Útil ou inútil?
Reflexões sobre um blog
Sobre o sentido, da permanência, da conveniência e da atividade de publicação de um blog.
Reflexões sobre um blog
Sobre o sentido, da permanência, da conveniência e da atividade de publicação de um blog.
Amado Couto
Juiz de Fora, Brasil, 1948 - Paris, 1989
Couto escreveu um livro de contos que nenhuma editora aceitou.
O livro perdeu-se. Depois foi trabalhar para os Esquadrões da Morte, sequestrou, ajudou a torturar e viu como alguns era mortos, mas ele continuava a pensar na literatura e mais precisamente naquilo de que a literatura brasileira precisava. Precisava de vanguarda, de letras experimentais, dinamite, mas não como os irmãos Campos, que achava aborrecidos, dois professorezecos sem graça, nem como Osman Lins, que ele achava francamente ilegível (então porque é que publicavam Osman Lins e os seus contos não?), mas sim algo moderno, mais a atirar para o seu género, algo policial (mas brasileiro, norte-americano, não), um continuador de Rubem Fonseca, para nos entendermos. Esse escrevia bem e, embora dissessem que era um filho da puta, a ele não lhe constava isso.
Um dia pensou, enquanto esperava com o carro num descampado, que não seria má ideia sequestrar e fazer qualquer coisa a Fonseca. Disse isto aos seus chefes e estes ouviram-no. Mas não levou a cabo a ideia. Meter Fonseca no coração de um verdadeiro romance enevoou e iluminou os sonhos de Couto. Os chefes tinham chefes e a dada altura da cadeia o nome de Fonseca evaporava-se, deixava de existir, mas na sua cadeia privada o nome de Fonseca cada vez era maior, mais prestigiado, mais aberto e receptivo à sua entrada, como se a palavra “Fonseca” fosse uma ferida e a palavra “Couto” uma arma.
Assim que leu Fonseca, leu a ferida até esta começar a supurar, e depois adoeceu e os seus colegas levaram-no a um hospital e dizem que delirou: viu o grande romance policial-brasileiro num pavilhão de hepatologia, viu-o com pormenores, com trama, nó e desenlace e pareceu-lhe que estava no deserto do Egipto e que se aproximava como uma onda (ele era uma onda) das pirâmides em construção. Escreveu, pois, o romance e publicou-o. O romance chamava-se Nada a Dizer e era um romance policial. O herói chamava-se Paulinho e às vezes era o motorista de uns senhores, outras vezes era um detective e ainda outras um esqueleto que fumava num corredor a ouvir gritos distantes, um esqueleto que entrava em todas as casas (em todas não, só nas casas da classe média ou dos pobres abaixo do limiar de pobreza) mas que nunca se aproximava muito das pessoas. Publicou o romance na colecção “Pistola Negra”, que editava policiais norte-americanos, franceses e brasileiros, mais brasileiros ultimamente porque faltava o dinheiro para pagar royalties. E os seus colegas leram o romance e quase nenhum o percebeu. Nessa altura já não saíam juntos de carro nem sequestravam nem torturavam, embora um ou outro ainda matasse. Tenho de separar-me desta gente e ser escritor, escreveu Couto nalgum lado. Mas dava muito trabalho.
Uma vez tentou ver Fonseca. Segundo Couto, olharam um para o outro. Está mesmo velho, pensou, já não é Mandrake nem nada, mas teria trocado com ele nem que fosse só uma semana. Também pensou que o olhar de Fonseca era mais duro que o seu. Eu vivo entre piranhas, escreveu, mas o Sr. Rubem Fonseca vive num aquário de tubarões metafísicos. Escreveu-lhe uma carta. Não recebeu resposta. Então, escreveu outro romance, A Última Palavra, que a Pistola Negra lhe publicou e que trazia Paulinho novamente à cena e que no fundo era como se Couto se despisse diante de Fonseca sem qualquer pudor, como se lhe dissesse aqui estou eu, sozinho, a carregar com as minhas piranhas enquanto os meus colegas percorrem as ruas centrais, de madrugada, como os homens do saco que levam os meninos, o mistério da escrita. E embora provavelmente soubesse que Fonseca nunca leria os seus romances, continuou a escrever.
Em A Última Palavra apareciam mais esqueletos. Paulinho já era quase um esqueleto o dia todo. Os seus clientes eram esqueletos. As pessoas com quem Paulinho conversava, fornicava, comia (ainda que regra geral comesse sozinho), também eram esqueletos. E no terceiro romance, A Mudazinha, as principais cidades do Brasil eram como esqueletos enormes, e as povoações eram também como esqueletos pequenos, esqueletos infantis, e às vezes até as palavras se tinham metamorfoseado em ossos. E já não escreveu mais. Alguém lhe disse que os seus colegas da recolha estavam a desaparecer, ficou com medo, isto é, ficou com mais medo no corpo. Tentou desfazer os seus passos, encontrar caras conhecidas, mas tudo tinha mudado enquanto ele escrevia. Alguns desconhecidos começavam a falar dos seus romances. Um deles poderá ter sido Fonseca, mas não foi. Tive-o nas minhas mãos, anotou no seu diário antes de desaparecer como um sonho. Depois foi para Paris e lá enforcou-se num quarto do Hotel La Grèce.
(in A Literatura Nazi nas Américas, de Roberto Bolaño, tradução de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Quetzal, 2010)
Publicado por José Mário Silva, no blog Bibliotecário de Babel
Mario Vargas Llosa
“Pela sua cartografia das estruturas de poder e pelas suas imagens incisivas da resistência, revolta e derrota dos indivíduos.”
Comunicado da Academia Sueca, tradução de José Mário Silva
Publicado no blog Bibliotecário de Babel
Buenos Aires adormecida
João Ventura
Li já não sei onde que, quando tinha dez anos, Julio Cortázar viveu a inesquecível experiência de subir ao décimo andar de um edifício em Buenos Aires e dali observar a cidade adormecida.
Era, então, uma criança sensível, sem graça e estranha. A primeira metade da sua vida tinha-a passado com a sua família na Suíça, nas margens de uma guerra cujo alcance tardaria algum tempo a conhecer. No final da guerra, a sua família regressou à Argentina. Algum tempo depois, tinha, então, seis anos, o seu pai sairia de casa para não mais voltar, ficando, assim, a viver com a sua mãe, tias e a avó alemã, intuindo que a vida era algo mais do que as lições de piano e os livros de Julio Verne.
Era o único homem num território povoado de jasmins, pessegueiros e pianos, perto da estação de Ferrocarril Sud, no metasuburbio de Banfield, nos limites da zona portuária. Por essa altura, preferia os livros de Julio Verne aos jogos do clube local, o Atlético Bánfield, um dos pioneiros do futebol argentino, o que lhe causou alguns problemas de relacionamento com os seus colegas de escola, logo ultrapassados quando estes descobriram a sua assombrosa facilidade para escrever, com estilos apropriados, as composições escolares passadas pelos professores.
Dou, agora, com uma fotografia nocturna de Buenos Aires, tirada por Horacio Coppola, não sei se na mesma noite em que o pequeno Julio subiu ao décimo andar. Mas sei, porque leio nuns seus versos precoces, que a sua impressão foi tão intensa que desencadeou nele um tal estado de excitação donde só regressaria depois de escrever que «Ya la ciudad parece así, dormida/ una pradera noctural, florida/ por un millar de blancas margaritas».
João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades
Retóricas do 11 Setembro
João Ventura
Foi há nove anos que a queda das Torres Gémeas, em Nova Iorque, inaugurou de forma tragicamente espectacular o novo milénio, trazendo consigo o regresso da História depois do seu «fim» proclamado por Francis Fukuyama e de um período em que se assistiu a uma espécie de «greve dos acontecimentos» - segundo a fórmula de Baudrillard - numa Europa e América sem guerras desde 1945. O espectáculo de fogo mortal, visível em tempo real em todo o planeta, superaria todas as ficções, tornando-se na grande metáfora de um mundo com anemia moral e alimentado pela hipocrisia e pela felicidade engarrafada, mas irremediavelmente ferido a partir do 11de Setembro de 2001.
A vida nova depois do 11-S, simultaneamente maculada e redentora, tem dado origem a uma repetição dos discursos sobre o acontecimento, visando a sua «legibilidade», à luz de interesses variados e, muitas vezes, antagónicos, legitimadores da resposta ocidental à «barbárie» de um Islão desfigurado, perseguida pelo «profeta electrónico» Bin Laden, cujas aparições acontecem na única realidade do nosso tempo, a televisão. Que caminhamos agora entre os vestígios de uma catástrofe cuja onda de choque continua a repercurtir-se no mundo já o sabemos. Só não sabemos é se a catástrofe ficará por ali, sepultada junto ao ground zero nova-iorquino, agora irremediavelmente ameaçado pelo novo skiline mercantil em construção no mesmo lugar ou se continuará, como uma onda de choque imparável, a desmoronar cidades e vidas longe daquele epicentro.
Haverá, ainda, redenção possível depois de tanta ruína? Se, num estado próximo do sonambulismo, W. G. Sebald caminhasse depois do 11-S sobre os mesmos tijolos calcinados, talvez voltasse a dizer: «Demasiados edifícios ruíram, amontoou-se demasiado entulho, são intransponíveis os sedimentos e as moreias» [Os Anéis de Saturno, Teorema, p. 172].
Mas será que o 11-S, nas suas causas e efeitos, constituiu uma cesura radical na narrativa moderna? Ou não terá sido antes mais um episódio de esbanjamento trágico do potencial redentor da humanidade? Foi, seguramente, um regresso ao fundamentalismo religioso incentivado pelo «choque das civilizações» (Samuel Huntington, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Gradiva, 1999) ou «choque dos preconceitos» - como corrigiu Edward Said (Orientalismo, Cotovia, 2004] -, marcado pela tendência para a «teologização do político» e para a «instrumentalização política da religião» [Alain Badiou, Circunstances, Éditions Léo Scheer, 2004] tão presente nos discursos maniqueístas dos protagonistas desta tragédia global. Seja como for, cesura ou continuidade histórica, neste tempo de ebulição catastrófica, ganham adeptos as teorias salvícas que vão hipostasiando um «nós» ocidental contra um Islão desfigurado pela violência fundamentalista, fazendo-nos, assim, roçar um abismo cujo fundo negro desconhecemos. Multiplicam-se, por isso, os discursos que visam a «legibilidade» do 11-S à luz dessas mesmas teorias que conduzem a um perigoso resvalar para territórios de liberdade condicionada no mundo ocidental, refém, sempre, da maldição moderna do petróleo.
Eis a retórica dominante na efeméride negra do 11-S, como se o acontecimento apenas pudesse ter «legibilidade» através de um discurso legitimador da resposta americana enviesada, não tanto contra o terrorismo, mas contra um «inimigo providencial» [Carl Schmidt, Théologie politique, Gallimard, 1969] , em cujas fileiras se contam já milhares de vítimas inocentes, iraquianas sobretudo, mas também soldados das forças internacionais, enquanto deixa os sequazes de Bin Laden à solta no Afeganistão e no Paquistão. Ou, num sentido oposto, nos discursos negacionistas de uma certa esquerda, anacrónica, e também ela maniqueísta, só que invertendo os polos do bem e do mal.
E qual retórica da literatura sobre o 11-S? Tem sido ela capaz de retraçar o acontecimento dando conta da consternação do «mundo ocidental» pós 11-S? No epicentro da catástrofe, vários escritores americanos publicaram romances sobre a vida depois do 11-S. «Ela falou da torre […] claustrofobicamente, o fumo, os corpos desmembrados, e compreendeu que podiam falar daquelas coisas somente entre eles» - escreve Don DeLillo em Falling Man, um romance circular a várias vozes : a de um sobrevivente do atentado, a de sua mulher e de um terrorista. E Claire Messud, em The Emperor’s Children: «aquele imenso buraco parecia una extensão da sua própria dor». E Jay McInerney, em Good Life. E Jonathan Safran Foer, em Extremely Loud & Incredibly Close/Extremamente alto & incrivelmente perto (Quetzal, 2007).
Claro que mesmo nesta literatura estamos, ainda, diante de visões hipostasiadas de um «nós» que exclui os outros, enraizadas na experiência ocidental do acontecimento, visões parciais, portanto, mas que nem por isso deixam de constituir outras formas de retraçar o acontecimento, preferindo a ficção à interpretação, a experiência individual do acontecimento à sua explicação alegórica, a sua subjectivação discursiva à sua «legibilidade» compulsiva, sem cair na tentação didáctica, mas, como cabe à literatura, expondo-nos destinos tiritantes que poderiam ser os nossos, num mundo caminhando alegremente para um «pôr-do-mundo» cada vez mais desvanecido e alheado [Peter Sloterdijk, Weltfremdheit / Alheamento do mundo (Relógio d´Água).
João Ventura - Publicada no blog O leitor sem qualidades
"O mar anda/ e a água canta”
José Mário Silva
Quando a Alice tinha três anos (quase a fazer quatro), viu-me certo dia a rabiscar furiosamente um moleskine e perguntou logo: «O que é que estás a fazer, papá?» Expliquei-lhe que era um poema e ela ficou ao meu lado, silenciosa, a ver os traços deixados pela tinta negra da Bic.
Na manhã seguinte, apanhei-a deitada no chão do quarto, a rabiscar furiosamente um caderno. A página estava cheia de gatafunhos ilegíveis, mas muito bem ordenados, linha a linha. Pormenor importante: as linhas não chegavam ao fim da página. Foi a minha vez de perguntar: «O que é que estás a fazer, Alice?» E ela, como já terão adivinhado, respondeu: «poemas».Só isto já merecia ser contado, mas a história não acaba assim.
Quando peguei no caderno, apercebi-me de que o primeiro poema tinha apenas duas linhas. E fiz a pergunta óbvia: «Podes dizer-me, Alice, o que está escrito aqui?» Então ela aproximou-se e leu, muito desembaraçada, apontando o seu pequeno dedo aos gatafunhos:
«O mar anda /
e a água canta».
Eu nem queria acreditar no que tinha ouvido. Pedi-lhe que repetisse. O dedinho lá seguiu o primeiro verso,
«O mar anda»,
e depois o segundo,
«e a água canta».
O espanto, o espanto, o espanto. Fiquei a repetir os dois versos, a apreciar a sua música, a sua ressonância helénica (um vislumbre de Ulisses e as sereias), perplexo com isto de uma criança de três anos ser capaz de criar assim, out of the blue, um dístico que, perdoem-me o exagero, pede meças a muita coisa que se vê para aí publicada.
Agora, se um dia a Alice se tornar poeta e lhe perguntarem quando é que começou a escrever poemas, ela pode responder com a data exacta: 3 de Janeiro de 2009. E acrescentar os dois versos:
O mar anda/ e a água canta.
O entusiasmo foi tal que a Alice, à noite, teve dificuldade em adormecer. «Estou a pensar nos meus poemas», dizia ela, com os olhos a piscarem de sono.
Disse-lhe que dormisse, que sonhasse com palavras e que na manhã seguinte escrevesse mais versos no caderno. E assim aconteceu.
O primeiro contacto directo com a poesia foi tão belo e espontâneo que não merecia prolongamentos forçados. O reencontro acontecerá quando tiver de acontecer. E nessa altura ela saberá que o pai não se esqueceu dos seus primeiros poemas, escritos quando ela ainda nem sequer sabia escrever.
José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel
Luto em vermelho
Helena Ortiz
A amiga me liga pela manhã para me contar. Foi assim que eu soube, por telefone, como se recebe a notícia da morte de um parente. Estamos viúvas, ela disse, e chorava. Mas eu sou forte, ainda consegui dizer à doutora que não tomo remédios, não tenho deficiência física e a pressão é boa. E daí, o que importava isso? José Saramago estava morto, e eu pensava primeiro no mundo, depois em Pilar del Rio, porque a ela sim foi dada a sorte de ter se tornado a amada do escritor. Foi para ela que ele escreveu a mais linda dedicatória que já vi: "A Pilar, como se dissesse água". E será ela, certamente, quem mais sentirá a falta dele.
Temos os livros, e a eles voltaremos quantas vezes quisermos. Ela não. Não mais a convivência em Lanzarote, não lerá os originais em primeira mão, não trocará com ele as carícias possíveis, não recolherá os silêncios em que trabalhava.
Para nós foi-se o grande escritor, um humanista que se teimava comunista, o anti-clerical por natureza (e acho que se divertia com isso). Um homem de talento, mas de igual coragem, que se aprendeu e se fez homem em condições difíceis, sem nunca esquecer. Mas para ela foi-se não só o grande escritor, o homo politicus que apontava os vícios neoliberais, o desvario belicista, a intolerância, foi-se o homem que amava, deixando mudos os espaços do entendimento, a casa, a sala, a cama, a intimidade. Escrevo isso porque uma das coisas que mais me chamava atenção na obra de Saramago era sua consideração pelas mulheres, pelo sentimento feminino que tão bem apreendeu, pela importância que reconhecia e conferia à mulher. Daí porque imagino com que delicadeza devia tratar sua Pilar.
Depois pensei em mim, na minha própria tristeza, na certeza de saber que perdi aquele que era meu deleite, fonte de compreensão, orgulho da espécie, que eu sempre achei que o artista deve ter um papel político, deve dizer o que pensa, deve assumir o que sente. Ele era assim. E quem mais? Me diga por favor que eu quero saber.
Em casa, não pude fazer mais nada que pensar, pensar em que talvez o poema de Idea Vilariño postado há dois dias, Pobre Mundo, tenha vindo ao encontro desse acontecimento tão temido, tão indesejado e tão previsível. Que ao morrer o escritor, o poeta, o incansável lutador, nossa voz ficou ainda mais fraca porque era ele, com sua coragem e lucidez, que nos abria os olhos para os equívocos dos caminhos obscuros que aceitamos percorrer.
E então fui à cozinha, e chorando sobre pimentões vermelhos e berinjelas pensei no luto vermelho daqueles que não podiam nem chorar, que precisavam se esconder para prosseguir, calar a respiração a bem de se manterem vivos, retrair-se para avançar, e sempre engolir o choro. Agora podemos chorar alto, falar palavrão, reacender as dúvidas. Mas porque aprendemos (ou ainda não?) a lição de Saramago: "Já estamos a viver neste planeta como sobreviventes. A cada dia que amanhece temos que fazer o possível para sobreviver. E devemos fazê-lo como insurgentes sistemáticos".
Talvez assim descubramos, cada um de nós, o segredo da ilha desconhecida.
Helena Ortiz - Publicado no blog Integrada e Marginal
Ferreira Gullar, poeta maior
A atribuição do Prémio Camões – no valor de cem mil euros (metade dos quais pagos por Portugal; metade pelo Brasil) – a um escritor cuja obra, no seu conjunto, contribua para o enriquecimento do património literário em português, gera todos os anos entusiasmos e incómodos na comunidade cultural lusófona. Independentemente dos méritos de quem ganha, há sempre a desconfiança de que os critérios do júri são mais da ordem da diplomacia – e do equilíbrio de forças dentro do espaço da língua comum – do que da literatura. A edição de 2010 não deverá ter escapado a esta tendência.
Na passada segunda-feira, antes do anúncio oficial feito pela ministra da Cultura, Gabriela Canavilhas, o júri – composto por dois brasileiros (António Carlos Secchin e Edla van Steen), dois portugueses (Helena Buescu e José Carlos Seabra Pereira), um moçambicano (Luís Carlos Patraquim) e uma são-tomense (Inocência Mata) – esteve reunido durante duas horas. À partida, era previsível que o vencedor fosse brasileiro ou português, uma vez que em 2009 o Camões foi para o poeta cabo-verdiano Arménio Vieira e a lógica rotativa (nunca admitida) do prémio implicava um regresso ao território das duas maiores potências da CPLP. Se os jurados brasileiros defenderam com empenho a causa de Ferreira Gullar, autor que Secchin, um dos “imortais” da Academia Brasileira de Letras, já tinha de resto proposto como candidato ao Nobel (em 2002), os representantes portugueses no júri tudo fizeram para que a distinguida fosse Hélia Correia. A decisão foi difícil e tomada por maioria, prevalecendo a ideia de uma maior urgência em premiar Gullar (n. 1930) do que a autora de Lillias Fraser, 19 anos mais nova. "Quase demos o prémio para a Hélia Correia e teria sido muito bom também, mas ela tem tempo", admitiu Edla van Steen no fim da conferência de imprensa em que foi lida a acta do júri, na qual se sublinha "a alta relevância estética da obra de Ferreira Gullar, em especial a poesia, incorporando com mestria tanto a nota pessoal do lirismo quanto a defesa de valores éticos universais".
Único editor de Ferreira Gullar em Portugal, Jorge Reis-Sá considera que a atribuição do prémio é “inteiramente justa”, até porque volta a distinguir a poesia brasileira, vinte anos exactos após o Camões atribuído a João Cabral de Melo Neto. Hoje a trabalhar no grupo Babel, Reis-Sá publicou em 2003, nas Edições Quasi (entretanto falidas), as mais de 500 páginas da Obra Poética completa de Gullar. Na altura, teve oportunidade de visitar o poeta na sua casa do Rio de Janeiro, na companhia de Eucanaã Ferraz, e recorda um homem “inteligentíssimo”, correcto e afável, “um gentleman”. Entretanto, a tiragem de mil exemplares da Obra Poética esgotou e Reis-Sá gostava muito de reeditá-la, embora não saiba se depois do prémio isso será possível. As Quasi publicaram ainda, em 2005, um outro livro de Gullar de que Reis-Sá se orgulha: Um Gato chamado Gatinho, volume de poemas infantis, “lindíssimos”, com ilustrações de Joana Quental. Alguns desses poemas foram cantados ao vivo por Adriana Calcanhotto, versão Partimpim, num concerto no Coliseu dos Recreios, em Lisboa.
Além de poeta, Ferreira Gullar (pseudónimo de José Ribamar Ferreira) foi ou é também cronista, crítico de arte, dramaturgo, ensaísta, biógrafo, tradutor e guionista. Em 2008, o volume Poesia Completa, Teatro e Prosa (Nova Aguilar) reuniu uma produção literária de quase seis décadas em 1264 páginas – do seu livro de estreia (Um pouco acima do chão, 1949) às memórias do seu exílio (no tempo da ditadura militar), passando pelas várias fases da sua evolução como escritor, do experimentalismo ao neoconcretismo, da torrente visceral de Poema Sujo (1976), uma obra-prima que evoca a infância em São Luís do Maranhão, aos versos em que se comprometeu com as lutas sociais e políticas do seu tempo, nunca abdicando do rigor absoluto da linguagem.
No livro de ensaios Indagações de hoje (1989), Ferreira Gullar escreveu: «a palavra que forma o poema sempre foi, no meu entender, uma entidade viva, nascida do corpo, suja sabe-se lá de que insondáveis significados». E o ensaísta Ivan Junqueira, no prefácio à Obra Poética editada pelas Quasi, sintetizou: “Se examinarmos a poesia de Ferreira Gullar desde 1954 até agora à luz de sua tessitura estilística, chegaremos à conclusão de que poucos autores entre nós alcançaram tanta e tamanha coerência interna, tanta e tamanha fidelidade às suas origens de artista que se dispôs a transgredir as fronteiras do sistema da língua”.
A consagração do Prémio Camões foi precedida por outras distinções importantes no Brasil, como um Jabuti, em 2007, e o Prémio Machado de Assis, pelo conjunto da obra, em 2005. No próximo mês de Setembro, quando completar 80 anos, Ferreira Gullar lançará um livro de poemas inédito, Em Alguma Parte Alguma (José Olympio), o primeiro desde Muitas Vozes (1999), volume onde se podem ler estes três versos que de certa forma resumem a sua arte poética: “Meu poema / é um tumulto, um alarido: / basta apurar o ouvido.”
Publicado no blog Bibliotecário de Babel
Hotéis de Passagem (IV)
João Ventura
E já agora o meu hotel pessoal de passagem, o Excelsior, na rue de Cujas, em Paris, onde havia, também, um quarto misteriosamente parecido com o do conto de Cortázar, com uma porta escondida atrás de um armário que deixava ouvir não os gemidos de amantes de passagem, mas o murmúrio de um casal de exilados chilenos que ali estavam também de passagem.
Quando vou a Paris, subo sempre a Rue de Cujas, que liga o Boulevard Saint Michel à rue d´Ulm, e ao passar em frente da porta de entrada espreito, dissimuladamente, para o pequeno foyer onde se encontra o balcão da recepção, agora modernizado, depois de um upgrade remodelador que o dotou de um pequeno salão com amplas vitrinas que dão para a rua. Contudo, não se modernizam as recordações cegas da minha vida suspensa naquele pequeno hotel de passagem para hóspedes errantes sem pátria nem dinheiro.
E recordo, então, o quarto, pequeno, no terceiro andar, com uma pequena janela de guilhotina que dava à esquerda para uma açoteia e para mais nada, porque se abria para um muro sobre o qual espreitava um inútil pedaço de céu quase sempre cinzento: uma pequena estante de madeira onde coleccionava livros que falavam de revoluções por fazer, um armário onde guardava parcos haveres, uma colcha escura de textura áspera sobre uma cama estreita onde deitava em noites de vigília a saudade, uma lâmpada florescente no tecto, uma cortina azul escura no cubículo de banho, uma chávena onde derramava água apenas tépida colorida pelas saquetas de chá verde.
Com um golpe de google fico a saber que também o quarto foi vítima de um upgrade, e a porta entaipada pelo armário substituída por uma parede de alvenaria que já não deixa escutar os murmúrios do quarto vizinho. E concluo, então, que aquele Excelsior que ali está já não é o mesmo onde transitoriamente me encerrei nas minhas paredes interiores, mas que nem por isso deixarei de continuar a olhar, dissimuladamente, através da sua porta, sempre que suba a rue de Cujas.
João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades
Hotéis de Passagem (III)
João Ventura
E do lado de cá do mar, hotéis de passagem de escritores desesperados, atravessando como sombras os abismos deste mundo. O hotel Suède, na rue Vaneau, em Paris, e o hotel Troisi, em Nápoles, onde Pasavento procura dar-se como desaparecido, no romance homónimo de Enrique Vila-Matas. E outros hotéis parisienses já desaparecidos, vítimas de upgrades, de reconversões ou de demolições, como os hotéis habitados por Joseph Roth, cuja obra ando a ler: o Foyot, na rue Tournon, junto ao Jardin du Luxembourg, onde já tinha morado Rainer Maria Rilke, e que Roth abandonou quando os escombros da demolição já se amontoavam por detrás da porta entaipada do seu quarto; e o tétrico hotel Florida, no Boulevard Malesherbes; e o miserável Hotel de la Poste; e o albergue Principautés Unies onde morou Hannah Arendt; e em Zurique, o hotel onde às vezes Robert Walser se ocultava num quarto a que chamava a Câmara de Escrita para Desocupados e aí, sob a luz crepuscular de um candeeiro de petróleo, deixava que a sua mão indecisa o conduzisse pelos territórios do lápis, cujo traço o empurrava lentamente para o desaparecimento, para o eclipse, mimetizando-se para não ser descoberto; e também aquele quarto, não de um hotel mas de um edifício de dois andares, em Kierling, Viena – outrora um sanatório - derradeira passagem de Kafka.
Mas talvez o mais absoluto hotel de passagem de que ouvi falar seja aquele, em Port Bou, onde se abrigou Walter Benjamin em fuga para Lisboa, aonde não chegaria nunca porque as suas asas incertas de borboleta nocturna falhariam no último momento, incapazes de o levarem para fora do pequeno quarto onde se hospedara na última etapa da sua vida crepuscular. Também aí havia uma porta entaipada por detrás da qual se adivinhava a lenta irrupção da manhã, que já não chegaria a tempo de iluminar a sua solidão irredutível de ter sido sempre estrangeiro em todos os hotéis de passagem da sua vida e de não ter tido nunca nada, a não ser a pasta preta pousada em cima da mesa de cabeceira, onde guardava os últimos "labirintos de tinta embebidos nos seus cadernos".
João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades
Imagem: O túnel - Gilberto Perin, Fotografia (2010)
Dia 16 de Junho - Exposição de Fotografias
Exposição de fotografias de Gilberto Perin - CAMISA BRASILEIRA
50 fotografias em ampliações vintage sobre papel de gravura
Curadoria: Alfredo Aquino
Centro Cultural CEEE Erico Verissimo
De 16 de junho a 24 de julho de 2010
Porto Alegre RS Brasil
Blog Gilberto Perin - Fotografias
Romance ou novela?
Maria do Rosário Pedreira
Por razões que não interessa aqui explicar, veio parar-me às mãos um pequeno livro de bolso dos anos 50, de um senhor chamado Paul Morand que, apesar de ter pertencido à Académie Française, é praticamente desconhecido em Portugal. Desse livro não falarei, porque mal iniciei a leitura; mas no prefácio encontrei algumas pérolas em defesa da novela (contra o romance?), que era, pelos vistos, o género em que este autor pontificava.
Aí vão algumas:
“Ao organismo invadido pela celulite (o romance), prefiro o corpo magro e seco da novela.”
“Um romance, mesmo medíocre, pode conter boas páginas; uma novela não; como na arte do fresco, por menor que seja, um erro é sempre irrecuperável.”
“A novela é como uma noite num motel americano; recebe-se das mãos do porteiro as chaves do bungalow e depois é tudo self-service e cash and carry. O leitor recebe o tempo e o espaço na mesma embalagem.”
“Num romance a personagem instala-se, deixa de ser o inquilino para se tornar o senhorio. Numa novela, não, a personagem está sempre acampada. A novela é um móvel, o romance um imóvel.”
Se gosta de novelas (ou romances mais curtos), não deixe de ler um maravilhoso livro de Olivier Rolin, Porto Sudão, que a ASA publicou há muitos anos. Procure-o, se for preciso, num alfarrabista.
Maria do Rosário Pedreira - Publicado no blog Horas Extraordinárias
José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel
O silêncio é a culpa
A convicção secreta e quase eterna de que a uma deusa não se contempla a possibilidade do erro. Todas as suas atitudes estarão acima do bem e do mal. Aliás, o mal somente estará encarnado num desacerto de perspectiva, do tempo congelado na memória inibida. A aproximação será concedida apenas ao cativo arbítrio da deusa. Pela deusa onisciente e a juíza sem equívocos do pensamento alheio. Estar apartado não é uma convicção, antes seria sempre a punição humilhante e inevitável. Contudo, e se não for assim o real? Se um dia, em mais de um dia, a deusa mentira? Se, naqueles noutros dias, olhou por espelhos alheios e as palavras refletidas estavam cirílicas? Se no palco do firmamento, as sombras estiveram retidas num caixa de chumbo repleta do material das nuvens? E se o silêncio, mal interpretado, fosse apenas a culpa? A culpa pelo erro do dia, a culpa no equívoco do julgamento, a culpa pelo sofrimento lapidado em mármore, a culpa pela morte?
O Futuro
Deram-lhes carta branca para fazer o que desejassem, como desejassem, sem limites orçamentais. Junto à costa, os terrenos expropriados eram uma espécie de tábua rasa, estendendo-se até ao horizonte longínquo.
“Construam o futuro, aqui e agora”, pediu-lhes o Presidente, num discurso inflamado, solene, feito para impressionar os Presidentes dos países vizinhos. Então, eles chegaram. Os melhores arquitectos. Os melhores engenheiros. Os melhores empreiteiros. Nos projectos que pousavam em cima das elegantes mesas de vidro, estava o futuro. O Futuro, com maiúscula. Uma cidade perfeita, ecologicamente sustentada, exemplar. A cidade-síntese. A cidade ideal.
Então, o Presidente morreu, em circunstâncias misteriosas. A primeira decisão do sucessor foi embargar o Futuro, dirigir as verbas para outros fins.
Os alicerces do Futuro ficaram expostos ao vento, consumidos pelo salitre. Ainda hoje podem ser vistos, junto à costa, por entre enormes extensões de areia, detritos e urtigas.
© José Mário Silva
Publicado no blog Bibliotecário de Babel
Listas
José Mário Silva, atento e informado sobre o que acontece na literatura e na poesia dos países dos oceanos, lusófonos, publica suas listas de eleições no ano de 2009, no blog Bibliotecário de Babel:
LITERATURA LUSÓFONA (BRASIL E PALOP)
Aldyr Garcia Schlee, autor de Os limites do impossível
Uma pena
Uma pena a saída de João Paulo Sousa do blog Da Literatura. Importante encontrar ali rotineiramente o seu pensamento agudo e sábio sobre o universo da literatura. Escreveu ali criticamente sobre vários autores brasileiros, auxiliou na sua difusão entre tantos e indicou-nos, didático, outros magníficos talentos da lingua portuguesa. Nessas descobertas, aprendemos a selecionar os melhores para ler e agradecemos a João Paulo pelo esforço dedicado e pela honestidade intelectual.Terá seus motivos, que serão respeitáveis, mas o mais desconfortável deles é a sua afirmativa do cansaço, porque significa que não o encontraremos noutro blog. O que será uma lástima porque perderemos o contato com sua letra e seu pensamento. Ao autor de O Mundo Sólido, excelente romance de linguagem e forma singular, a nossa saudação e o desejo de um ótimo 2010 com novas realizações, novos textos e o lançamento de um novo livro.
Da Literatura é um excelente blog e conseguiu sê-lo pelas presenças diárias de Eduardo Pitta e até o dia de hoje, João Paulo Sousa. Uma pena sua ausência para 2010.
Daniel Foucard
Publicado por Laure Limongi no blog Rougelarsenrose
Summertime
José Mário Silva
Summertime é o livro com que Coetzee fecha a sua trilogia de memórias ficcionadas, iniciada com Boyhood (1997) – sobre a infância na Cidade do Cabo, no final dos anos 40 e início dos 50 – e Youth (2002), que descreve a sua vida em Londres, no início da década de 60, e as suas primeiras tentativas poéticas. Nessas duas obras, Coetzee fala de si mesmo na terceira pessoa e esse distanciamento reflecte o extremo cuidado com que o escritor sul-africano, conhecido pelo zelo posto na protecção da sua privacidade, aborda os materiais biográficos no processo de os transformar em literatura. Mesmo quando os factos são reais, o protagonista nunca é o verdadeiro Coetzee mas uma personagem em tudo semelhante, o seu reflexo no espelho da ficção.
Em Summertime, esta ambiguidade é levada ao extremo, pelo recurso a uma estrutura narrativa fragmentada e potenciadora das incertezas meta-literárias que Coetzee tanto aprecia. Em vez de uma história linear, o que o livro nos oferece é um conjunto de materiais que o biógrafo de Coetzee, um tal Mr. Vincent, reúne após a sua morte, tentando fixar uma certa época (os anos de 1972 a 1977), quando o escritor, então com trinta e poucos anos, ainda não era o escritor que veio a ser mas para lá caminhava. Vincent transcreve entrevistas com várias pessoas que terão conhecido Coetzee na altura (uma amante, uma prima, a mãe brasileira de uma das suas alunas, colegas do meio académico), além de excertos dos seus cadernos de notas. O retrato que emerge destes depoimentos em bruto – cheios de incongruências, animosidades, contradições – é de uma crueza devastadora.
Coetzee surge-nos como um homem emocionalmente opaco, incapaz de se relacionar com os outros, um corpo estranho fechado sobre si mesmo (a amante acusa-o de autismo sexual), um feixe de ideias confusas à deriva numa África do Sul em pleno apogeu do apartheid. O Coetzee de hoje não doura a pílula ao Coetzee trintão, nunca contemporiza com as suas fragilidades e falhanços. Mas, paradoxalmente, isso só o torna mais humano.
O resto é a arte da linguagem. Ou seja, o esplendor da língua inglesa, elevada aos céus por um dos seus melhores cultores.
José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel
Imagem: Edward Hooper - Pintura, Óleo sobre tela - 1960
http://www.verdestrigos.org/wordpress/
Imagem: Rene Magritte - Perspectiva I - Madame Recamier / Releitura da obra de David - Pintura - Óleo sobre tela
José Mário Silva é excelente escritor e poeta. Além disso, é respeitado crítico literário do Expresso de Lisboa, colaborador permanente da revista Ler e editor do blog Bibliotecário de Babel, blog que vale pelo menos uma visita diária. Autor do livro de contos Efeito Borboleta e outras histórias; e do livro de poesias Luz Indecisa, ambos editados e disponíveis apenas em Portugal, por enquanto.
Veja o blog Bibliotecário de Babel
"Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ficar irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de rugidos e mugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido fiat, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, enfiou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certificação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo flexível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ficou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artífice que só lhe ficava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama."
[in Caim, Caminho, 2009]
Publicado por José Mário Silva - BlogBibliotecário de Babel
© José Mário Silva – Publicado no blog Bibliotecário de Babel
[in 2666, de Roberto Bolaño, trad. de Cristina Rodriguez e Artur Guerra, Quetzal, 2009]
Pintura de Siron Franco, óleo sobre papel em fibra 100% algodão - 1999
Publicado no blog Bibliotecário de Babel
Publicado por João Ventura - Blog O leitor sem qualidades