Domingo, 04.05.08

Todos têm o direito

Conto-carta de Ignácio de Loyola Brandão


TODOS TÊM O DIREITO











(encontrado amassado numa lixeira)


© Ignácio de Loyola Brandão - Cartas - Iluminuras, 2005
publicado por ardotempo às 17:32 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 02.05.08

Conto de futebol de PAULO BENTANCUR

É SÓ DAR A SAÍDA

Paulo Bentancur

                           


Tem homem aí por perto?
Homem mesmo, isto é, macho, não homem no sentido de ser humano – se bem que atualmente até mulher está encarando a atividade...
Tem homem?
Tem?
Quantos?

Menos de onze? Claro, não são necessários onze. Nem seria possível. O ginásio tem uma quadra de parquê onde podem, com algum conforto, correr dez atletas no total, cinco de cada lado da quadra, postados com uma tensa atenção, fixa à frente, antes do começo.
Então é só observar o movimento, nem precisa vasculhar, recolher quase ao acaso os cinco de olho mais vidrado e convidá-los a irem para a quadra. Vai ter futsal daqui a alguns minutos.
Rápido, rápido aparecem cinco fominhas, com a cara mais circunstancial do mundo. É a chance da redenção, claro, mas agem como se nada de importante estivesse acontecendo.

Um deles, Ioiô, é um guri espinhento, aloprado, duns dezessete, dezoito anos. Compensa a demasiada ânsia com o grande fôlego. Supera a afoiteza com a persistência, a teimosa perseguição a um futebol talvez inalcançável. De algum modo será útil.

Outro, Vinícius, que sabe bem ter existido um poeta chamado Vinícius (parceiro do Toquinho, violonista e compositor, em muito sucesso do samba-canção). Não joga porra nenhuma mas é viril como o saudoso Ortunho, do Grêmio de Porto Alegre, obsessivo como o Caçapava, do grande time que o Internacional, também de Porto Alegre, montou em 1975, e já não agüenta a mulher, com quem está casado há mais de quinze anos e um joguinho no domingo é uma boa desculpa para se conseguir a paz, a suprema paz. Vinícius será o goleiro.

Há um que impõe respeito. Não se sabe ao certo se é craque ou a determinação e a gravidade com que fita a bola e, sobretudo, o adversário, o fazem um atleta decisivo.
Alex Sander – assim mesmo, que a mãe não passou das primeiras letras e reproduziu o nome de um galã mencionado nas radionovelas que a Itaí, popular emissora AM já extinta, punha no ar em 1969.
Dar nome a um filho não é tarefa tão fácil assim. Aléquis. Alecs. Alequisander. Uma prima deu um palpite. Um vizinho também. Venceu o vizinho, que menos letras possuía. A mãe achou que o vizinho tinha razão e Alex, como herança, recebeu o nome dividido em dois.

E um outro se apresenta, Alaor, pinta de veterano, serenidade estampada na cara bovina. Ou é estupefaciente estado pós-alcoólico?
Alaor deve ter uns 45. É negro, com a carapinha prematuramente branca, o que é raro em sujeitos de sua raça. Ou ele passou água oxigenada e o amarelo, com o tempo, virou talco? Alaor boceja. Superioridade? Tédio? Ou imperdoável distração?

E surge ainda um quinto e complementar jogador. Sérgio.
Sérgio foi bancário. Saiu do banco. Foi professor. Fugiu dos adolescentes desinteressados em suas aulas. Sérgio foi livreiro. Cansou dos baixos índices nas vendas de livros num país que não lê e quando compra o livro da moda finge que lê. Fechou a livraria. Hoje ninguém sabe o que ele faz. Foi casado. Separou-se, a esposa com o tempo convertida numa amiguinha que apenas fazia a contabilidade do casal e à noite dormia cedo e acordava tarde, quando ele já enfrentava filas de bancos em busca de empréstimos.

Sérgio vai jogar no meio, fazendo a ligação entre defesa e ataque. Vai municiar Ioiô, encarregado de bombardear o inimigo.
Alaor e Alex Sander seguram lá atrás. Vinícius, mais atrás ainda, a derradeira barreira, tentará segurar algum chute menos ambicioso do oponente.

O oponente.

É um time experimentado. Não exatamente excepcional. Joga há dois anos e meio na mesma quadra, no mesmo dia – sempre aos domingos –, entregue a um ritual indissociável de suas cinco vidas (os titulares). Oito atletas o compõem: os de escalação garantida, Badico, Hélio, Walter (que adora que o chamem de Uálter e não de Valter), Bolita e Odd; e os reservas André, Niltinho e Marcelo.

Badico é goleiro e técnico do Mandinga, e faz a preleção. Há dois anos e meio essa preleção era um desafio frente à incontornável arte da retórica. Tanto tempo depois e muitos adversários precários encarados e superados, a preleção virou uma quase enfadonha repetição de seis frases básicas.

Começamos tocando a bola para ver quem eles são.
Não vamos acreditar que são ruins só porque aparentam isso. (A outra opção é: não vamos acreditar que são uns craques só porque aparentam isso, embora seja bom não facilitar.)
Se levarmos um gol logo de saída mais ainda temos que tocar a bola para esfriá-los. Um gol a gente busca; dois ou mais fica difícil.
Se estiver fácil, não convém humilhá-los. Ninguém gosta e eles podem querer briga.
Tentem esquecer a torcida, seja a favor ou contra. A favor é pressão na certa, a gente se sente obrigado a ganhar, e se precipita e faz cagada. Contra, a gente se encolhe, e acaba aceitando firula de qualquer merdinha.
Sem discussões com o juiz. Juiz é pior que o adversário. Contra o adversário a gente pode jogar; contra o juiz não tem jogo.

Alex Sander e Sérgio puxam a palavra que pretende uni-los – melhor seria dizer “batizar” – a Ioiô, Vinícius e Alaor. Anônimos, encararão o Mandinga.
A tradição do time da vila se sente um tanto desrespeitada pela total ausência de berço dessa equipe montada às pressas, adotada pela necessidade, sem registro entre si; que dirá na memória dos papos recheados de lendas, exageros, legitimados pela risada ou o severo olhar ao longe de freqüentadores de mesas de sinuca, em volta das quais também se comenta outros esportes, incluindo-se, sim, o futsal, tão freqüente, e eventos ainda frescos, alguns da semana passada.

Pois nada consta sobre esses cinco personagens que agora se examinam mais que ao adversário, talvez porque em primeiro lugar sejam eles mesmos seus próprios adversários, e só depois então possam tentar fazer alguma frente a quem rigorosamente pertence a um espaço que hoje eles infestam como moscas indesejáveis.

Vinícius, resignado.
Alaor, bonachão.
Ioiô, com a previsível e juvenil displicência.
Sérgio, diligente.
Alex Sander, concentrado.

Não há torcedores nas carcomidas seis arquibancadas da quadra que serve para vôlei, basquete e futsal do Ginásio Dr. Anthero Luz do município de Alvorada, 105.784 habitantes pelo último censo. Se estivessem lá, entretanto, os torcedores seriam ignorados. Ao menos pelo time que estréia nesse momento e cujos integrantes mal sabem nome e apelido um do outro.

Alguém bate na bola. Alguém recebe. É o jogo, tensão e prazer.

O rapaz que cuida do bar ao fundo, um ruivo magrinho, à falta de um mísero freguês, contorna o balcão e vai encostar-se à rede de proteção que fica atrás da goleira. Uma espécie de tontura se instala nos presentes. É preciso, aos poucos, forçar uma gradativa fixação das imagens, da compreensão sem armadilhas do que acontece de real. Como quando entramos num estádio de futebol e a multidão, a gigantesca onda sonora vindo de todas as direções da arena ovalada, somada ao espaço enorme e à distância entre cimento e campo, mais a profundidade deste na relação com o nível em que o torcedor costuma sentar-se, tudo isso a nos roubar as referências, e vagamos num agitado mar onde só na metade do primeiro tempo conseguimos enfim enfrentar a corrente de emoções e já nos sentimos em casa, e pulamos.
Então acontece fenômeno semelhante. O rapaz do bar sente isso. E é tão insignificante o que está ocorrendo: um joguinho amistoso entre desconhecidos amadores; e alguns, nem isso. Mas o ar está pesado, um chumbo, e é difícil atravessá-lo. E futsal exige rapidez, quase o vôo das pernas seguindo o vôo da bola.

No primeiro lance (quem lembra de um “primeiro lance”? Os jogos em regra só se revelam a partir do décimo, vigésimo lance), no primeiro lance o Mandinga troca passes, cinco, seis, nove, doze, até atrasar ao goleiro. Imagina, com tal procedimento, esmagar o adversário ante o controle que o time da vila pressupõe ter sobre a partida.
Essa troca improdutiva de passes se repete no lance seguinte, assim que a bola é liberta das mãos de Badico.
No lance seguinte, uma disputa no ataque do Mandinga, afinal o primeiro lance do time improvisado, Ioiô, tentando ajudar na marcação, recuado, se machuca, afoito, imprevidente. Alex Sander irrita-se, mas não aceita a oferta do adversário: um reserva do Mandinga para completar a equipe desfalcada.
Jogarão com quatro.

Sérgio olha Alex de relance, atônito.
Quer bancar o herói?, se pergunta.
Claro que Alex quer.
Ioiô quis.
Vinícius, se derem chance...
Só Alaor parece que não, sorrindo às divididas propostas pelo time inimigo. Divididas, aliás, que sem esforço ele ganha.
Sérgio não acredita em vitória, muito menos em heroísmo. Não recusa, porém, um joguinho, mesmo improvisado, mesmo sem aviso, mesmo precário no plano e na execução.
A equipe cuja biografia possui apenas uns vinte minutos começa a escrever seu primeiro capítulo. Alex entra com a dureza que Alaor, por exemplo, dispensa, e consegue o mesmo resultado do negrão: derruba dois adversários sem falta e avança célere. Bola na rede. Começam os problemas para o Mandinga, acostumado a eles, se diria, mas quando se joga não há costume, não na hora do jogo.

Finda a disputa, uma hora depois (viram de lado em trinta minutos), conversando-se sobre o que houve, tudo será encarado como normal. No entanto, no calor da hora, na febre do quique da bola, os incidentes trazem a velocidade atordoadora da tragédia ou da glória.
E, mesmo, de nenhuma delas. Dói reduzir um domingo a um jogo empatado e morno.
Sérgio põe a casa em ordem, embora estejam ganhando. Grita com Alex. Este sabe o que faz, mas, às vezes, faz em demasia. É preciso calma.
Não necessariamente a de Alaor, perfeito na sua quase imersão budista de onde sai para resolver um lance mais espinhoso.
A ameaça é Vinícius, digladiando-se, mais com a lembrança da mulher que com o Mandinga.
A primeira bola mais forte que chega ao gol é gol.
A segunda bate na trave.
A terceira é salva na linha por Alaor.
Na quarta, enfim, Vinícius intervém.
Ainda bem que Alex já fez três. E Sérgio um. E Alaor mais um, do meio da quadra, surpreendendo o rotineiro Badico.
Bolita dispara dois petardos e Vinícius nem vê. E fica nisso, 5 x 3.

Só falta um nome! – exulta Alex Sander, gozando o alívio de quem não perdeu.
O alívio de quem não perdeu. Sensação às vezes superior à da vitória. Quem ali compartilhará com ele tal sentimento? Ninguém. Cada um é um estranho ligado agora pelo episódio. A humilhação imposta ao Mandinga.

Que nome dar a esse episódio? Para Sérgio é apenas a primeira partida e ele não sabe se haverá uma segunda. E tenta adverti-los. Atenção, a segunda será pior, independente do adversário. Talvez tenhamos ganho porque, inocentes, não tivemos o terror do qual não se foge quando se vive uma pressão constante. Talvez tenhamos ganho também porque nos concentramos com a facilidade de um início, quando tudo é novidade e dúvidas graves e necessárias passam despercebidas, e então superamos o obstáculo que não reconhecemos. Não por vaidade ou autoconfiança, mas por leveza mesmo.

Para Vinícius, o pior vem agora: a volta para casa, a mulher.
Alaor considera que o Mandinga é um blefe. Ri deles fingindo sorrir para eles.

Ioiô, na margem da quadra, massageando o calcanhar, está inconsolável, certamente muito mais machucado pela ausência na vitória do que pela dor da lesão.
Pô, cara, que sujeira entrar daquele jeito! – reclama para Odd, que vai saindo, indiferente aos apelos do outro.

O ruivinho volta os olhos esperançosos para o bar: já viu cem jogos assim, mas o principal vem agora: consumidores de coca-cola e cerveja. Alex e Ioiô, os que têm mais sede, lhe garantem a féria do fim de semana.

Alaor observa o engradado de cerveja. Mais tarde, em casa, agarrado ao espeto de salsichões, esvaziará três ou quadro geladinhas.
Vinícius encara uma água mineral.

Sérgio vela a sede de todos e pergunta, como se ignorasse a resposta:
Semana que vem vamos repetir a dose?
Os integrantes do Mandinga encaram:
O raio não cai duas vezes no mesmo lugar...
Ioiô avisa:
E não vai ser com quatro, vai ser com cinco.
Alex pensa: vamos piorar.
Faltam sete dias para o próximo domingo.
É muito tempo.


© Paulo Bentancur - Escritor
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Conto de futebol de LUIZ RUFFATO

CICATRIZES  (uma história de futebol)

Luiz Ruffato

Sim, 21 de junho de 1970 tornou-se uma das mais importantes datas da História do Brasil. Afinal, naquele dia a Taça Jules Rimet conquistou-a em definitivo a seleção brasileira, na inesquecível peleja contra a Itália, diante dos mais de cem mil fanáticos mexicanos espremidos no Estádio Azteca, quatro a um, lembra? Mas, 1970 também marca a fundação e glória do efêmero Botafogo Futebol Clube, de Cataguases, o “Botafoguinho” do Paraíso, que, raro caso nos anais do desporto bretão, desmantelou, invicto, após vinte partidas disputadas entre agosto e dezembro daquele ano. E, para avivar a memória, que se vai esvanecendo, construímos esse breve relato.   

Desassossegado, seu Miguel garrou a levantar a desoras para pitar o cigarro-de-palha. Insone, deambulava pelo quintal, friagem beliscando os pêlos do corpo, cerração acoitando a paisagem, indagando de si para si como havera de ser agora que o misto parecia mesmo ia ser suspenso, só correriam os trilhos os vagões de minério, não mais os de passageiros, ele, que a família sustentava com o frete da carroça estacionada na Praça da Estação, apoucados os carretos, faria como com os filhos, oito, de-menor, e a casa, essa, ainda no acabamento? E nesta agitação vertia a noite, no pretume agachado, a matutar, e se pé-ante-pé o surpreendia a mulher, “Perdeu o sono, homem?”, ele, secarrão, retrucava, “Nada, Creusa. Estou tocaiando um gambá que espantou as galinhas, ouviu não?”, ou, “Nada, Creusa. Escutei um risco de pé, achei fosse gente, vim ver...”, ou, “Nada, Creusa. Tive a impressão de chamado, ouviu não?”, e ela, “Meu dormir é pesado, homem, você sabe...

... porque livraram-se do aluguel... nem mesmo acreditava... Anos aciganados lugar-a-outro, nem a estimação as crianças apegavam. Esculhambação de senhorios humilhando-o na frente da mulher, dos filhos, vizinhos, estranhos. Marginal não era para tanto impropério! Engolia os desaforos, catava os pertences e desarranchavam de manhãzinha, tangendo, furtivo, bancos e meninos-de-colo, panelas e narizes-escorrendo, mesas e cabeças-emperebadas, seu sangue, sua mobília. E assim enviesou quatro-cantos, mão para a boca, envergonhado, endividado, a família espichando, planos anormais bicavam suas idéias, formicida, largar-se no mundo, até, demonstrando que Ele não desampara os seus, o cunhado descobri-los alojados de-favor numa garagem na Vila Teresa, doentes, desmilingüidos, e arrastava-se insolucionada a pendenga, desde o passamento do Justi velho, incendiando inimizades e maledicências e quiproquós, com ameaços de morticínio e advogação de doutor-de-anel-no-dedo, cunha interposta entre a outrora amorosa parentalha, cobiça por terras mal amanhadas no derredor de Rodeiro, pátria de voçoroca e mata-pasto, cupim e caninana, pedra e pó olvidando estarem de-mal, estipular a boa-nova, “Creusa, minha irmã!, minha irmã!” (abraços, lágrimas) “Quanto tempo, meu deus, quanto tempo!”, necessitava da sua concordância,

... fim dessa coisa-ruim... Ajeitamos um acerto."

Compro o seu pedaço! Não é coisa de muita valia, mas se é pra enterrar essa história."

O que precisa é de voltar tudo como antigamente, isso que importa."

O lote, no Paraíso, compraram-no a prestações, o bairro ainda banguelo, uma lonjura, nem água, nem força, calçamento então!, e escola?! A rua que afluía transversalmente do Beira-Rio trifurcava ao chegar à mina: ali, o terreno. À esquerda, íngreme, serpeava enfezada, trançadas valetas rompendo a poeira e o capim-gordura, casebres de pau-a-pique e viralatas, o Paraíso dos pobres. Ao centro, escalava uma suave elevação entre mangueiras e abacateiros, casas-de-alvenaria, poços artesianos, cachorros, o Paraíso remediado. À direita, ensaibrada, chácaras de muitos pomares, pastores-alemães e amplas varandas, o Paraíso dos ricos. Só, cercou-o, capinou-o, aplainou a base para o alicerce. Servente, as paredes ajudou a erguer. A laje bateram-na um bando de pinguços, domingo de sol entocado, a troco de bucho e cachaça.

A carroça, pagou-a à vista, ponto na Praça da Estação, cavalo e arreio, preço-de-ocasião, chaleirou-o um vivaldo, para meses após entender que o dito, coleado com algum-alguém ‘de-dentro’, lhe passara a perna, velhaco!, pois o misto agoniava, não-mais vagões-de-passageiros, que lhe garantiriam, parecia, o futuro, serviço certo de carga-descarga daqui-prali: arroz em casca e limpo, feijão, fubá, açúcar, farinha de trigo, rolo-de-arame-farpado, bacia-de-alumínio, balde, bobina-de-papel, vassoura, corda, fumo, farelo, lampião, lamparina, macarrão, óleo, querosene e, enfurnados em sacos-de-estopa, leitões, frangos, patos, gatos. Mudaram num sábado ranzinza e empossaram-se das paredes sem-reboco, do chão de terra-batida, dos cômodos sem portas, ausentes mobílias. Água para beber e cozinhar e lavar roupa e tomar banho buscavam na mina, sol-nascia-se-punha rastos de pingos estrelados na poeira. Necessidades faziam na ‘casinha’, na claridade, e no penico, nas intempéries, no após-o-ângelus. Logo... E planejava vermelhão no piso, paredes azuis-claras, janelas azuis-escuras, poço com bomba, banheiro com bojo, e fogão-a-gás e roupas-novas para a filharada e dentadura para a esposa e um poldro zaino para o lugar
do pangaré pedrês e e e

                        

as bicicletas operárias encontravam-no escuro ainda na bica, bom-dia-seu-miguel, desacorçoado ferventando na cabeça a ganhação do dia, e aflito largava o ponto, tão-logo desincumbia-se das mercadorias idas-vindas no misto, para percorrer os mais longínquos bairros, Justino, Matadouro, Dico Leite, Ibraim, Santa Clara, Leonardo, a-soldo no transporte de areia e pedra-britada e cimento e pedra-marruada e tijolo e esterco e lenha e grama e paralelepípedo e tudo, “Vai esfolar esse infeliz, ô Miguel”, alertavam insucessos os conhecidos, até

... cansado... o fôlego curto... bolo na garganta... aperto no peito... um troço esquisito...
Pode ser coração, o doutor Romualdo falou”, explicou à mulher, que, desesperada, largou de bater a roupa na tábua e precipitou-se casa adentro, “Ai, meu deus!, que tragédia!, que desgraça!, por que essa provação, meu deus?, que mal eu fiz?, que mal eu fiz?”, desmoronou de bruços na cama, pranteando-se, acendendo um rastilho de pavor no marido, quer dizer então que... talvez... aquele negócio... podia ser... severo... e

Morrer...

o pai pegou a lamparina, saiu, os cachorros ganiam e mijavam amedrontados, cartucheira à mão, um bicho-qualquer rondava o galinheiro, a ventania úmida rolava-arremessava as nuvens, roncavam trovões, coriscavam relâmpagos no céu negro, “Põe a botina, homem”, a mulher gritou à janela, vendo a luzinha frágil desaparecer surda atrás da tulha, as crianças, abrigadas sob a mesa da cozinha, cisma de temporal, ouviram o estouro, raio ou tiro, berraram, vacilante a mãe indecidia-se em sofrear os filhos, pingos dedilharam as telhas martelaram batucaram, a chuva abateu em fúria, látegos chacoalham a taipa, dança o teto na zoeira, vozes chapinham, “Nilda! Nilda!”, arreganha a porta o vento frio arruaça os cômodos, “... a cobra... a surucucu... a cobra...” Naquela noite, as águas transbordaram do açude, deitaram o arroz, arrastaram um garrote, escarafuncharam a trama de bambu-e-barro de duas choças, recolheram laranjas limões e abacates, arrancaram pés-de-pau, arruinaram a estradinha que deságua em Guidoval. A manhã despertava lambendo-se ao sol, quando os lábios rachados do pai, inchado e vomitando sangue, moveram-se para testemunhar e cerraram-se, abandonando a plasta malcheirosa que restava sobre o catre.

Morrer...

novo, meu Deus, muito novo! Quantos anos? meses? dias? horas? lhe pertenceriam ainda? Necessitava tanta coisa! Ao menos acompanhar a filharada encorpar, encaminhar-se, pedia muito? Quanta mágoa por não ter tido uma família de-sua!... A mãe, enterrado o marido, enjeitou a prole, perdeu-se no mundo, andeja e falante, bicho asselvajado sem pouso e juízo. Os dez irmãos repartiram-nos pelas redondezas, separados por serventia: os mais velhos, que já podiam manejar o cacumbu, empregados; os mais pequenos, por piedade, incorporados às criações; os do meio, para engorda, agregados. Seis anos, Miguel, embichado e raquítico, amarelo e quebradiço, pulou de fazenda em fazenda, malquisto, até ser pego por uns cultivadores de mudas de laranja em Dona Eusébia, onde, até pela morte desprezado, medrou entre viveiros de plantas e enchentes do Rio Pomba. Nunca soube dos outros, se vicejaram, se converteram-se em pessoas-de-bem, se desandaram. Rude, murcho, deserto, observava a mulher, as crianças, cabeças apoiadas em seu colo, fim de tarde, serena a catar piolhos; ou circunspecta na hora do banho a esfregar a bucha para arrancar a caraca; ou alegre à noite em volta de uma bacia de pipoca a contar casos de quando em Rodeiro; ou brava a passar mertiolate nos machucados; ou terna a fazer maria-chiquinha nas meninas; ou compungida a ensinar músicas da igreja... e ele arredio, xucro, arisco, imaginando gestos de carinho e só se apresentando para o esculacho, a tunda, a surra, como se fantoche lhe movessem as pernas e os braços o diabo, como se lhe espremesse a cabeça a vergonha caso amado fosse.

E acabrunhou-se, ânimo algum o afastava do quarto, o Rex amuado ao pé-da-cama, suspirosa a mulher batendo-cabeça lá-e-cá. Sentidas, as crianças adiaram brigas, correrias, traquinagens, gritaria e lutuosas fungavam quintal e corredor.
Inclinado à janela tardo-vespertina, o cigarro-de-palha penso dos lábios, seu Miguel reparava o ocaso
uma galinha escarva o chão duro, piam álacres os pintinhos
resignado, o pangaré mastiga o pasto seco do terreno vizinho
diligente, a mulher recolhe a roupa do varal
passa um conhecido, ’tarde, seu Miguel
meninos jogam bola na rua
aroma de café
lânguido, um gato ressona sob uma touceira de erva-cidreira
baldes dágua, seguem a vizinha, os filhos, ’tarde, Creusa
acende o cigarro-de-palha
uma das filhas afaga o Rex
uma bicicleta, ’tarde, seu Miguel
a mulher, Está com fome não, homem?, pega o ferro-de-passar-roupa
outras duas filhas brincam de casinha, à porta-da-sala
cabelos molhados, um uniforme caminha à escola
meninos jogam bola na rua
uma bicicleta, ’tarde, seu Miguel
acende o cigarro-de-palha
dois vizinhos a pé, Como vai indo, seu Miguel?
uma família crente, cabelos longas roupas, terno-gravata
resguardadas, as galinhas pipilam
obsessivo, o gato mia na cozinha
língua de fora, o Rex vem da direção da mina
os meninos tomam banho-de-cavalo
lenha queimada
grilos sapos grilos sapos
uma bicicleta-de-carga, compras
acende o cigarro-de-palha
o lusco-fusco
cheiro de arroz refogado
chia um rádio
noite, seu Miguel
vagalumes
a paisagem turva a escuridão
vagalumes
lança fora o cotoco do cigarro-de-palha, fecha a janela, senta-se à cama, não, não podia continuar assim, entregue, pacífico, tinha que lutar, fazer alguma coisa qualquer. Já acordado ao despertar o relógio, levantou, aspirou a enjoativa fragrância da madrugada e, calcando receoso o silêncio, esquivou-se das sombras espessas, perfilando-se frente ao prédio do INPS para tirar uma ficha.

O médico, champoliando a garatuja da receita, recitou Quinicardine três vezes ao dia, Digoxina um pela manhã.
... arrumar um troço qualquer pra distrair a cabeça...

(À frente Jesus, comprida cabeleira, longa túnica branca, homens e mulheres, conhecidos alguns, sobem devagar o morro escarpado. Ao alcançar o topo, suspendem a marcha. Um rapaz, a cara do Zelito, irmão nunca mais visto, cruza perpendicularmente o ajuntamento candeando uma vaca em chamas. O animal segue lento, lastimoso, conformado. Pensa chamá-lo, mas, “Miguel!”, ouve a convocação. Assustado, aproxima-se. Jesus deposita a mão pássara em seu ombro esquerdo e, volvendo para a direção de onde se deslocavam, fala, brando, “Miguel, você andou de lá até aqui”, apontando um minúsculo casebre, da chaminé um fio risca a paisagem. Após, volvendo para onde se deslocavam, “Falta pouco agora”, diz, apontando uma estreita trilha que coleia monte abaixo. Miguel afasta-se, começa a descer sozinho. Alguns passos mais, volta-se, imóvel o grupo permanece. Lá longe, Zelito (seria mesmo o irmão?), conduzindo a vaca em chamas, desaparece atrás de uma enorme pedra.)

A chaleira encheu novamente a caneca de café fervente, Miguel chupou o cigarro-de-palha, “Preciso de tomar um jeito, Creusa”, falou, observando, de soslaio, pelo ângulo da janela, o menino entrar no terreiro, cavalo encabrestado, a carroça cabeçalho braços erguidos aos céus. Este, o terceiro filho-homem, calculando do mais velho para trás, Paco, Paquinho, desengonçado que nem paquinha, gracejavam, abria o bué, resignou-se. Dependesse, corria atrás de bola sol a sol, o atentado! “Tem que ralhar com ele, homem, não quer saber de estudo, nada”, a mulher comentou, invadindo as idéias do marido. “Vive enrabichado na Vila Teresa...” “Vila Teresa?!”

- Lá tem campinho, pai...
- Aqui não?
- Não tem time...

Centerfór raçudo, em Dona Eusébia trocava bailes por peladas. De segunda a sexta revirava conversas para saber locais de rachas. Domingo, calção e camisa, defendia-se, chutes pernadas dribles empurrões socos murros cabeçadas mordidas beliscões cotoveladas escanteios soladas faltas xingamentos laterais tostões cusparadas gols e, escalavrado, canelas roxas, dedos-dos-pés tortos, unhas lascadas, costelas doridas, olhos raiados, dentes quebrados, tratava de mudas de laranjas e limões. Casado, abandonou o futebol pelas gravidezes. Enrijeceu, perna-de-pau.

Então...
Entre carretos, assuntava, fantasista. Cataguases tem Flamengo; Vasco, do Leonardo; América, da Granjaria. E, agora, também haverá Botafogo, do Paraíso!

Apalavrados:
vereador Ivo do Bazar Menezes: quinze camisas-de-malha brancas, gola-careca
doutor Romualdo: duas camisas-de-goleiro pretas
doutor Normando: vinte e quatro pares de meiões brancos
Chuteira, calção e suporte, intimidades, cada um o seu carrega.
Do comércio do Beira-Rio arrecadou doação e negociou tubos de tinta Guarany preta e Acrilex branca. E uma bola-de-couro oficial número cinco e uma caixa-de-isopor.

Fim-de-semana, Creusa sapecou o corpo na caloria de um fogareiro-de-serragem ferventando camisas-de-malha brancas regurgitando água preta, pitadas de sal para firmar a cor, empós quarar, secar, dobrar, “Custa nada proceder esse gosto, coitado...

Zé Peixe, solícito rapaz vizinho no Paraíso dos pobres, pintou com esmero a numeração nas costas, fez fôrma, desenhou escudo, escreveu em-dentro BOTAFOGO F.C., e decalcou com asseio no coração de cada jaqueta, coisa de artista, “Vai longe, esse”, cheiro de acrílico domando a casa, seu Miguel nem mais alembrando do coração manco.
O elenco arregimentou-o boca-a-boca, gente moradora de ali-por-perto, encostados no banco-de-reservas do Flamengo, do Operário, do Manufatora, do Cataguases, veteranos e juvenis, valorosos e descontentes, até um diz-que sobrinho do Friaça, aquele da final contra o Uruguai, dois-a-um, Maracanã, Copa de 50, seboso e mascarado, treteiro e falastrão, entrou-saiu do escrete ainda no primeiro treino, desaforado!

E partidas vieram e vitórias.

De começo, tímidas, como a estréia, despovoada de torcida, um-a-zero contra o Vila Teresa, no alto do Paraíso, onde, chutada, a bola escorria dezenas de metros, até a amparar uma touceira, uma arvrinha, restos de gravetos secos. Quarto jogo, entretanto, afamado o time, arrastava a molecada a bunda barranco abaixo para retomar a bola; vendedores de laranja, de garapa, de picolé, de algodão-doce, de pipoca, arrodeavam as laterais; namoradeiras grasnavam ais de gulodice; e os olhos todos perplexos assistiram o três-a-um sobre o Vasco, que até campeonato da Liga Esportiva Cataguasense disputava...

Judicioso, seu Miguel segredava para em-antes das pelejas pouco comer no almoço, abstinência do beber e do fumar, Iodex nas coxas, faixa-de-gaze nas canelas e o pelo-sinal quando nas quatro-linhas adentravam. Nas contusões, gelo, Emplastro Sabiá, Beladona. Senhor, instruía, xingava, provocava, alertava, modificava, substituía, vibrava. Tratava embates e coletava apostas – paternalista, dividia o ‘bicho’ em barulhentas rodadas de cerveja e cachaça e cigarro. Estratego, em grupo rumavam coesos bicicletas ao terreno adversário, desassombrados e acintosos, valentes e intimidativos, anus-pretos, por destemor.
Reputados, sobreveio o inaugural desafio intermunicipal – nona partida, pelo Zé Peixe, contabilista de fichas-técnicas, que, incompatibilizado por ruindade, mas porém entusiasta, a tudo se alinhava. E, no deslocamento a Astolfo Dutra, para digladiar com o Portuense, teúdo e manteúdo de renome regional, alugaram o caminhãozinho International KB-6 do Zé Pinto, da Vila Teresa, enguiço, suor e poeira, incontestável e aritmético dois-a-um. Encachoeirados, outros certames: Spartano, de Rodeiro (dois-a-zero), Primeiro de Maio, de Miraí (um-a-zero), Cruzeiro, de Guidoval (três-a-um). Afora, os manjados Bairro-Jardim, Brasil, América... Em resumo, apenasmente não passaram-a-fio os gigantes Operário, Flamengo, Manufatora e Cataguases.

A Rua do Comércio faiscavam luzinhas adornando as lojas, despojos desejos expostos em vitrinas decoradas, Natal.

Domingo, vinte, seu Miguel espertara a manhã zanzando sem-lugar no aguardo do cata-níquel fretado pelo doutor Normando, que conduziria o plantel a Recreio para o enfrentamento com o Ideal, interdita a viagem a caminhão, já que transitariam pela Rio-Bahia, meu deus, a Rio-Bahia!, gente ali havia que nem sequer Leopoldina conhecia... Às onze, encostou junto ao meio-fio do bar do Auzílio, a charanga surdo-repinique-tamborim-zabumba-pandeiro-apito choramingando por favor, vai embora,/minha alma que chora,/está vendo meu fim./ Fez do meu coração a sua moradia,/ já é demais o meu penar, e iniciou-se a carregação, sacos de laranjas, lima, baía, campista, cascadas, e água-da-mina e dois garrafões de sangue-de-boi e a bolsa-de-massagem e um barrilzinho de cachaça-curtida e quatro dúzias de foguetes e o saco com uniformes e a caixa-de-isopor com gelo, e pouco-em-pouco assomaram os atletas, comidos e satisfeitos, seu Miguel, à porta, dentes às escâncaras, inspecionando. Sol a-pique, última conferência, “Pode fechar... Vambora, meu povo!”, o motor arranhou, tossiu, resfolegou, zangou-se, calçõezinhos e viralatas escoltaram as rodas até extenuados renunciarem, felizes.
Paco sombreava, xodó, desde a estréia, “Meu amuleto”, seu Miguel exibia-o, orgulhoso. Agora, à janela, especulava a trêmula paisagem que ardia lá fora, bois, cupins, urubus, casebre abandonado, árvores, cachorro, urubus, charrete, sombrinha, chapéu, andarilho, urubus, nuvens, dormitam alguns, sussurram outros, ri aquele, o pai vaga pelo corredor, sonha talvez, Ano que entra...
Sobre arquibancadas vazias, desmorona a tarde quente
carrinho-de-picolé
o bêbado macaqueia passos de um samba improvável
um viralata alardeia-se em covardia
o doido cospe palavras grunhidos parvoíces
um mico acata desconfiado pipocas das mãos de um deslumbrado garoto
o soldado assiste displicente aos passes
uma preguiça flecha em repouso arranha o tempo trepada num oiti
o vento acaricia as folhas das mangueiras que espiam por sobre o muro

dois-a-zero

e esgotam os garrafões na farra do sangue-de-boi e estouram quarenta e oito foguetes e fatigados recordam zenãomente lance-a-lance a partida e esfomeados incitam o motorista, LESMA!, a ir mais depressa, entrecortando a cantoria a fala do seu Miguel, comovido, “Nossa senhora!, porque sinceramente...” Imperceptível, a noite apaga o lá-fora...

O ônibus transpõe o pátio irregular, sem calçamento, de um posto-de-gasolina, “Tem que abastecer”, antecipa-se o chofer aos protestos, estaciona juntas estralando frente ao bar de lâmpadas enfermas e desembarcam todos ao mictório. Embora a bexiga cheia, Paco pensa permanecer, de longe espreitando a bagunça que anima o elenco, mas o pai o incita, “Vamos lá esticar as pernas, falta um bom trecho ainda”, e, voluntarioso, desce, infundindo-se no calor, luzes dos faróis que pirilampam a Rio-Bahia.

Acanhado, para não mijar com os mais velhos invade a escuridão, cricris de grilos, semi-incêndios de vagalumes, bumbo de sapos, zunzuns de pernilongos, dois cavalos estendidos assustam-se levantam-se afastam-se, apático um cachorro fareja o chão. Às cegas, busca um lugar para se aliviar, esbarra em dois escangalhados caminhões, gêmeos em sua desamparada ruína. Intrigado, vazias as boléias, passos descalços movem-se temerosos curiosos, entre as carrocerias de lonas esburacadas pareceu escutar sussurros, murmúrios, pára. Orelhas afiladas, coração açulado. O breu. Ribombam motores que irrompem da Rio-Bahia. Passos descalços movem-se temerosos curiosos, perfila-se à traseira do F-600, da boca da capota exala mau hálito. Receoso, seus dedos miúdos arrojados franqueiam uma pequena fresta do fundo da treva brilham dezenas de faíscas alumiando seu pálido rosto aterrorizado,

Menino, onde é aqui?”, uma débil voz indaga, ignoto sotaque; paralítico o corpo estaca, mãos esqueléticas rostos encaveirados, “Que povoado é esse, menino?”, e, seca, a língua é medo e é pavor, “É São Paulo já?”, avoluma-se o burburinho, “É?”, e descarnados braços oferecem-se em murchas bocas, “Vai pra São Paulo também?”, geme um neném, “Amonta aqui!”, risos, “Ô, menino!
e na correria pálido choca-se com o pai, impaciente, mastigando a ponta do cigarro-de-palha, à porta do ônibus, “Estava todo mundo te esperando, raio! Entra logo, vai!”.


© Luiz Ruffato - Escritor
Foto de Mário Castello
publicado por ardotempo às 00:42 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Domingo, 27.04.08

Conto-crônica (inédito) de Mariana Ianelli

Mariana Ianelli

                      
                   
Já estivemos entre os primeiros da fila, pelo menos, é o que consta nos
registros. Havia muito o que perder naquele tempo, mas quem sabia disso?
Ninguém sabia.

"Naquele tempo" é o que dizemos quando a simples missão de
atravessar a rua se tornou um verdadeiro sacrifício, ou quando o espelho do
banheiro converteu-se na vitrine de um museu pessoal de arqueologias.

Continuamos na fila depois de dar a meia-volta e lentamente vamos chegando à
outra ponta, vencidos por um par de sapatos velhos, uma cirrose e o espanto
de uma agenda telefônica cada vez mais defasada e fictícia. Nossos antigos
colegas de classe bem poderiam ter permanecido naqueles bancos caquéticos,
decorando o teorema de Tales, o futuro do pretérito, a Questão das
Investiduras ou a estrutura molecular dos polímeros. Mas não.

Existe sempre um mensageiro do sinistro que vem, não se sabe de onde,
só para dizer que Ana, vocês se lembram de Ana, a campeã dos torneios
de basquete?, pois então, nas últimas férias de julho ela voltava de uma viagem
com a família, à noite, pela via expressa, quando um caminhão desgovernado
simplesmente; e o Gordo, vocês se lembram dele?, pois não foi que o coitado teve
um surto, sozinho num sítio lá onde o mundo faz a curva e, sabem como é,
de repente o desespero, o vazio por todo lado, a ronda do caipora, as ratazanas, as serpentes, o mato gritando noite adentro e aquela irresistível espingarda na parede.

De quando em quando também chegam notícias dos que deram certo e
conservaram os dentes fortes, a cabeça razoavelmente lúcida e o sangue,
apesar dos pesares, limpo. Entre eles, o Toninho, que nós já desconfiávamos,
finalmente ali, na capa de uma revista, com seu rosto lânguido de Psiquê
enrolado num manto de caxemira; ou ainda, as famosas pernas do colégio, que
de um dia para o outro começaram a desfilar pelos corredores de uma clínica
de estética, atendendo a madames e falsas atrizes.

Assim vamos passando, nós, esses pequenos montes de areia engarrafados
no funil de uma ampulheta depois de amanhã mais cheia embaixo do que em cima.

Com os pés enfiados nos chinelos, vamos até a mesa da cozinha e invadimos as novas páginas da História para ver quem são agora os vanguardistas, os milhões de meninos e
meninas se acotovelando no início da fila. São eles que nos empurram
adiante, que sacodem o rabo da salamandra, estas crianças de mãozinhas
estendidas, cheias de barro e de fuligem, estas caras alarmadas, esculpidas
pela fome e estas patas mansas de filhotes instruídos pela hedionda
estupidez televisiva.

E nós amamos, nós aprendemos a amar uma geração nascida da loucura e do sublime,
que ainda insiste na esperança, quem sabe se por ignorância ou por delírio, e que
oferece à roleta do jogo a própria vida, como antes nós arriscamos e perdemos a nossa aposta em um Deus impossível.


                                 



© Mariana Ianelli, 2008
publicado por ardotempo às 00:23 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Quinta-feira, 24.04.08

a fenda










Extraido do conto © A caverna - Alfredo Aquino, A Fenda - Iluminuras, 2007
publicado por ardotempo às 15:08 | Comentar | Adicionar

Conto Carta de Ignácio de Loyola Brandão


Treze bilhetes fundamentais





1

Adriano, meu amor
Por quê...?
Beijos
Lu

2

Adriano, meu querido,
Você não me ama mais.
Beijos
Lu

3

Querido,
Você não me deseja mais.
Beijos
Lu

4

Querido,
Você não me quer mais.
Beijos
Lu

5

Querido,
Você não me suporta mais.
Beijos
Lu

6

Querido,
Você não pensa mais em mim.
Beijos
Lu

7

Querido,
Você não me trai mais.
O que houve?
Beijos
Lu

8

Querido,
Você não tem saudades
do meu suor salgado?
Beijos
Lu

9

Querido,
Você não tem mais vontade de me algemar
ao pé da mesa de cozinha?
Beijos
Lu

10

Querido,
Quer que eu me mate?
Beijos
Lu

11
Querido
Sabe que contratei um assassino?
Beijos
Lu

12

Querido
Não tenho coragem de te matar.
Prefiro me embriagar, cheirar pó,
sair dando tiros como uma serial killer,
sair dando para todo mundo menos para você,
mas que saiba que estou dando.
Beijos
Lu

13

Querida Lu,
Viu?
Você não vai mais dar para ninguém.
Beijos
Adriano





© Ignácio de Loyola Brandão - Cartas, Iluminuras - 2005
publicado por ardotempo às 03:24 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Domingo, 02.03.08

A cabeça



A dor na cabeça aumentara.
Começara na noite anterior depois do jantar, um sanduíche industrial, insosso e gorduroso, um erro imprudente, ao qual B. deixara-se levar sem resistência. 
Tornara-se agonia crescente durante o abismo noturno. Fora uma platitude vertical em claro, na escuridão e no calor do verão tropical.
De tempo paralisado como uma fermata.
Intervalo desagradável, perpétuo, estivera apenas metrizado por gemidos imaginários ritmados com a respiração espaçada. Foi começando aos poucos e logo já se fazia dor, sem início e sem fim. Sem sentido. Não houvera a vertigem, apenas a dor. Estava exausto na manhã seguinte, após a vigília indesejada.
A dor o atacara com intensidade. Como um alfinete longo, fio de prata sem volume, macabra criação de tortura científica. Enfiado. De dentro para além dos limites do crânio e transformara o mundo ao redor em algo inchado, esponjoso, disforme  e desesperador.
Uma enxaqueca, talvez. Prolongada como suplício. Intensa, não saberia quantificá-la de outra maneira porque nada sentira parecido antes.
Tudo estava ocupado. Nervos, células, fluídos e pensamentos. Tudo se fizera dor.
A cabeça, os olhos embaçados sem foco, os gestos reumáticos. O fígado, obsoleto pelo arsênico de Napoleão, interpretava-se como um protagonista trespassado e friamente dividido. Congestionado. Abismado e incapaz. Sem função vital.
Lâmina transversal, polida, resplandecente e áspera no corte excessivo.
A dor não era uma palavra, um conceito.
Era objeto substantivo, físico, metal em fusão perdendo calor, que transbordava desconfortável num espaço um tanto maior que a caixa craniana e expulsava as abstrações, os pensamentos e as possibilidades das ações refletidas.
Punha os demônios na sala e no quarto.

Era apenas dor. Imperativa, sem matizes.

Ele não era mais um indivíduo, um sujeito de pensamentos e de ações, de humor moderado e silencioso. Não mais. Agora ele passara a ser a dor. Simplesmente a dor, que tomava conta e espaço de tudo em torno e na sua atenção, desfiada.
A dor era agora o tempo, intumescido e imóvel.
Gesso nauseabundo. Um rumor – infinito – de pele de surdo, sem a usina das pancadas, somente o ruído profundo, da gruta infernal, monótono.

Aquilo se estendera pela manhã e pelo princípio da tarde.
Mas passara lentamente. Em câmera bem lenta. Diminuíra e como chegara, partira.
B., que era a dor, passou a ser o nada. Um trapo, um miolo de pão dormido.


© Alfredo Aquino – Conto A cabeça, Revista Aplauso nº 86 - Porto Alegre RS  2007
    Pintura de Siron Franco
publicado por ardotempo às 02:34 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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