O gênero confrontado com o fogão profissional
Trecho de O JANTAR - de Naira Scavone
No senso comum, cozinha, comida e alimentação automaticamente associam-se ao gênero feminino e aos papéis sociais normatizados, como mãe, esposa, empregada, etc. Porém, quando falamos em gastronomia ou pensamos em restaurantes famosos ou jantares especiais e requintados, a associação que se faz é com a figura clássica do chef de cozinha, com sua doma (jaleco bordado, muitas vezes, cheio de prêmios) e chapéu alto.
O homem vem dominando a gastronomia profissional ou a “gastronomia especial” ao longo de toda a nossa história. Quando falamos numa cozinha aparentemente mais qualificada ou encarada como profissão, imediatamente ela é associada aos homens. Assim, essa hegemonia construiu um senso comum acerca do gênero no exercício da profissão que, consequentemente, também tem exercido poder na definição do bom gosto e na construção da alta gastronomia. Só para exemplificar, uma forma peculiar de demonstração de poder masculino na área consistiu em batizar as receitas ou pratos com nome de homens nobres ou homens da classe alta. Eventualmente, esse ato acabava por dar autoria da receita à pessoa, como o caso do molho maionese, atribuído ao duque de Richelieu, em 1756, ou o molho béchamel, invenção de um dos cozinheiros de Luís XIV que homenageou o financista Luis Béchamel, marquês de Noitel.
Além disso, a palavra “chefe”, definida originalmente no dicionário como um substantivo masculino, vem desacompanhada de uma palavra no feminino (ou da designação do artigo) para a mesma função, talvez porque por muito tempo não fosse necessária, já que mulheres não eram admitidas nesse contexto. Não é preciso muito esforço para constatar a hegemonia masculina na profissão.
Historicamente e na contemporaneidade, a maioria – para não dizer 90% – dos chefs de cozinha e escritores de alta gastronomia é constituída por homens. Assim como a História Geral foi, com certeza, uma história contada e construída por homens, a história da alta gastronomia também. Além da hegemonia masculina na profissão, sua relação com o gênero feminino teve, na sua origem e por muito tempo, uma conotação inferior. Vale lembrar que, por exemplo, quando as mulheres começaram a exercer a profissão de cozinheiras, recebendo pagamento por essa atividade, só eram empregadas por aqueles que não eram ricos o bastante para pagar um cozinheiro homem (na época, elas eram chamadas cordons-bleues); contudo, essa expressão tornou-se posteriormente sinônimo de comida excelente.
A grande maioria de escritores e chefs reconhece que a alta culinária francesa atingiu seu apogeu na segunda metade do século passado, que também foi o século da cuisine bourgeoise. Ariovaldo Franco (2004) diz que, por muito tempo, a cozinha burguesa foi objeto de desdém de alguns chefs. Contudo, cozi-nheiras talentosas e exigentes foram responsáveis pela construção e pela consolidação de uma “cozinha de base menos aparatosa e mais realista” (FRANCO, 2004). Esse comentário –“mais realista”– supõe mais econômica, o que novamente separa os tipos de cozinha: a glamourosa e a realista (a do chef de cozinha e a da cozinheira burguesa).
Se observarmos a história, perceberemos que sempre foi importante para os membros da nobreza e do novo mundo das finanças possuírem um cozinheiro. Isso era determinante na escala da distinção, representava poder, isto é, significava a possibilidade de oferecer aos convidados pratos que eles nunca tivessem provado, executados por um profissional com status.
Dessa forma, construía-se a ideia de que a cozinheira mulher possuía conhecimentos práticos e de tradição familiar e que os cozinheiros, os chefs, tinham, além da capacidade de invenção e reflexão sobre gastronomia, conhecimentos diferentes e superiores aos das cozinheiras, o que, consequentemente, lhes conferia maior status profissional.
Posteriormente, os cozinheiros homens não só detinham e transmitiam a profissão, como também acabariam se tornando os primeiros proprietários de restaurantes, emergindo aí uma nova classe social, a dos chefs e proprietários de restaurantes, com poder econômico e, essencialmente, com capital cultural de estimado valor. Esse fenômeno é observado principalmente após a Revolução Francesa, pois vários restaurantes contratam os chefs antes empregados pela monarquia, assim como alguns desses chefs abrem seus próprios estabelecimentos. A partir desse momento, o chef de restaurante oficialmente desempenhará o papel de criação gastronômica, e esta permanecerá predominantemente centrada em Paris.
© Naira Scavone - Trecho de O Jantar - Edições ARdoTEmpo, 2010
Sobremesa, criação da chef Ruth (Escola de gastronomia EGAS, Porto Alegre RS Brasil)
Imagem: Fotografia de Mauro Holanda