. Nos últimos versos do último poema, outro começo se anuncia: “E terei me esquecido/ E terei me recordado/ Na idade certa de dizer,/ Se tempo houvesse:/ Aqui não se morre mais”.
Circularidade de uma experiência espiritual tão próxima de East Coker, segundo poema dos Quartets, do cristão T. S. Eliot, que termina com “In my end is my beginning”, quanto do misticismo tibetano, que diz, num provérbio, “todo mundo morre, mas ninguém está morto”. Poesia densa porque concentrada, onde as palavras são circundadas pelo silêncio do não dito, como o finito é envolto de infinito e a vida, a nossa finitude, limitada pelo tempo imensurável do passado e do futuro. Poesia intensa porque especulativa, intelectiva, meditativa.
Na era do entretenimento, da mera diversão, quando se foge da morte, da solidão e da busca de sentido, quando a exposição do escatológico e a banalização da violência vem se perpetuando assustadoramente, a poesia corre o risco de tornar-se mero jogo, performance ou engenhosa e pouco séria construção. Ora, quando significativa, a poesia é feita de som, de sentido e de silêncio. Mas nosso tempo é de estridências, de ruídos sem sentido e de ausência total de silêncio. Contrapondo-se a isso, Mariana Ianelli intitulou um de seus mais belos livros Fazer silêncio, onde encontramos nos versos do poema Legado (Obstinada chama dos antepassados,/ Capítulo um desta ficção de realidades), como em Perspectiva (Durou o instante de uma chama/ Mas ficou para a posteridade), e no primeiro dos Poemas para epitáfios, de outro livro, Passagens, (Porque o culto da alvorada persevera/ Tu não desaparecerás), prenúncios da temática principal de Treva alvorada.
Senhor das cores
Na primeira Povoação, o eu lírico da poeta ora encarna o eu do avô, artista múltiplo, que evoca outros tempos — “quando não havia ainda/ A necessária mortalidade das coisas,/ e (...) sobravam direções —, ora se distancia e observa consternado o intermitente definhar de um corpo (que) “ousa viver um dia”. Na segunda, e na terceira, onde a morte já espreita e “se mete/ Pelas frinchas, pelas guelras”, diz-se também que “em um minuto o passado elabora/ O museu do futuro”. Não podemos imaginar como foi a infância de Mariana Ianelli no convívio com esse avô senhor das cores e das formas, dos materiais mágicos da pintura e da escultura, mas sabemos que sua poesia é esculpida com palavras cuidadosas, pensativas, matéria e forma do trabalho de uma artista. “Quando canto,/ Sonho que flutuo sobre um pélago,/ Sonhar é o meu trabalho” (de Cântico). “Ser poeta significa estar na alegria”, diz Heidegger, em Approche de Höelderlin. Mesmo quando fala da morte, o poeta canta e aprendemos com Bachelard que o tempo da poesia é vertical, um mergulho para o alto, ou uma vertigem das profundezas. É no mistério das profundezas que são geradas as imagens e as metáforas. “Um sorvedouro/ Onde a paz dos contrários/ Treva alvorada./ Fecundado flutuas./ É a lei da graça”, como conclui o poema da sexta Povoação, que dá título ao livro.A evocação dos mitos torna mais compreensível o mistério da vida, o sentido da história, a condição do homem.
No 13.º Trabalho de Hércules, da oitava Povoação, “Eis o velho empreendedor,/ O indomado. (...) Mas a chaga do herói não se mostra”. E quando é lembrada a Origem dos Moabitas, na sétima Povoação: “Ele penetra/ Os recessos de um livro,/ Abre a fonte lacrada”. Como Loth, o patriarca dos Moabitas que, muito idoso engendrou uma nova descendência, o avô Ianelli a todos fecunda e deixa um duplo legado: uma herança e uma história, suas obras e um exemplo de vida consagrada à arte. História de ricas povoações do espaço. Arte é espaço ocupado, vida acrescentada, criação demiúrgica que se instaura no tempo. No mito também há jogo de vida e morte, só o morto tem a vida completa, fábula contada, história. “A gente morre é para provar que viveu”, disse Guimarães Rosa. E Mariana, no penúltimo poema, Diante da paisagem: “Bendita vida, trigueira vida/ Pasmando o nada”. Pois “o mito é o nada que é tudo”, como entendeu Fernando Pessoa, aqui o nada da ausência, o vácuo, o “vazio de quanto amávamos” da epígrafe de Drummond.
Em A palavra, a poeta faz esta confidência:
“Eu te procuro
Em tempos de rara cortesia”.
Tempos de Mariana Ianelli,
que assumiu matrilinearmente o sobrenome do avô:
O teu nome se descobre
Feito de estranhas vogais.
E logo adiante:
E o que era eterno se ausenta
Em tudo à espera
De uma nova eternidade.
A poesia de Mariana Ianelli contrapõe, aos modismos contemporâneos, às elaboradas assonâncias, profundas ressonâncias artísticas e culturais. Trata-se de um corajoso retorno ao sagrado e às essências da humana condição. E justamente por representar um contrapeso e um antídoto à nossa época é que a sua poesia é necessária. Daí sua extraordinária atualidade. Nesta homenagem ao avô, de quem segue o exemplo de dedicação integral ao próprio ofício, a poeta encerra o livro como a cor do quadro de Arcangelo Ianelli, que, em seu triunfo sobre a sombra, expressa a vitória da luz.
Memorando
Não há grandes notícias.
Uma torre desapareceu,
O inverno expandiu-se
E a esperança ainda rói
O fundo de uma caixa
Procurando saída.
Com esculpido esmero
Vai se acabando uma família.
Um gesto qualquer se repete
No ensaio de ser abolido,
Remediar, abafar, corrigir,
Nada lembra o que antes foi só
Generosidade de coisa viva.
Não convém
O alvoroço dos pássaros,
A revanche da galhardia.
É inútil desafiar o pó
E, contudo, desafia-se.
© Mariana Ianelli - Treva Alvorada - Editora Iluminuras, São Paulo, 2010
Publicado em Rascunho (Curitiba PR Brasil)
Efeito Borboleta e outras histórias - Contos
Autor: José Mário Silva
ISBN nº 978-85-62984-04-4
124 páginas
Capa: Mario Castello
Valor: R$ 30,00
Apresentação de Mariana Ianelli, sobre o livro Efeito Borboleta, contos de José Mário Silva:
Penso nos contos de José Mário Silva e logo me vem à memória o espelho mágico de M. C. Escher.
Há sempre uma dimensão inaudita em suas histórias, uma realidade da ordem do inefável, na qual diferentes mundos se visitam, regidos pela lógica do sonho. Seus personagens são incógnitas dentro de um grande esquema, um grande tabuleiro cosmológico, por assim dizer, em que todo e qualquer movimento “precipita a desistência ou o desastre”.
Um simples bater de asas na Amazônia pode provocar um tornado no Texas. Perplexo diante das infinitas variantes dessa hipótese, um homem teme executar um só gesto. Nesse conto que dá título ao livro, a perplexidade que se anuncia ainda é outra. Este homem pode ser ele mesmo a borboleta enredada na malha do conto, a letra de uma palavra fatal que se vai formando secretamente, enquanto o personagem, no epicentro da narrativa, ignora sua inexistência. Aqui o leitor reconhecerá, sem dúvida, os labirintos borgeanos, os intermináveis elos de uma cadeia, o sonho dentro do sonho, a concentração dos tempos em um único instante, o ponto do espaço que contém todos os espaços. Mas antes interessa lembrar, de Borges, aquela máxima que serve de postulado para todas as artes, a de que “não sabemos se o universo pertence ao gênero realista ou ao gênero fantástico”.
A partir daí, ascendemos da literatura, e de suas inevitáveis intersecções temáticas, a um imenso e extraordinário “sonho apócrifo” nos contos de José Mário.
Astros, números e letras se dispersam, se reordenam e assim gira o caleidoscópio a que chamamos, por espanto e maravilha, gênero fantástico. Nessa cópula de mundos, a lente de um microscópio oferece à vista do poeta a imagemdas galáxias. De fato, José Mário é um poeta, um sonhador de insondáveis matemáticas, um encantador do pensamentoque desperta, no espaço da narrativa, este terceiro olho capaz de entrever nas linhas de uma impressão digital uma “topografia do ser”.
A forma breve que aparentemente delimita as histórias de Efeito Borboleta é mais um expediente de prestidigitador, o espetáculo em ato da fração de um minuto em que um homem revê sua vida e pressagia o exorbitante. Há sombras, muitas sombras no livro, há uma “escuridão ardendo atrás de cada porta”, a iminência do caos atrás da ordem dos planos, inclusive o literário. Nada escapa ao colapso da banalidade. O absurdo, quando prorrompe no elemento mais sutil, põe o leitor diante de um acontecimento que lhe é tão sinistro quanto familiar, como um tsunami, um atentado terrorista, ou mais uma estrela emergindo no mundo das celebridades: o surreal de uma época, nossa época, típico de um quadro de Bosch.
Nas 38 Miniaturas, imagens de alta concentração poética que fecham o volume, está a síntese da criação mágicade José Mário. Tal como o “caçador noturno” de um dos textos, dali regressamos admirados, com “meia dúzia de estrelas à cintura”. Uma aventura e uma vertigem, Efeito Borboleta contém o índice de um livro infinito. Para cada história somos transportados, ou melhor, tragados, por aquela força de atração para além da física que sabemos ser o mais simples - e o mais desejável - prazer da boa leitura.
Mariana Ianelli - Escritora, poeta e jornalista
"O mar anda/ e a água canta”
José Mário Silva
Quando a Alice tinha três anos (quase a fazer quatro), viu-me certo dia a rabiscar furiosamente um moleskine e perguntou logo: «O que é que estás a fazer, papá?» Expliquei-lhe que era um poema e ela ficou ao meu lado, silenciosa, a ver os traços deixados pela tinta negra da Bic.
Na manhã seguinte, apanhei-a deitada no chão do quarto, a rabiscar furiosamente um caderno. A página estava cheia de gatafunhos ilegíveis, mas muito bem ordenados, linha a linha. Pormenor importante: as linhas não chegavam ao fim da página. Foi a minha vez de perguntar: «O que é que estás a fazer, Alice?» E ela, como já terão adivinhado, respondeu: «poemas».Só isto já merecia ser contado, mas a história não acaba assim.
Quando peguei no caderno, apercebi-me de que o primeiro poema tinha apenas duas linhas. E fiz a pergunta óbvia: «Podes dizer-me, Alice, o que está escrito aqui?» Então ela aproximou-se e leu, muito desembaraçada, apontando o seu pequeno dedo aos gatafunhos:
«O mar anda /
e a água canta».
Eu nem queria acreditar no que tinha ouvido. Pedi-lhe que repetisse. O dedinho lá seguiu o primeiro verso,
«O mar anda»,
e depois o segundo,
«e a água canta».
O espanto, o espanto, o espanto. Fiquei a repetir os dois versos, a apreciar a sua música, a sua ressonância helénica (um vislumbre de Ulisses e as sereias), perplexo com isto de uma criança de três anos ser capaz de criar assim, out of the blue, um dístico que, perdoem-me o exagero, pede meças a muita coisa que se vê para aí publicada.
Agora, se um dia a Alice se tornar poeta e lhe perguntarem quando é que começou a escrever poemas, ela pode responder com a data exacta: 3 de Janeiro de 2009. E acrescentar os dois versos:
O mar anda/ e a água canta.
O entusiasmo foi tal que a Alice, à noite, teve dificuldade em adormecer. «Estou a pensar nos meus poemas», dizia ela, com os olhos a piscarem de sono.
Disse-lhe que dormisse, que sonhasse com palavras e que na manhã seguinte escrevesse mais versos no caderno. E assim aconteceu.
O primeiro contacto directo com a poesia foi tão belo e espontâneo que não merecia prolongamentos forçados. O reencontro acontecerá quando tiver de acontecer. E nessa altura ela saberá que o pai não se esqueceu dos seus primeiros poemas, escritos quando ela ainda nem sequer sabia escrever.
José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel
Pronúncia da alma
Entrevista - Mariana Ianelli, concedida a Denise Godinho, de OffLine
Denise Godinho: Que aspectos de sua literatura você considera que a inscrevem em nosso tempo? Há similitudes entre sua literatura e a produção de outros autores da mesma geração que a sua capazes de configurar alguma proximidade ou diálogo?
Mariana Ianelli: Acho que somos todos herdeiros daquele “crepúsculo ontológico” sobre o qual falava George Steiner, referindo-se ao clima espiritual do século 20. A literatura do início do novo século responde a esse legado de diversas maneiras, absorvendo para a linguagem a violência, o acaso, o ceticismo, e também, em alguns casos, ousando um novo pacto de fé, mesmo que hoje um senso de comunidade geralmente desperte à força de uma tragédia em larga escala. É a esse princípio de fé que me alio, e que de algum modo inscreve meu trabalho na atualidade, por um aspecto humano básico de sede de sentido e de beleza. Percebo sinais de um renascimento do lirismo, de uma revalorização do primordial e do inefável na poesia, malgrado certa ânsia de desmistificação do trabalho criativo. Exemplo disso é o poema infinito de Marcelo Ariel e o trabalho de Gilberto Tadeu Nable, autores que me emocionam por uma afinidade de sentimento poético.
DG:A exemplo do que alguns críticos chamaram de geração 90 e de outras escolas do passado, você acredita que faça parte de algo como uma geração 2000 ou de um trabalho literário que tenha, além de suas singularidades marcantes, também algo de coletivo ou transversal? Se isso existe, como se deveria denominar a sua geração?
MI:Existem algumas linhas de força, sem dúvida, embora seja difícil caracterizá-las como definidoras de uma geração. Talvez um ponto de convergência entre essas diferentes tendências de criação e expressão verbal esteja na experiência do pensamento poético ela mesma, a experiência do pensamento em suas possibilidades de linguagem, presumivelmente um desdobramento da autoconsciência e da autocrítica características dos poetas da modernidade. Fato é que a aparente liberdade formal e expressiva não nos desobriga de um dever para com a linguagem, muito ao contrário, esse dever, ou ainda, essa lealdade se manifesta tanto em uma instância conceitual como na dimensão do imponderável, do caráter, digamos, sagrado da palavra. Daí que tão diferentes poéticas possam em algum ponto se encontrar.
Como denominar nossa geração? Não saberia dizer, mas o poeta Alberto Pucheu, que propõe em seu trabalho poético um intercurso entre o literário e o filosófico, fala em uma poética do pensamento, em uma “literaturavida”, essa encruzilhada em que a palavra e o silêncio, a criação e a vida se procuram na linguagem.
DG: Muitos sectários, incluindo críticos e jornalistas, ficaram congelados nos autores pré-anos 60, especialmente no que se convencionou chamar de modernismo, e afirmaram não encontrar nada de novo no que se produziu nas décadas subsequentes. No entanto, muita coisa inegavelmente surgiu de lá pra cá. Quais são as principais características dessa nova literatura contemporânea brasileira? O que há de peculiar nela? Em sua análise, que autores renovaram, de alguma forma, a literatura brasileira nos últimos 20 anos? Quem está renovando agora?
MI: Por um lado, vejo uma poesia autoreferencial, metalinguística, e, mais do que isso, um pensamento poético pensando a si próprio, como queria Alain Badiou. Vejo também uma poesia que recupera o prestígio do verso, sem por isso deixar de estar profundamente inserida no contexto atual, por seu caráter reflexivo, suas camadas de significado. A meu ver, a trilogia de poemas em prosa de Juliano Garcia Pessanha (Sabedoria do Nunca; Ignorância do Sempre; Certeza do Agora – livros publicados entre 1999 e 2002) revitaliza o valor do conhecimento poético no seu impacto existencial. A obra poética de Paulo Henriques Britto também me parece ocupar um lugar importante na literatura em termos de renovação, pois conjuga de modo singularíssimo o coloquial e a forma clássica, além de dar novo frescor ao tema já exaustivamente perscrutado da metalinguagem. A poesia de Claudia Ahimsa é também renovadora, uma poesia de “pensamentos revolutivos”, como ela mesma diz, que revela uma mundividência, uma presença mítica e histórica do passado no mundo de hoje. Quem está renovando agora, eu diria, é Marcos Siscar, que acaba de lançar “Interior Via Satélite”, bela coletânea de poemas em prosa que, nos seus mais variados temas, põe a linguagem a refletir, em sua sintaxe, as nuances do próprio pensamento poético.
DG: Em suas descobertas como leitor e autor, quem são os autores estreantes que mais vem lhe chamaram a atenção recentemente, mesmo que sejam promessas?Você poderia nos indicar alguns nomes entre primeiros livros, blogueiros ou contatos diretos com jovens talentos? Há algo vindo das universidades?
MI: Eu destacaria o trabalho de Álvaro Miranda, com seu livro “A casa toda nave cega voa”, um conjunto de sonetos de grande apuro rítmico e concentração imagética que divagam poeticamente pelo tema da casa. O trabalho de Henrique Rodrigues, formado em Letras e mestre em Literatura, autor de “A musa diluída”, também merece destaque. Seus poemas renovam o verso clássico, têm densidade reflexiva. Outro belo livro é “Pássaro de Vidro”, estreia de Carlos Machado na poesia. Aliás, Carlos Machado é também criador do boletim poesia.net [www.algumapoesia.com.br], que traz quinzenalmente algum poeta da literatura brasileira ou estrangeira, clássico ou contemporâneo, o que nos oferece um riquíssimo panorama crítico-apresentativo, um trabalho ao qual o autor se dedica já há 7 anos.
DG: De alguma forma você acha que os nomes mais estabelecidos devem ajudar a iniciar ou descobrir esses potenciais novos autores?
MI: Acho importante que os veteranos estejam atentos aos novos e, na medida do possível, que colaborem com algum estímulo, sim. Mas acredito também que na iniciação de um poeta há sutilezas que não se ensinam, que escapam às questões de domínio técnico, um determinado nível de iniciação que precisa ser vivido solitária e individualmente, sem auxílio, e aqui me refiro à busca de uma voz própria, o que chamamos de estilo e Cristina Campo chamava de “pronúncia da alma”.
DG: Em que medida as plataformas digitais e a Internet afetaram a produção literária? Confundem-se, nas discussões, as questões o futuro da literatura e o futuro do livro, como objeto material. O que você pensa sobre esses temas?
MI: A internet proporcionou uma verdadeira avalanche de textos. Em termos de divulgação de novos escritores, a rede virtual funciona excelentemente, mas claro que há no meio disso um sem número de textos de qualidade duvidosa.Penso que em certa medida a ânsia de produtividade e auto-exposição também subtraem do processo criativo algo dessa condição fundamental de silêncio e paciência que contribui para o amadurecimento de um escritor. Quanto ao futuro do livro, não acredito absolutamente que as plataformas digitais venham a concorrer com o objeto material, acho que se trata apenas de um novo suporte. O livro terá sempre seus atrativos insubstituíveis, seu peso, sua textura, seu cheiro, tudo isso que desperta o prazer dos sentidos e faz tão íntimo o momento da leitura. A plataforma digital tem outras vantagens, de ordem prática, utilitária.
© Mariana Ianelli - Entrevista concedida a Denise Godinho, para o site Offline
Inverno
Quando eu me for, no meio da chuva fina,
Planta-me uma folha em si menor,
Num sol maior dissonante
De bergamotas descascadas na soleira
Do inverno da minha infância.
Devagar como quem aprende a soletrar
Murmuro os nomes de minuanos,
Ventos navegantes que me alçaram ao sul,
Primeiro desterro,
Circulando ao redor do mistério.
Nada será lembrado que não for verdadeiro,
Todas as pequenas mentiras e todos os enganos
Serão somados ao receituário de vacinas.
Quero cantigas antigas e rocks caseiros.
Palavras como pão com manteiga, café com leite.
Mas toda vez que vier a chuva fina, como hoje,
Te levo também, inverno ensaiando
O caminhozinho lilás, aquarela
De cais e nuvens desfiadas,
Te embarco junto com o mais sagrado.
E quando eu for, memória de cascas,
Linha circular, pó de umbigo, rirei,
À toa, vadia como as rotas que me levaram,
Encharcada de sal, náufrago avistando a terra
De uma primavera.
Isolde Bosak, 2010
Imagem: Gilberto Perin, Paris 2009
Além do Equador
Mariana Ianelli
No soco do vento
Desencontraram-se.
Selvas e rios
Entre dois pontos de um mapa,
Eles perderam contato
Mas não perdiam a saúde
De acreditar
Que nem todos os países
Foram já cartografados.
Em terra queimada de sal
Se queimavam.
Arrendavam o tempo
E com sua paga
Mantinham viva uma língua
Que aos outros nada comunicava,
Um país movediço
Que prendia no estrangeiro
Seus tentáculos.
O quanto pode suportar
Um homem
Uma vez extorquido, seqüestrado,
Eles podiam
No meio de estranhos
Com um corpo amarrado à realidade.
Todo dia era um lapso,
Um hábito
Que não achava mais vontade,
A força se adelgaçando
Na dura queda de braço.
Mas não se dobravam,
Isso não podiam.
Faltava secar um país
E uma língua desaparecer
Debaixo de uns trapos –
Brutal e lentamente,
Como cabe ao ferro da coragem.
Mariana Ianelli - Treva Alvorada - Iluminuras, 2010
Imagem: Paul Klee - Pintura
Extensão do Mito
Mariana Ianelli
Contam que ele desceu
Ao vale dos esquecidos
E cantou acima do suplício.
Que apaziguou o vento,
Estufou as vinhas,
De olhos fechados
Seduziu a serpente
Como se replantasse
O primeiro jardim.
Que foi odiado, despedaçado,
Lançado ao mar,
Para nunca mais
Uma voz se atrever à harmonia.
Mas não contam que uma mulher
Reuniu seus fragmentos
E encantou as mulheres da ilha,
Que assim Orfeu amou Eurídice,
Finalmente em corpo e lira.
Mariana Ianelli - Treva Alvorada, Iluminuras - 2010
Poesia
Uma festa bonita com presença de muito público. Foi um notável sucesso o lançamento do sexto livro de poesias de Mariana Ianelii - Treva Alvorada, na Livraria da Vila (Alameda Lorena) em São Paulo, na noite de quinta-feira, dia 10 de junho.
Fotografia de Petronio Cinque
Novo livro de poesia de Mariana Ianelli
NA TEMPESTADE
Não é teu pesadelo
Fracassar no fim do caminho.
O passo torto
Sempre te fortaleceu
E um murmúrio
Dois palmos acima do silêncio
Na noite velha te dizia:
Irás naufragar,
Mas não tenhas medo.
Essa voz não era a de um anjo
Nem o teu horror
Emprestado da bíblia.
Sagrado para ti era o mar
Da cor do zinco, e sentir
As âncoras desprendidas,
Uma proa bordejando
E o teu corpo demasiado honesto
Para ser levado a juízo.
Tinha o nome do orgulho
O animal que te movia,
A que os outros chamavam injúria,
Extravagância de criatura,
Desatino.
Agora que o teu navio
Vai ao fundo do fundo
Uma praia selvagem
Ladeia o dia seguinte.
© Mariana Ianelli - Treva Alvorada, Editora Iluminuras, 2010
Treva Alvorada
Mariana Ianelli
Poesia - 128 páginas
Capa: Arcangelo Ianelli (Pintura)
ISBN nº 978-85-7321-3241-9
Editora Iluminuras, 2010
Valor: R$ 35,00
Você já pode encontrar na Livraria Cultura, ou encomendar por internet:
Prêmio Camões para Ferreira Gullar
O poeta sensível (e crítico de arte lúcido e perspicaz), de postura corajosa e jamais subserviente a quaisquer interesses, merece muito esse prêmio.
Artista de dimensão maior e da solidão coerente com seu pensamento não concessivo, merece o reconhecimento, nossa confraternização e a nossa alegria.
Parabéns, Ferreira Gullar. (Obrigado Filipa e José Simões, pela saudação ao poeta.)
Considerado um dos maiores poetas brasileiros vivos, Ferreira Gullar acaba de ser distinguido com o Prémio Camões, o mais importante do universo literário lusófono. Do júri, que decidiu por maioria, fizeram parte Helena Buescu, José Carlos Seabra Pereira, Inocência Mata, Luís Carlos Patraquim, António Carlos Secchin e Edla van Steen. (Publicado no blog Bibliotécário de Babel, de José Mário Silva)
Imagem: Retrato do poeta Ferreira Gullar, por Mario Castello
Treva Alvorada
Jair Ferreira dos Santos
Mariana Ianelli escreve, basicamente, uma poesia do primordial: a solidão primeira, o jardim sem outono, aquele tempo intransitivo fora do mercado mas perene em todos nós. Nos livros anteriores, como neste admirável Treva Alvorada, os versos parecem nascer em algum ponto da imaginação literária onde o lirismo se entrelaça ao mito, à religião, à filosofia para aludir a experiências originárias com significados há muito abolidos ou empalidecidos pela vida moderna.
Já no título defrontamos a mais primitiva das oposições míticas – noite/dia, com expansão metafórica para morte/renascimento, alienação/consciência – e essa ambigüidade atravessa o texto sob figuras diversas. É assim que reencontramos, em épocas e geografias indefinidas, Narciso, Abel, cenários antigos e passagens bíblicas, cada um deles envolvido com dilemas ou esperanças cujo drama, em roupagem inédita, revivemos.
A deserção, por exemplo, do filho pródigo, com sua “pele macia/ sem rastro de batalha”, vem precisamente de que “não sabia errar”. Pelo equívoco, ele ascende à humildade, para enfim retornar à casa paterna. A errância humana entre sombra e luz, aliás, é o tema da coletânea. Estamos entregues à inquietude, ao desconhecimento, tendo a morte por horizonte. Esse aparente pessimismo, no entanto, é para Mariana um domínio de luta com sentimentos e gestos justamente primordiais como a compaixão, o silêncio, as alegrias do corpo ou a aliança com o absolutamente Outro, também conhecida por fé.
Na vitória ou na derrota, palmilhamos a “revanche da galhardia”, pela qual “é inútil desafiar o pó/ E, contudo, desafia-se”. Ou então, quando alcançamos a “paz dos contrários”, reina a “Treva alvorada”, onde “Fecundado, flutuas,/ É a lei da graça.”
Narrativos, portanto mais ágeis, os poemas provocam por algum mistério uma impressão de leveza e profundidade. O cuidado com as palavras é severo mas não exclui, antes reforça, a espontaneidade. Os tons variam do lamento ao cântico, conforme a emoção em jogo. E à potência de reflexão lírica da autora, que percebe coisas assim: “Era um frescor de água profunda/ A tentação do esquecimento”, vêm se associar imagens reveladoras de um universo em contínua radiância, como no verso “A maçã resplandecente no esterco”. Tudo somado, temos a síntese de uma originalidade feita pensamento poético em sua mais forte expressão.
Escrito em 2009 durante os meses de enfermidade e passagem do avô da poeta, o pintor Arcangelo Ianelli, Treva Alvorada contém meditações ora pungentes, ora libertárias sobre a morte. São lições de finitude que pertencem à sua decisão, ultracorajosa face à estética contemporânea, de dialogar poeticamente com o sagrado, que vai deixando este mundo seduzido pela própria desintegração.
Curiosamente, contra toda a aprendizagem, o último poema termina com a boutade: “Aqui não se morre mais.” Legítima ironia, mas ainda primordial, é no homem o desejo de imortalidade.
Jair Ferreira dos Santos
Treva Alvorada
Mariana Ianelli
Poesia - 128 páginas
Capa: Arcangelo Ianelli (Pintura)
ISBN nº 978-85-7321-3241-9
Editora Iluminuras, 2010
Valor: R$ 35,00
Literatura
Esperávamos por
ela na esplanada.
sábados à tarde,
com quem espera
aquele amigo mais velho,
tão ingrato, que um dia
deixou de nos falar.
© José Mário Silva - Luz Indecisa, Edições Oceanos / LeYa, 2009
© Isolde Bosak, Lisboa, 2009
Quinze côvados abaixo das tuas pálpebras.
© Mariana Ianelli - Iluminuras, 2009
Imagem: Páteo dos Leões - Alhambra, Granada (Espanha)
Convite para lançamento de livro:
Lançamento de livro e recital - Ave, Flor
O ANJO BLINDADO
Zé dos Anjos
ZéAugusthodosAnjos
Zé Augustho
O poeta escreve seu texto incontido, sem pruridos nem reservas, a escrita automática dos surrealistas, um tanto como Picasso o fez em seu próprio livro publicado, como no espaço metafísico da xangrilá de Alain Resnais.
Uma resposta coerente, profunda e poética, especular e metafórica ao gesto espontâneo de uma pintura derramada e expressionista. Devemos ler a saga do elefante condoreiro como quem encontra/como quem se defronta/como alguém que se choca com a explosão de signos e cores, atômica, de uma pintura de Ruth Schneider, ou de De Koënning ou de Dubuffet.
“...até o coveiro das teclas
anunciar a céu aberto de aninhas
tua chegada por e mail.”
A poesia de Zé Augustho é um encontrão, uma pisada no pé, um esbarrão inesperado numa calçada de movimentos ondulatórios comportados e polidos. “Perdão, senhora, desculpe, senhor... não foi sem querer.”
“...ave marinha cheia de graxa
senhor é tão pouco
bendito entre lãs mujeres
sois vós o pão nosso em calmaria (...)
aqui na terra
e na poluição do mel
todos os foguetes do ódio
e a miséria roubada das merendas.”
No texto poético, uma corrente extensa de elos e de significados. Nele estão incrustradas as pequenas homenagens, as citações eruditas, uns impropérios indignados, uns gritos, uns insultos, a escatologia, umas delicadezas.
“De ardência e encanto
Vai e vem
Sempre ao impulso
Das marés de Gonzagas.”
Um texto escorreito e magnético proposto pelo poeta, expelido de uma só vez num sopro vital, sem tosse e sem rinite alérgica, um jorro de vida como é a forma particularizada do poeta ver o seu mundo e como ele se sateliza aos diversos universos que o cercam e que formam essa miragem caleidoscópica que chamamos de realidade.
“Todo elefante é frágil
E tudo na praia é passageiro
Menos o motorista e o elefante condoreiro
E, se tu és como um Deus, meu companheiro
Sei que sou princípio de alguém
E, também sou o fim de ninguém.”
O que é tangível? A carta enigmática do poeta ou as notícias selecionadas do jornal? A conversa sobre o tempo no táxi ou a interpretação ideológica das cenas dos jornais televisivos noturnos? A imagem policromada de Deus ou a figura imaginada do elefante condoreiro a pisar com passos de feltro o sonho do poeta? A iconoclastia dos versos afiados e dançarinos dão sentido, revelam as intenções e conduzem o espectro de luzes e sombras através do labirinto de prismas e de espelhos. Assim é letra e a voz do anjo blindado.
A praia do elefante condoreiro
Zé Augustho Marques
85 páginas
Editora Carta
Local do lançamento e autógrafos: Espaço Cultural Á Lenha
Rua Pe. Chagas, 330 - Moinhos de Vento
Das 19h às 22h -
Porto Alegre RS Brasil
Imagem: Antonio Segui - Elefante dos Pampas - Desenho a tinta china com pena caligráfica e lápis de cor sobre papel, 1976 (Uruguay)