Sexta-feira, 25.09.09

O romance e a crítica

O recomendado: 10/10
 
José Mário Silva
 
2666
Autor: Roberto Bolaño
Título original: 2666
Tradutores: Cristina Rodriguez e Artur Guerra
Editora: Quetzal - Portugal
N.º de páginas: 1030
ISBN: 978-972-564-816-2
Ano de publicação: 2009
 
Há romances que se preocupam em fixar uma parte da realidade: um certo tempo histórico, uma certa geografia, o equilíbrio ou a tragédia de certas vidas. E depois há romances – muito poucos – que ambicionam abarcar o mundo inteiro. Não lhes interessa reflectir a realidade, mas antes criá-la de novo, reinventá-la, explorar-lhe os limites. São livros totais, que se deixam inebriar pela própria desmesura, sem medo do falhanço ou dos abismos para onde a sua ambição os pode arrastar. Em 2666, um professor de filosofia chamado Amalfitano faz o elogio destas grandes obras literárias «imperfeitas», as que «abrem caminho no desconhecido», enfrentando «aquilo que nos atemoriza a todos, esse aquilo que nos acobarda e verga». Obras como Moby Dick, O Processo, Bouvard e Pécuchet. Ou, acrescento eu, como este gigantesco, terrível e belíssimo romance de Roberto Bolaño, um prodígio narrativo que acompanha, para além da crise existencial de Amalfitano, as deambulações de várias dezenas de outras personagens, igualmente perdidas e desarmantes.
 
Em 2666, Bolaño quis testar a infinita elasticidade do género romanesco. Até onde se pode chegar com uma ficção? Resposta: até onde se quiser. Ou melhor, até onde se for capaz de ir. A fronteira, se existe, é a própria escrita e Bolaño consegue empurrá-la sempre mais para diante. As histórias multiplicam-se, nascem umas das outras, proliferam como caixas chinesas: do submundo criminal mexicano às batalhas na frente Leste da II Grande Guerra, de Bornéu a Veneza, da crucificação de um general romeno (num castelo da Transilvânia) aos sacrifícios humanos dos astecas, de um combate de boxe demasiado rápido aos intermináveis espancamentos entre reclusos de uma prisão de alta segurança, das discussões eruditas em congressos sobre literatura alemã contemporânea à melancolia das profundezas oceânicas. Eis um labirinto com muitas entradas e nenhuma saída. Um buraco negro que devora qualquer matéria ficcionável. Um lugar onde cabe, literalmente, «tudo dentro de tudo».
 
 
 
 
Embora esteja dividido em cinco partes, que funcionam como cinco livros autónomos, pode dizer-se que o centro gravítico de 2666 é a imaginária cidade de Santa Teresa, no deserto de Sonora (norte do México, perto da fronteira com o Arizona), onde vão aparecendo, entre 1993 e 1997, centenas de cadáveres de mulheres pobres – prostitutas, empregadas de mesa, operárias fabris –, assassinadas quase sempre após tortura e violação sexual, sem que as autoridades policiais, incompetentes e misóginas, consigam deslindar os crimes.
 
É a Santa Teresa que chegam, na primeira parte, três críticos literários: Jean-Claude Pelletier, Manuel Espinoza e Liz Norton, académicos unidos a um quarto crítico (Piero Morini) pela geometria instável de um quadrado amoroso e pela dedicação devota à obra de Benno von Archimboldi – escritor «prussiano» de culto, cioso da sua invisibilidade, que viajou para aquela cidade violenta não se sabe porquê. E é em Santa Teresa que alguns dos múltiplos fios narrativos deste livro se atam, sem nunca oferecerem ao leitor – hipnotizado desde as primeiras páginas pela riqueza estilística da prosa de Bolaño, pela energia pura da sua linguagem – o alívio de uma explicação para o Mal que emerge de todo o lado, como que saído de um «poço negro».
 
Enquanto o conduzem às cegas pelo bas-fond de Santa Teresa, Oscar Fate, o repórter afro-americano que é protagonista da terceira parte, pondera apanhar o primeiro avião para Nova Iorque, «onde tudo voltaria a ter a consistência da realidade». Isto é, da realidade real. Faz sentido. Porque a realidade de 2666 é a outra, a que perde os seus contornos, «como se a passagem do tempo exercesse um efeito de porosidade nas coisas», a realidade da estranheza e do «pesadelo flutuante», a realidade incerta, sempre a oscilar entre a vigília e o sonho, a verdade e o simulacro, a lucidez e a loucura.
 
Avaliação: 10/10

© José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel 

Fotografia de Mário Castello - Cartagena de Indias, 2008

publicado por ardotempo às 00:10 | Comentar | Adicionar
Terça-feira, 01.09.09

Obrigado, José Saramago

 Exit Saramago

 

José Saramago despediu-se hoje da blogosfera, embora não coloque de parte um regresso pontual ao seu Caderno, caso as circunstâncias o justifiquem. É uma pena. Embora não fosse um blogger no sentido que normalmente lhe atribuímos (pelos motivos que enumerei aqui), era uma voz singular e muitas vezes desarmante, a voz de um Nobel que não precisa, objectivamente, disto para nada mas que teve a generosidade e a humildade de se expor diariamente (a si, à sua escrita, às suas ideias) diante do mundo infinitamente aberto, mas por isso também devorador e implacável, da Internet.

 

Por tudo o que nos ofereceu no Caderno, mas sobretudo pelo gesto de partilha, insisto em dizer: obrigado, José Saramago. Saber que a ausência online reverte a favor da escrita de um novo livro não deixa de ser um consolo.

 

José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel

tags: ,
publicado por ardotempo às 15:57 | Comentar | Adicionar

Blogs são como estrelas

Uma pena, o fim do blog de José Saramago
 
José Saramago despediu-se hoje de seu blog. Uma pena, vamos sentir sua falta, a falta de seus textos imponentes e lúcidos. Os blogs são assim, de repente deixam de existir. São maravilhosos e frágeis, os blogs. Não têm apoios, não têm sustentabilidade econômica, quase sempre não tem nenhuma divulgação pelas plataformas que os abrigam. São luz e conhecimento, são convívios secretos entre os que os fazem e os que os consultam diariamente. Como a vida, podem extinguir-se a qualquer momento, pode nem haver o pretexto de que se vai escrever um livro. Isso é para quem escreve bem, já ganhou um Prêmio Nobel e recolhe o tempo restante para sua própria tarefa singular. Escrever livros. Blogs podem parar de repente, no dia 31 de agosto, no dia 12 de outubro, 17 de outubro ou 31 de outubro. Basta um gesto, uma abdicação, um piscar de olhos, um alçar de sobrolhos. A vida é curta, os blogs mais curtos ainda. Pena aos que ficam, aos que procuram e consultam blogs em busca de sentido para objetos e gestos no contexto da vida e da escrita, por esse fazer despreendido e audaz. 
 
Sentiremos sua falta no blog, José Saramago, até o dia em que resolvamos parar também. Nesse dia, o do pequeno suspiro do blog, a sua paralisação será sem notícia nem testemunhas porque os comentários são tão poucos que implicam em fantasmas inaudíveis de promessas desarticuladas. Talvez, de fato, seja melhor apenas ler alguns livros. 
 
Despedida
 
José Saramago
 
Diz o refrão que não há bem que sempre dure nem mal que ature, o que vem assentar como uma luva no trabalho de escrita que acaba aqui e em quem o fez. Algo de bom se encontrará neste textos, e por eles, sem vaidade, me felicito, algo de mal terei feito noutros e por esse defeito me desculpo, mas só por não tê-los feito melhor, que diferentes, com perdão, não poderiam eles ser. Às despedidas sempre conveio que fossem breves. Não é isto uma ária de ópera para lhe meter agora um interminável adio, adio. Adeus, portanto. Até outro dia? Sinceramente, não creio. Comecei outro livro e quero dedicar-lhe todo o meu tempo. Já se verá porquê, se tudo correr bem. Entretanto, terão aí o “Caim”.
 
P. S – Pensando melhor, não há que ser tão radical. Se alguma vez sentir necessidade de comentar ou opinar sobre algo, virei bater à porta do Caderno, que é o lugar onde mais a gosto poderei expressar-me.
publicado por ardotempo às 04:58 | Comentar | Ler Comentários (1) | Adicionar
Segunda-feira, 31.08.09

A justiça no Brasil é para uns e para outros

Um é muito rico, o outro é muito pobre
 
A Justiça é cega
 
O que é o que é?
 
Tem tromba de elefante, corpo de elefante, presas de elefante, patas de elefante, caminha como um elefante, mas não é um elefante, segundo o Supremo Tribunal Federal?
 
É o ex-ministro da Fazenda Antônio Palocci depois de livrar-se da denúncia apresentada pela Procuradoria Geral da República contra os suspeitos pela quebra do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa.
 
Decisão judicial não se discute, cumpre-se”, repetem os que consideram errada uma sentença, mas preferem calar a respeito.
 
Decisão judicial se discute, sim, ora essa. Juiz não é infalível.
 
A infalibilidade do Papa só se tornou dogma em 1817. Mesmo assim se restringe às questões e verdades relativas à fé e à moral. Acata-se decisão judicial. Mas quando possível se contesta junto à própria Justiça.
 
Francenildo foi caseiro de uma mansão em Brasília frequentada por prostitutas de luxo, Palocci e ex-assessores da época em que ele foi prefeito de Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
 
Desconfia-se que ali também rolavam negócios sujos. Nunca se investigou.
 
Em depoimento na CPI dos Bingos do Senado, um motorista que servira à turma de Ribeirão Preto havia dito ter visto Palocci na mansão várias vezes. Palocci jurou jamais ter ido lá.
 
Descoberto pelo jornal O Estado de S. Paulo, Francenildo contou que flagrara Palocci na mansão de 10 a 20 vezes. A entrevista foi publicada no dia 14 de março de 2006.
 
No dia 16, Francenildo renovou a acusação na CPI. "Vou morrer dizendo isso", enfatizou.
 
Só pôde falar na CPI porque chegou com atraso ao Senado liminar concedida pelo ministro Cezar Peluso em ação impetrada pelo PT proibindo Francenildo de depor.
 
No mesmo dia, pelo menos seis órgãos do Estado, entre eles a Polícia Federal e a Receita, se ocuparam em devassar a vida de Francenildo.
 
Um empregado da jornalista Helena Chagas confidenciara à ela que Francenildo procurava uma casa para comprar. Como poderia ter tanto dinheiro para isso?
 
A informação bateu nos ouvidos do senador Tião Viana (PT-AC), que a repassou a Palocci, que convidou Helena para um encontro.
 
Palocci perguntou a Helena se o empregado dela toparia depor contra Francenildo. Helena respondeu que não.
 
Às 19h, no Palácio do Planalto, Palocci reuniu-se com Jorge Mattoso, presidente da Caixa Econômica. Em seguida foi para casa e Mattoso voltou ao prédio da Caixa.
 
Às 20h, Mattoso entregou a um assessor o CPF e o nome completo de Francenildo. Saiu para jantar em um restaurante.
 
Dali a uma hora, Mattoso recebeu do assessor um envelope pardo com os extratos bancários de Francenildo, dono de uma conta na Caixa e de depósitos que somavam R$ 38,860,00.
 
Estava consumado o crime de quebra do sigilo bancário.
 
Ainda no restaurante, Mattoso atendeu a um telefonema de Palocci. Foi ao encontro dele. Palocci examinou os extratos. Que no dia seguinte foram parar na sucursal da revista ÉPOCA.
 
Pouco depois das 19h do dia 17, a revista postou os dados em seu site junto com a explicação de Francenildo sobre a origem do dinheiro – uma doação do empresário Eurípides Soares da Silva, seu pai.
 
Eurípides confirmou a doação, mas negou que fosse pai de Francenildo.
 
A tentativa de desacreditar o caseiro, sugerindo que ele fora subornado para mentir, acabou desmontada até as 22h. A mãe de Francenildo admitiu que ele era filho bastardo do empresário. O próprio Eurípides confessou que dera dinheiro a Francenildo para não ter que reconhecê-lo como filho.
 
Por que fizeram isso comigo?” – queixou-se Francenildo. "Por que não fizeram com o ministro?"
 
Porque “a corda sempre arrebenta do lado do mais fraco”, conferiu o ministro Marco Aurélio de Melo, um dos quatro votos vencidos na sessão do Supremo da semana passada. Cinco colegas dele rejeitaram a denúncia contra Palocci. Não viram indícios suficientes de sua participação na quebra do sigilo.
 
Sobrou para Mattoso, que será o único processado pela quebra do sigilo bancário do caseiro.
 
Para a Justiça, o elefante da história é ele.
 
Quanto a Palocci, poderia ter denunciado Mattoso ao receber dele extratos que ele nega ter encomendado. Afinal, estava diante de um ato criminoso.
 
 Ignora-se por que não o fez "!" 
 
 
Ricardo Noblat - Publicado no Blog do Noblat 
tags:
publicado por ardotempo às 15:36 | Comentar | Adicionar
Sábado, 29.08.09

Vertente

A junta do motor
 
José Saramago
 
 
 
Desde há mais de sessenta anos que eu deveria saber conduzir um automóvel. Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas máquinas de trabalho e de passeio, desmontava e montava motores, limpava carburadores, afinava válvulas, investigava diferenciais e caixas de mudanças, instalava calços de travões, remendava câmaras de ar furadas, enfim, sob a precária protecção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia das nódoas de óleo, efectuei com razoável eficiência quase todas as operações por que é obrigado a passar um automóvel ou um camião a partir do momento em que entra numa oficina para recuperar a saúde, tanto a mecânica como a eléctrica. Só faltava que me sentasse um dia atrás do volante a fim de receber do instrutor as lições práticas que deveriam culminar no exame e na sonhada aprovação que me permitiria ingressar na ordem social cada vez mais numerosa dos automobilistas encartados.
 
Contudo, esse dia maravilhoso nunca chegou. Não são apenas os traumas infantis que condicionam e influem a idade adulta, também os que se sofrem na adolescência podem vir a ter consequências desastrosas e, como no presente caso sucedeu, determinar de maneira radicalmente negativa a futura relação do traumatizado com algo tão quotidiano e banal como é um veículo automóvel. Tenho sólidas razões para crer que sou o deplorável resultado de um desses traumas. Mais ainda: por muito paradoxal que a afirmação vá parecer a quem das íntimas conexões entre as causas e os efeitos somente tiver ideias elementares, se nos meu verdes anos não tivesse trabalhado como serralheiro-mecânico numa oficina de automóveis, hoje, provavelmente, saberia conduzir um carro, seria um orgulhoso transportador em lugar de um humilde transportado.
 
Além das operações que comecei por referir, e como parte obrigatória de algumas delas, também substituía as juntas dos motores, essas finas placas forradas de folha de cobre sem as quais seria impossível evitar fugas da mistura gasosa de combustível e ar entre a cabeça do motor e o bloco dos cilindros. (Se a linguagem que estou a usar parecer ridiculamente arcaica aos entendidos em automóveis modernos, mais governados por computadores do que pela cabeça de quem os conduz, a culpa não é minha: falo do que conheci, não do que desconheço, e muita sorte que não me ponha aqui a descrever a estrutura das rodas dos carros de bois e a maneira de atrelar estes animais ao jugo. É matéria igualmente arcaica em que também tive alguma competência).
 
Ora, um dia, depois de ter acabado o trabalho e colocado a junta no seu sítio, depois de ter apertado com a força dos meus dezanove anos as porcas que sujeitavam a cabeça do motor ao bloco, dispus-me a realizar a última fase da operação, isto é, encher de água o radiador. Desenrosquei pois o tampão e comecei a deitar para a boca do radiador a água com que tinha enchido o velho regador que para esse e outros efeitos havia na oficina. Um radiador é um depósito, tem uma capacidade limitada e não aceita nem um mililitro mais do que a quantidade de água que lá caiba. Água que continue a deitar-se-lhe é água que transborda.
 
Algo de estranho, porém, se estava a passar com aquele radiador, a água entrava, entrava, e por mais água que lhe metesse não a via subir dançando até à boca, que seria o sinal de estar acabado o enchimento. A água que já vertera por aquela insaciável garganta abaixo teria bastado para satisfazer dois ou três radiadores de camião, e era como se nada. Às vezes penso que, sessenta e muitos anos passados, ainda hoje estaria a tentar encher aquele tonel das Danaides se em certa altura não me tivesse apercebido de um rumor de água a cair, como se dentro da oficina houvesse uma pequena cascata. Fui ver.
 
Pelo tubo de escape do carro saía um avultado jorro de água que, pouco a pouco, diante dos meus olhos estupefactos, foi diminuindo de caudal até ficar reduzido a umas derradeiras e melancólicas gotas. Que se passara? Tinha colocado mal a junta, tapara entre a cabeça do motor e o bloco o que deveria ter aberto, e, muito mais grave do que isso, facilitara passagens e comunicações onde não deveria havê-las. Nunca cheguei a saber que voltas teve de dar a pobre água para ir sair ao tubo de escape. Nem quero que mo digam agora. Para vergonha bastou. Possivelmente terá sido nesse dia que comecei a pensar em tornar-me escritor. É um ofício em que somos ao mesmo tempo motor, água, volante, mudanças de velocidade e tubo de escape. Talvez, afinal, o trauma tenha valido a pena.
 
 

© José Saramago - Publicado no blog Caderno de Saramago

publicado por ardotempo às 00:48 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 27.08.09

Saramago sobe ao ringue

 
Saramago carga contra Dios y salva a Caín
 
José Saramago vuelve a ocuparse de la religión en Caín, su nueva novela, que la editorial Alfaguara publicará previsiblemente a mediados de octubre, en la que redime a su protagonista del asesinato de Abel y señala a Dios "como el autor intelectual al despreciar el sacrificio que Caín le había ofrecido".
 
Caín viajará a la Feria del Libro de Frankfurt el próximo octubre y a finales de ese mes estará en las librerías de Portugal, América Latina y España, donde ver la luz también en catalán. Será en Lisboa, en su presentación mundial, donde el Nobel hable por primera vez de su nuevo libro, pero desde su casa de Lanzarote, donde pasa el verano y ya prepara las maletas para volver a Lisboa, ha explicado a través del correo electrónico que lo que ha querido decir con Caín es que "Dios no es de fiar. ¿Qué diablos de Dios es éste que, para enaltecer a Abel, desprecia a Caín?".
 
Casi 20 años después de su discutido libro El evangelio según Jesucristo, que fue vetado por el Gobierno portugués para competir por el Premio Europeo de Literatura, el Nobel luso hace un irreverente, irónico y mordaz recorrido por diversos pasajes de la Biblia pero no teme que vuelvan a crucificarle. "Algunos tal vez lo harán - explica Saramago -, pero el espectáculo será menos interesante. El Dios de los cristianos no es ese Jehová. Es más, los católicos no leen el Antiguo Testamento. Si los judíos reaccionan no me sorprenderé. Ya estoy habituado. Pero me resulta difícil comprender cómo el pueblo judío ha hecho del Antiguo Testamento su libro sagrado. Eso es un chorro de absurdos que un hombre solo sería incapaz de inventar. Fueron necesarias generaciones y generaciones para producir ese engendro".
 
José Saramago no considera este libro su particular y definitivo ajuste de cuentas con Dios -"las cuentas con Dios no son definitivas", dice -, pero sí con los hombres que lo inventaron.
 
"Dios, el demonio, el bien, el mal, todo eso está en nuestra cabeza, no en el cielo o en el infierno, que también inventamos. No nos damos cuenta de que, habiendo inventado a Dios, inmediatamente nos esclavizamos a él", explica el autor. Niega que la cercanía de la muerte, hace ahora un año debido a su enfermedad, le hiciera pensar más en Dios. "Tengo asumido que Dios no existe, por tanto no tuve que llamarlo en la gravísima situación en que me encontraba. Y si lo llamara, si de pronto él apareciera, ¿qué tendría que decirle o pedirle, que me prolongase la vida?".
 
Y continúa Saramago: "Moriremos cuando tengamos que morir. A mí me salvaron los médicos, me salvó Pilar (su esposa y traductora), me salvó el excelente corazón que tengo, a pesar de la edad. Lo demás es literatura, y de la peor".
 
Hace un año, el escritor sorprendió a sus lectores por la ironía y el humor que destilan las páginas de El viaje del elefante (Alfaguara) y que ahora vuelve a con Caín. Para él es un misterio. Y reflexiona: "No fue deliberado ni premeditado, la ironía y el humor aparecen en las primeras líneas de ambos libros. Podía haberlo contrariado e imprimirle un tono solemne a la narrativa, pero lo que está me vino ofrecido en una bandeja de plata, sería una estupidez rechazarlo".
 

El escritor empezó a pensar en Caín hace muchos años, pero se puso a escribirlo en diciembre de 2008 y lo terminó en menos de cuatro meses. "Estaba en una especie de trance. Nunca me había sucedido, por lo menos con esta intensidad, con esta fuerza", rememora. Saramago, que una vez escribió que "somos cuentos de cuentos contando cuentos, nada" y así sigue viéndose, escribe más y más rápido que nunca (tres libros en un año), quizás como la mejor manera de seguir vivo. "Es verdad. Tal vez la analogía perfecta sea la de la vela que lanza una llama más alta en el momento en que va a apagarse. De todos modos, no se preocupen, no pienso apagarme tan pronto", sentencia.

 

En su blog (blog.josesaramago.org ) aparece hoy el anuncio de la nueva novela, una suerte de tráiler del libro y una carta de la presidenta de la Fundación Saramago, Pilar del Río, en la que anuncia a los lectores del Nobel que este Caín no les dejará indiferentes. 

 

 

Publicado em El País

publicado por ardotempo às 14:09 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 24.08.09

As bibliotecas têm fantasmas

Bibliomanias
 
José Mário Silva
 
As pessoas obcecadas por livros tendem a gostar de livros sobre outras pessoas obcecadas por livros. A bibliofilia não é apenas uma doença crónica; é também contagiosa. Ao lermos sobre as grandes bibliotecas pessoais – com dezenas ou centenas de milhares de volumes – aspiramos a uma igual desmesura, subitamente embaraçados com a pequenez, a desordem e as lacunas da dúzia e meia de estantes lá de casa. Melhor dito: as pessoas obcecadas por livros tendem a gostar de livros sobre outras pessoas ainda mais obcecadas por livros do que elas. E foi por isso que devorei de uma assentada o ensaio breve de Jacques Bonnet intitulado Des bibliothèques pleines de fantômes (Denoël, 2008, 138 páginas).
 
Editor, tradutor e autor de livros sobre pintura, Bonnet é um bibliómano que nos escancara a sua bibliomania, não escondendo um certo exibicionismo e uma certa ostentação (nalguns casos até uma certa vaidade), próprios de qualquer bibliómano que se preze. Por muito que mencione as bibliotecas dos outros, ele regressa sempre à sua, minuciosamente descrita em dezenas de páginas que chegam assemelhar-se a um catálogo bibliográfico. Através dos seus livros, é a sua vida, é a sua biografia que se desenha. Nada de muito espantoso, diga-se. Faz parte da natureza das bibliotecas tornarem-se um espelho do seu proprietário. E quem as saiba «descodificar com subtileza» encontrará nelas, mais ou menos escondida, "a natureza profunda do seu bibliotecário".
 
Ao recordar a forma como chegou a certos livros, Bonnet revela, de facto, alguns aspectos da sua personalidade, como a perseverança e a extrema atenção aos detalhes. Por exemplo, a abrir o ensaio, aborda o célebre episódio em que Fernando Pessoa se candidatou ao lugar de conservador-bibliotecário do museu Condes de Castro Guimarães, em Cascais, corria o ano de 1932. Como se sabe, o poeta dos heterónimos acabaria por ser recusado, em favor de um "pintor obscuro". Ao citar a carta de candidatura de Pessoa, com a sua "retórica insólita", Bonnet explica que a encontrou reproduzida na Fotobiografia de Maria José de Lencastre (Imprensa Nacional-Casa da Moeda), por si comprada em 1983, por 500 escudos, numa livraria de Coimbra, cidade em que se lembra de ter visto uma mulher a andar na rua com uma máquina de costura equilibrada sobre a cabeça.
 
Na linha do que sugeriram Borges e Bachelard, para Bonnet a biblioteca é o que mais se aproxima da ideia de paraíso terrestre. Ela é um "concentrado de tempo e de espaço", protege da "hostilidade exterior", como se fosse um útero, e confere "um sentimento de poder absoluto". Rodeado pelos seus livros, o bibliómano nunca se sente desamparado. Sabe que tem, sempre ao seu alcance, os instrumentos necessários para interpretar a realidade. E não lhe falem da Internet e suas infinitas reservas de informação. Por muito que se encontre por lá tudo o que se queira saber, quase instantaneamente, ela é "desprovida de fantasmas", diz Bonnet, falta-lhe a dimensão "divina".
 
A maior parte do ensaio centra-se nas alegrias e tormentos de quem possui uma biblioteca "monstruosa", com dezenas de milhares de livros. E não faltam histórias incríveis. Como a de Antoine-Marie-Henri Boulard (1754-1825), que encheu nove prédios, adquiridos expressamente para receberem os seus 600 mil livros – após a sua morte, ao venderem a colecção, os filhos inundaram o mercado, baixando durante muitos anos os preços nos alfarrabistas. Ou a de Charles-Valentin Alkan, pianista virtuoso que morreu esmagado por uma estante, em 1888, o que o habilita ao estatuto de "santo mártir" dos bibliófilos. Ou a daquele condenado à guilhotina que continuou a ler enquanto o conduziam ao cadafalso e, chegada a hora, marcou a página onde estava, antes de entregar o pescoço à lâmina.
 
Além de analisar as complexas questões logísticas e imobiliárias associadas às bibliotecas proliferantes, Bonnet dedica muito espaço ao bicudo problema da classificação e arrumação, multiplicando hipóteses, sistemas e estratégias. Eu, à minha reduzida escala, também conheço o dilema. Não sei, por exemplo, onde colocar, agora que acabei de o ler, este livrinho a abarrotar de livros (e de fantasmas) lá dentro.
 
 

 

José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel 

Imagem: Natureza morta com crânio - Paul Cézanne, Pintura - óleo sobre tela, circa 1900

tags: , ,
publicado por ardotempo às 18:38 | Comentar | Adicionar

Recomendação de Blog

Blog

 

 

Obrigado, José Simões. Conforme reza a regra, a passagem do bastão deve acontecer na área assinalada e no tempo certo. Viver não é preciso...

 

Blog recomendado: Der Terrorist

publicado por ardotempo às 13:51 | Comentar | Adicionar
Sábado, 22.08.09

Novo elogio da loucura

Os títulos dos livros são diversos do original em espanhol:

 

Nuevo elogio de la locura

 

Alberto Manguel

 

No Brasil: À mesa com o Chapeleiro Maluco

              Ensaios sobre corvos e escrivaninhas

 

Em Portugal: No Bosque do Espelho

                  Uma viagem fantástica ao mundo dos livros

 

 

 

 
Foi em 1996, com Uma História da Leitura, que Alberto Manguel (n. 1948) chamou a atenção de toda a gente. Nessa época já ele era um autor canadiano. Na vasta bibliografia, só o livro inaugural foi escrito na língua materna: Dicionário de Lugares Imaginários (1980), obra de que é co-autor com Gianni Guadalupi. A partir daí escreveu sempre em inglês. Manguel nasceu em Buenos Aires, mas passou a infância e parte da adolescência em Israel, onde o pai era embaixador. Voltou à Argentina para completar o ensino secundário, tornou-se íntimo de Jorge Luís Borges, viajou por todo o mundo antes de fixar-se no Canadá nos anos 1980, mas, não obstante a cidadania canadiana, vive actualmente em França. Manguel goza de uma fama notoriamente excessiva (a lista de prémios internacionais é impressionante). Embora tenha escrito romances e contos, alguns de natureza gay, e organizado antologias de diversa índole, é como ensaísta que se destaca. Os anos em que lia para Borges, já então cego, foram um bom tirocínio.
 
No Bosque do Espelho (À mesa com o Chapeleiro Maluco - Companhia das Letras / Brasil - AT) toma como ponto de partida a obra-prima de Lewis Carroll, adoptando como divisa o mot de Heraclito: "Nunca mergulhas no mesmo livro duas vezes". Trata-se de uma colectânea de ensaios de muito diversa proveniência: artigos encomendados, textos para cursos de jornalismo das artes, conferências, recensões críticas, antologias gay, introduções e posfácios. Manguel estabece um fio condutor entre textos de Borges, Cortázar, Chesterton, Melville, Cynthia Ozick, Santo Agostinho e outros. Do ponto de vista da erudição e do ofício, tem a perfeição do amanuense culto. Mas raramente nos surpreende com um golpe de asa.
 
Uma das excepções é a sanha com que “desmonta” Bret Easton Ellis a partir de Psicopata Americano (1991). A parte do anedotário é conhecida: depois de ter pago um adiantamento avultado a Ellis, e ter o livro impresso, a Simon & Schuster desistiu de o pôr à venda por causa da violência do conteúdo; saiu, como é sabido, sob chancela da Vintage Contemporaries da Random House. Mas Manguel aproveita para aliviar o fígado: «A primeira linha do livro é o lema de Dante para as portas do Inferno [...] De facto, tudo está montado de modo a levar o leitor a crer que a história que se segue é, de facto, de natureza literária: contemporâneo e irónico [...] moderno [...] sério e filosófico. As 128 páginas que se seguem (a primeira cena brutal começa na página 129) são agonizantes para qualquer pessoa que não esteja habituada a ler publicidade de moda. [...] Não é escrita; é um desfile de palavras com o propósito de fazer um catálogo.» E não poupa nos adjectivos: os relatos são «grotescos», a prosa «desajeitada», o estilo «débil» e o vocabulário «magro». Tudo por contraponto com Ovídio, Dante, Novalis, Sade, Kafka e Dostoievsky. Convenhamos na desproporção.
 
O ensaio dedicado a Cynthia Ozick é dos mais estimulantes. A partir das leituras que Ozick fez de Primo Levi, Manguel reflecte sobre a condição judaica, ameaçada pela «galáxia canibal da cultura cristã». Faz isso com argúcia e desenvoltura, sobretudo quando contrapõe os conceitos de raiva e misericórdia que, na perspectiva de Ozick, Levi relacionava com autodestruição.
 
A afirmação de que, «até à década de 1960, o Canadá mal reconhecia a existência da literatura canadiana» é completamente inesperada. Creditando esse reconhecimento à teimosia e perseverança de alguns editores, bem como à projecção da obra de Margaret Atwood — que classifica com paternalismo —, Manguel reserva os elogios para Richard Outram (1930-2005), «um dos melhores poetas em língua inglesa».
 
Tudo visto, parece-me fútil, para não lhe chamar pedante, ter alinhado os textos sob o enigmático patrocíno de Alice no País das Maravilhas. Mesmo nos ensaios sobre Borges, porventura aqueles em que está mais à-vontade, Carroll é uma fasquia muito alta para este argentino déraciné.
 
Eduardo Pitta - Publicado no Blog Da Literatura

tags: ,
publicado por ardotempo às 19:40 | Comentar | Adicionar
Sábado, 08.08.09

Para o Dia dos Pais...

A sombra do pai 
 
José Saramago
 
Mikhail Bahktine escreveu na sua Estética e Teoria do Romance: «O objecto principal do género romanesco, aquele que o “especifica”, aquele que cria a sua originalidade estilística, é o homem que fala e a sua palavra». Creio que raramente uma asserção de âmbito geral como esta é terá sido tão exacta como no caso humano e literário de Franz Kafka. Desrespeitando certos teóricos que, não destituídos de razão, se têm insurgido contra a tendência “romântica” de ir procurar à existência de um escritor os sinais da passagem do vivido para o escrito, o que, supostamente, seria a final explicação da obra, Kafka não esconde em nenhum momento (e parece fazer mesmo questão de que se note) o quadro de factores que determinaram a sua dramática vida e, em consequência, o seu trabalho de escritor: o conflito com o pai, o desentendimento com a comunidade judaica, a impossibilidade de deixar a vida celibatária pelo casamento, a enfermidade.
 
Penso que o primeiro daqueles factores, isto é, o antagonismo nunca superado que opôs o pai ao filho e o filho ao pai, é o que constitui a trave mestra de toda a obra kafkiana, dele derivando, como os ramos de uma árvore derivam do tronco principal, o profundo desassossego íntimo que o levou à deriva metafísica, à visão de um mundo agonizando pelo absurdo, à mistificação da consciência.
 
A primeira referência a O Processo encontra-se nos Diários, foi escrita em 29 de Julho de 1914 (a guerra desencadeara-se no dia anterior) e começa com as seguintes palavras. “Uma noite, Josef K…, filho de um rico comerciante, depois de uma grande discussão que tinha tido com o pai…”. Sabemos que não é assim que o romance irá principiar, mas o nome da personagem principal – Josef K… – já ficou anunciado, tal como em três rápidas linhas de A Metamorfose, escrito quase dois anos antes, já se anunciava o que viria a ser o núcleo temático central de O Processo. Quando, transformado da noite para o dia, sem qualquer explicação do narrador, num bicharoco nojento, misto de escaravelho e de barata, se queixa dos sofrimentos imerecidos que caem sobre o viajante de comércio em geral e sobre ele próprio em particular, Gregorio Samsa expressa-se de uma maneira que não deixa margem para dúvidas: “muitas vezes é vítima de uma simples murmuração, de um acaso, de uma reclamação gratuita, e é-lhe absolutamente impossível defender-se, uma vez que nem sequer sabe de que o acusam”. Todo O Processo está contido nestas palavras.
 
É certo que o pai, “rico comerciante”, desapareceu da história, que a mãe só é mencionada em dois dos capítulos inacabados, e mesmo assim fugazmente e sem caridade filial, mas não me parece um excesso temerário, salvo se estou demasiado equivocado sobre as intenções do autor Kafka, imaginar que a omnipotente e ameaçadora autoridade paterna terá sido, pela estratégia da ficção, transferida para as alturas inacessíveis da Lei Última, essa que, sem precisar de enunciar uma culpa concreta recolhida nos códigos, será sempre implacável na aplicação do castigo. O angustiante e ao mesmo tempo grotesco episódio da agressão executada pelo pai de Gregorio Samsa para expulsar o filho da sala familiar, atirando-lhe com maçãs até que uma delas se lhe vai incrustar na carapaça, descreve uma agonia sem nome, a morte de qualquer esperança de comunicação.
 
Poucas páginas antes, o escaravelho Gregório Samsa ainda havia articulado penosamente as últimas palavras que a sua boca de insecto fora capaz de pronunciar: “Mãe, mãe”, Depois, como numa primeira morte, entrou na mudez de um silêncio voluntário, senão obrigado pela sua irremediável animalidade, como quem teve de resignar-se definitivamente a não ter pai, mãe e irmã no mundo das baratas. Quando por fim a criada varrer para o lixo a carcaça ressequida em que Gregório Samsa terminará transformado, a sua ausência, daí em diante, só servirá para confirmar o esquecimento a que os seus já o tinham votado. Numa carta de 28 de Agosto de 1913, Kafka irá escrever: “Vivo no meio da minha família, entre as melhores e mais amorosas pessoas que se pode imaginar, como alguém mais estranho que um estranho. Com a minha mãe, nos últimos anos, não falei, em média, mais que vinte palavras por dia, com o meu pai jamais troquei mais que as palavras de saudação”. Será preciso estar muito desatento à leitura para não perceber a dolorosa e amarga ironia contida nas próprias palavras (“Entre as melhores e mais amorosas pessoas que se pode imaginar”) que parecem estar a negá-la. Desatenção igual, creio, seria não atribuir importância especial ao facto de Kafka haver proposto ao seu editor, em 4 de Abril de 1913, que os relatos O Fogueiro (primeiro capítulo do romance América), A Metamorfose e A Sentença fossem reunidos num único volume com o título de Os Filhos (o que, aliás, só muito recentemente, em 1989, viria a suceder).
 
Em O Fogueiro, “o filho” é expulso pelos pais por ter ofendido a honra da família ao engravidar uma criada, em A Sentença “o filho” é condenado pelo pai a morrer por afogamento, em A Metamorfose “o filho” deixou simplesmente de existir, o seu lugar foi tomado por um insecto…
 
Mais do que a Carta ao Pai, escrita em Novembro de 1919, mas que nunca viria a ser entregue ao destinatário, são estes relatos, segundo entendo, e em particular A Sentença e A Metamorfose, que, precisamente por serem transposições literárias em que o jogo de mostrar e esconder funciona como um espelho de ambiguidades e reversos, nos oferecem com mais precisão a dimensão da ferida incurável que o conflito com o pai abriu no espírito de Franz Kafka. A Carta assume, por assim dizer, a forma e o tom de um libelo acusatório, propõe-se como um ajuste de contas final, é um balanço entre o deve e o haver de duas existências enfrentadas, de duas mútuas repugnâncias, pelo que não se pode rejeitar a hipótese de que se encontrem nela exageros e deformações dos factos reais, sobretudo quando Kafka, no final do escrito, passa subitamente a usar a voz do pai para se acusar a si mesmo
 
Em O Processo, Kafka pôde desfazer-se da figura paterna, objectivamente considerada, mas não da sua lei. E tal como em A Sentença o filho se suicida porque assim o tinha determinado a lei do pai, em O Processo é o próprio acusado Josef K… que acabará por conduzir os seus algozes ao lugar onde será assassinado e que, nos últimos instantes, quando a morte já se vem acercando, ainda dará por si a pensar, como um derradeiro remorso, que não tinha sabido desempenhar o seu papel até ao fim, que não tinha conseguido poupar trabalho às autoridades… Isto é, ao Pai.
 
© José Saramago - Publicado no Blog Caderno de Saramago 
publicado por ardotempo às 19:58 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 07.08.09

O lápis

No território do lápis
 
João Ventura
 
Herisau, dia de Natal de 1956. Entre faias e abetos, na ladeira que desce do Schochenberg, um homem jaz no chão, confundindo-se com o deserto branco que o rodeia. A neve é o mais perfeito esconderijo. Antes, depois de ter almoçado no sanatório, errara durante horas até ao coração do bosque, perdido. Ao longe, talvez, o toque lamentoso de um sino. A cabeça está apoiada sobre a raíz de um abeto que emerge da neve. Não há tristeza no seu rosto. Apenas uma réstia de um olhar eternamente extasiado perante a neve pura, com o espanto de quem descobre, finalmente, o mais secreto dos desejos.
 
Daqui a pouco, um grupo de crianças encontrará um corpo num bosque gelado e saberemos tratar-se de Robert Walser, o "poeta mais escondido que alguma vez existiu", como escreveu Elias Canetti. E que num nos dos seus romances, Os irmãos Tanner, pusera premonitoriamente na boca de um personagem uma elegia a Sebastião, o poeta encontrado morto na neve: "Com que nobreza escolheu a sua tumba! Jaz no meio de esplêndidos abetos verdes, cobertos pela neve. Não quero avisar ninguém. A natureza inclina-se a contemplar o seu morto, as estrelas cantam suavemente à volta da sua cabeça e as aves nocturnas grasnam: é a melhor música para alguém que não tem ouvido nem sensações".
 
Conta Max Brod que um dia Kafka apareceu em sua casa para dar conta do seu entusiasmo pelo livro Jakob von Gunten, de Robert Walser. E conta, ainda, como Kafka leu, depois, em voz alta, fragmentos desse livro, rindo às gargalhadas, com o mesmo riso de quando leu O processo aos seus amigos. A irmandade entre Kafka e Walser seria comentada por Robert Musil como "um caso particular do modelo de Walser". Em Jakob von Gunten [tal como A rosa, O salteador e O ajudante, editados em Portugal pela Relógio d´Água], o protagonista é aluno do Instituto Benjamenta, inventado Walser, uma escola para formar criados. Em vez de formar a personalidade dos alunos, o instituto apaga-a. O principal obstáculo a ultrapassar é o da própria consciência. Por isso, praticam a repetição, em obediência mimética. Obedecem a toda e qualquer ordem para não pensar. O seu objectivo é apagar-se. Jakob pensa: "Se me afundo e me desmorono, o que é que se perderá? Um zero".
 
Li de um só folgo este romance-diário com uma prosa despojada de clímax narrativo e densidade psicológica, uma espécie de emanação lúdica segregada pela sucessão de derivas mentais e livre associação discursiva, mas também com um lado sombrio e funesto, delicadamente omnipresente. "Uma história singularmente delicada", segundo Walter Benjamin, em que Jacob descreve os seus colegas, passeia pela cidade, observa o autoritário director e a sua irmã Lisa, penetrando no mistério das suas vidas, numa experiência, ao mesmo tempo, real e onírica que nos faz lembrar, precisamente, Kafka que provavelmente "teria sido ligeiramente diferente se não tivesse, ele próprio, lido Robert Walser", como escreveu Enrique Vila-Matas. "Um escritor verdadeiramente magnífico que nos parte o coração", segundo Susan Sontag, cuja obra desdobrada em quinze livros é "um estranho e fascinante espelho da vida". De uma vida que foi um percurso de incompreensão, de penúria, de dor, mas da qual nunca se queixa nos seus livros em que um niilismo aparente é atravessado por uma ingenuidade espontânea.
 
"A singularidade de Robert Walser como escritor", escreveu Canetti, "consiste em nunca falar de motivações. É o mais oculto dos escritores. Está sempre bem, sempre encantado com tudo", cultivando a insignificância da qual, achava, poderia extrair algo "vivificante e purificador". Por isso, entre os seus múltiplos empregos de subalterno, trabalhou como empregado bancário, escriturário, empregado numa livraria, operário numa fábrica de máquinas de costura e, finalmente, mordomo numa castelo na Silésia. Mas o seu único capital era a sua bonita caligrafia, minuciosa e precisa. Todas as noites, depois do trabalho, num pequeno quarto de pensão, Walser continuava a escrever. Em vez de ordens de compra, cartas comerciais ou registos contabilísticos, escrevia peças de teatro, poemas, contos, romances com uma micrografia que cada vez se aproximava mais da extinção.
 
Uma escrita em que as palavras eram a corrente natural da sua imaginação, com paixão total, onírica. Às vezes, ocultava-se em Zurique, na sua "Câmara de Escrita para Desocupados", e aí sob a luz crepuscular de um candeeiro de petróleo deixava que a sua mão indecisa o conduzisse pelos territórios do lápis, cujo traço o empurrava lentamente para o desaparecimento, para o eclipse, mimetizando-se para não ser descoberto.
 
Numa espécie de vagabundagem estilística, indecisa, associativa, feita de ligações imprevistas e ricochetes - "Caneta, se não me ajudas, não sei como avançar" -, Walser devolve a escrita à sua precariedade, enquanto ele próprio se vai consumindo escrevendo, "na sua busca de libertação da consciência de Deus, do pensamento, e de ele mesmo", como escreveu Vila-Matas, em Doutor Pasavento. À semelhança de Hölderlin que passou os últimos trinta anos da sua vida encerrado nas águas-furtadas do carpinteiro Zimmer, em Tübingen, praticando a ilegibilidade, também Walser se dá como desaparecido, passando os últimos vinte e oito anos da sua vida num "manicómio, o mosteiro da época moderna", primeiro em Waldau, depois em Herisau, escrevendo em tudo o que encontrava à mão - envelopes usados, cartões de visita, formulários oficiais, margens dos jornais, farrapos de papel - numa caligrafia microscópica, secreta, uma espécie de retratos de momento, esse género literário tão apreciado por Witold Gombrowicz, os 526 microgramas que só muitos anos depois haveriam de ser decifrados e publicados sob o mais walseriano dos títulos, Território do lápis.
 
Publicado no blog O leitor sem qualidades
publicado por ardotempo às 12:42 | Comentar | Adicionar

Borboletas amarelas

Gabo
 
José Saramago
 
Os escritores dividem-se (imaginando que aceitem ser assim divididos…) em dois grupos: o mais reduzido, daqueles que foram capazes de rasgar à literatura novos caminhos, o mais numeroso, o dos que vão atrás e se servem desses caminhos para a sua própria viagem. É assim desde o princípio do planeta e a (legítima?) vaidade dos autores nada pode contra as claridades da evidência.
 
 
Gabriel García Márquez usou o seu engenho para abrir e consolidar a estrada do depois mal chamado “realismo mágico” por onde logo avançaram multidões de seguidores e, como sempre acontece, os detractores de turno. O primeiro livro seu que me veio às mãos foi Cem Anos de Solidão e o choque que me causou foi tal que tive de parar de ler ao fim de cinquenta páginas. Necessitava pôr alguma ordem na cabeça, alguma disciplina no coração, e, sobretudo, aprender a manejar a bússola com que tinha a esperança de orientar-me nas veredas do mundo novo que se apresentava aos meus olhos. Na minha vida de leitor foram pouquíssimas as ocasiões em que uma experiência como esta se produziu. Se a palavra traumatismo pudesse ter um significado positivo, de bom grado a aplicaria ao caso. Mas, já que foi escrita, aí a deixo ficar. Espero que se entenda.
 
© José Saramago - Publicado no blog Caderno de Saramago
publicado por ardotempo às 04:48 | Comentar | Adicionar
Quarta-feira, 05.08.09

Os gatos e as palavras

Inefáveis
 
“Os gatos são palavras com pêlo. Os gatos, como as palavras, rondam à volta dos humanos sem nunca se deixarem domesticar. É tão difícil meter um gato num cesto, quando temos um comboio para apanhar, quanto ir à nossa memória caçar a palavra exacta e convencê-la a tomar o seu lugar na página em branco. Palavras e gatos pertencem ambos à raça dos inefáveis.”
 
 
Dois Verões, de Erik Orsenna - Publicado no blog Bibliotecário de Babel
tags:
publicado por ardotempo às 19:39 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 03.08.09

Os parques, os livros e as canetas esferográficas

A continuidade dos parques
 
José  Mário Silva
 
 
São cinco da tarde e eu releio, num livro de bolso da Alianza Editorial (Los Relatos, 2: Juegos), um conto brevíssimo de Julio Cortázar: Continuidad de los parques. É sobre dois mundos que de repente se tocam e quebram, não sabemos bem como, uma barreira.
 
No início, o protagonista retoma a leitura de um romance que encetara uns dias antes. No regresso à sua quinta, de comboio, após resolver assuntos urgentes, começa a "interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho das personagens". Logo que pode, fecha-se no escritório. Não está para ninguém. Afundado na sua poltrona preferida, enquanto a mão esquerda acaricia "uma e outra vez o veludo verde" do cadeirão, mergulha nos últimos capítulos do livro. Mergulhar é o verbo certo para descrever o que se passa. Embora ainda esteja consciente da suavidade do veludo e dos cigarros ali por perto, ele experimenta um "prazer quase perverso": o de sentir que a realidade à sua volta se afasta (ou dissolve) gradualmente. Linha a linha, palavra a palavra, ele está cada vez menos no escritório e cada vez mais dentro da história, "deixando-se ir de encontro às imagens que se concertavam e adquiriam cor e movimento".
 
Dentro da história, há uma mulher e o seu amante, determinados a viverem até às últimas consequências uma paixão que as circunstâncias mantiveram em segredo. As circunstâncias resumem-se a um obstáculo: o marido dela. Escondidos numa cabana, os amantes discutem. A mulher tenta evitar o crime (há um punhal escondido que espera a sua hora), procura enredar o amante com os gestos do amor, mas essas carícias apenas desenham "abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir". O destino está traçado; tanto o deles como o da vítima. Ajustam-se os pormenores, planeia-se cada acto, previnem-se os acasos. À porta da cabana, despedem-se e separam-se. Ela segue por um caminho, ele pelo caminho oposto, correndo através dos bosques até distinguir, na bruma do crepúsculo, a alameda que leva à casa.
 
Tudo acontece como previsto: os cães não ladram, o mordomo está ausente. Ele entra em casa e segue as instruções. Atravessa a sala azul, a galeria. Sobe uma escada. Lá em cima, no primeiro andar, uma porta aberta. Punhal na mão, ele apercebe-se da luz que entra pelas janelas, vê um cadeirão de veludo verde e sentado, de costas, infinitamente vulnerável, o homem que lê, absorto, um romance. O marido. O leitor. A dupla vítima.
 
São cinco e picos da tarde. Acabei de reler, num livro de bolso da Alianza Editorial (Los Relatos, 2: Juegos), um conto brevíssimo de Julio Cortázar: Continuidad de los parques.
Estou sentado numa cadeira de plástico cor-de-laranja, diante de uma mesa de plástico cor-de-laranja, num dos topos da Feira do Livro de Lisboa. Na mesa, duas pilhas de livros de capa preta. Tenho a esferográfica a postos, à espera dos meus leitores (essa vaga categoria).
 
Será que aquela rapariga de óculos? Não. O rapaz com o suplemento cultural debaixo do braço? Não. Aquela senhora com cara de quem vai à Gulbenkian todas as semanas?
 
Também não. As pessoas passam, espreitam, seguem. Os adolescentes, carregando grossos volumes de Stephenie Meyer que devem fazer mal à coluna (fora o resto), nem olham. A poucos metros, António Lobo Antunes e uma fila gigantesca dos seus fiéis leitores (uma categoria nada vaga). O céu ameaça chuva, mas não cumpre. De mesa para mesa, os autores que não se chamam Lobo Antunes trocam piadas. Sempre se passa o tempo. Nos seus campeonatos particulares de autógrafos, o resultado final é sempre 1-0, 1-1 ou 0-0. Antes do meu golo de honra, antes do meu prémio de consolação, penso no conto de Cortázar. A continuidade dos parques. A ficção que entra na realidade porque a realidade está já dentro da ficção.
 
No Parque Eduardo VII, ponho-me a escrever mentalmente um texto: é sobre alguém que está numa sessão de autógrafos, sem dar uso à caneta, e esboça uma crónica em que um leitor, como o assassino de Cortázar, atravessa Lisboa e vai ter com ele, ao exacto local onde os Parques (o verdadeiro e o imaginado) se tocam. Contra todas as evidências, o leitor aparece mesmo. E o texto, a crónica real sobre a crónica inventada, também.
 
José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel
tags: ,
publicado por ardotempo às 02:19 | Comentar | Adicionar
Sábado, 01.08.09

Mentiras

Uma boa mentira
 
Leonel Moura
 
Existem muitos casos de animais artistas. O mais antigo que se conhece data de 1806 quando Hokusai, criador da famosa xilogravura “Grande Onda de Kanagawa”, mergulhou as patas de um galo em tinta vermelha e fê-lo andar por uma folha de papel, depois acrescentou uns traços a azul e chamou-lhe “Folhas à deriva no rio Tatsuta”. Nos anos 20 Nadezhda Ladygina-Kohts fez várias experiências com chimpanzés pintores. Nos anos 40 os laboratórios de Yerkes testaram as capacidades de composição. Quando se dava uma folha de papel com marcas em três dos cantos eles punham uma marca no quarto canto. Segundo Morris, a pintura é uma actividade calmante para estes símios.
 
Salvador Dali dizia que a mão do chimpanzé é quase humana e a mão de Pollock é quase animal.
– “Também há quem pinte com larvas mergulhadas em pigmento.”
 
– Com elefantes, gatos, ramos de árvore que abanam ao vento. O pintor francês Roland Dorgelès fez umas pinturas mergulhando a cauda de um burro em tinta que depois assinava com o nome de Boronali. Uma desla, “Pôr-do-sol sobre o Adriático” exposta no Salão dos Independentes em 1910, é famosa. Uma pintura pode ser feita de qualquer maneira, pouco importa. Como provocação, como ruptura, como inovação.
 
André Masson passava fome e drogava-se para perder a consciência do que fazia.
– “E o Pollock apanhava grandes bebedeiras para ser mais espontâneo.”
 
Há também o caso dos artistas inventados. O Centro Reina Sofia dedicou recentemente uma exposição ao pintor cubista Jusep Torres Campalans, companheiro de Braque e Picasso que nutria uma peculiar antipatia para com Juan Gris. Afinal este artista nunca existiu, foi uma criação do escritor Max Aub que, de modo a dar maior veracidade à farsa, pintou ele mesmo, com a ajuda de um sobrinho menor, mais de uma centena de obras assinadas por Campalans. Aub escreveu uma biografia do inexistente pintor, onde para além de uma rigorosa cronologia e relatos de vida, não faltaram algumas fotografias. Uma delas mostra Jusep ao lado de Picasso.
 
 
Qualquer idiota consegue dizer a verdade, mas é preciso talento para saber contar uma boa mentira, dizia o escritor Samuel Butler.
 
Imagem: Aquarela de Jusep Torres Campalans (por Max Aub)
 
Publicado no blog Bibliotecário de Babel
tags: ,
publicado por ardotempo às 21:27 | Comentar | Adicionar

De volta ao paraíso

Mariana Ianelli

 

De volta ao paraiso
 
 
…Basta um livro, apenas um, para desencadear a interminável trama de encontros que ao longo do tempo vai desenhando a frondosa genealogia desta nossa outra família, que, se de nosso não tem o mesmo sobrenome, tem todos os nomes possíveis, todas as variantes de um mais profundo parentesco de espírito.
 
Bem pode ser esta a nossa mítica árvore da imortalidade, bem guardada por uma espada de fogo. E basta um fruto, apenas um, para cairmos na perdição do encantamento. Não por acaso Borges imaginava que o paraíso fosse uma espécie de biblioteca, nem por acaso Saramago reúne seus autores diletos no que ele chama de sua “família de espírito”. É assim que nos rebatizamos, que elegemos parentes de coração, com quem nos reunimos por vontade própria, num silencioso (e nem sempre pacífico) convívio. E cada autor que amamos chama para a roda os seus amigos. Rilke chama Marina Tsvetáieva, Marina chama Anna Akhmátova, Anna nos leva a Ossip Mandelstam. E ainda há vínculos menos evidentes, subjacentes aos enredos da palavra, que, se nos vale descobrir, mais ainda vale imaginar, por exemplo, a gênese do Ensaio sobre a cegueira de Saramago latente no Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma, de Antonio Vieira. Um livro dentro de outro, um mundo se desdobrando em outro.
 
Entramos na mágica Jesusalém de Mia Couto e ali encontramos Hilda Hilst, Adélia Prado, Alejandra Pizarnik, Sophia de Mello Andresen. Entramos no lirismo de Hilda e somos transportados à poesia de Catulo. Assim vamos e voltamos no tempo, varamos os séculos, ignoramos as empedernidas fronteiras do espaço e traçamos nós mesmos a extensão da nossa terra natal, conforme o nosso mapa de afinidades e a bússola das nossas intuições. E tão generosa pode ser a paixão da leitura que por ela também experimentamos a delícia dos amores casuais.
 
Um livro que nos chega sem saber de onde, quem sabe do topo de uma pilha sem sentido, num balcão da livraria, como me aconteceu uma vez encontrar, em edição portuguesa, Uma mulher e Um lugar ao sol, de Annie Ernaux, cuja leitura, antes de me dirigir aonde quer que fosse, plantou-me na própria vida, num momento de luto. E, no meio dessa cartografia fantástica, vamos também de um livro a outras artes, como me aconteceu com a memorável descoberta de O direito de sonhar, de Bachelard, que me fez viajar pelas oníricas telas de Marc Chagall inspiradas na Bíblia. Eis que, lançando pontes, campeando distâncias, cruzando caminhos, aí chegamos ao livro dos livros, ao jardim primeiro, ao fruto dos frutos…
 
© Mariana Ianelli

Publicado no blog Tabacaria - Seção Ler faz crescer 

tags: , ,
publicado por ardotempo às 21:01 | Comentar | Adicionar
Sábado, 18.07.09

A paleta mineral

As cores da terra

 
José Saramago
 
As mãos, quando trabalham a terra, confundem-se com ela. Há pintores que se acercam à superfície do suporte com as mãos manchadas das cores da terra. Há pintores que não podem nem nunca quereriam esquecer as cores da terra quando se preparam para pintar um rosto, um corpo despido, o brilho de um cristal, ou nada mais que duas rosas brancas numa jarra. A luz também existe para esses pintores, mas apreendem-na como se ela lhes tivesse subido do interior da terra obscura.
 
Ao distribuí-la na tela, ou no papel, ou numa parede, o que eles fazem aparecer são os tons surdos e quentes dos barros, os negrumes do húmus, o pardo das raízes, o sangue do almagre. Pintam o humano e a sua contingência com as cores da terra porque essas é que são as cores fundamentais, não as outras.
 
De um retrato que tenha sido pintado pelas cores da terra (como os pintava Cézanne) nunca se diga que está parecido, diga-se, sim, que é idêntico, idêntico ao original, idêntico na sua última substância: neste caso, a maior ou menor semelhança que seja capaz de oferecer-nos será o que menos deva importar. Uma figura pintada com as cores da terra terá sempre no rosto a inteireza áspera do sílex, nos cabelos os redemoinhos que o vento desenha e move nas searas, e as mãos aparecer-nos-ão como se tivessem acabado de erguer do chão os seus frutos mais profundos. As cores, todas as cores, as da terra e as do ar, sempre procuraram as formas de que precisavam para serem percebidas mais além da sua primeira manifestação. As cores foram sempre o que desafiou ou conteve o ímpeto contraditório que se encontra implícito nas formas, campo eterno de um conflito entre as agitações caóticas da rebeldia e as passividades da submissão ao costume.
 
Tudo isto será certamente menos perceptível nas pinturas que, havendo-se proposto como miméticas transposições do “real” aparente, aspiram, acima de tudo, a ser “reconhecidas”, “identificadas”, “classificadas”, porém, essas, mais tarde ou mais cedo, acabam por ser presas da acção desgastadora de um olhar que pouco a pouco as vai “neutralizando”. Pelo contrário, ao defender-se de formas facilmente identificáveis com as representações comuns da realidade circundante, a arte abstracta, quer directa, quer de opção tendencial, “resguarda” e “liberta”, em princípio, a independência relativa da cor, não a “estrangula” no aperto constringente de configurações mais ou menos previsíveis ou de modelos social e consensualmente correctos.
 
Não foi por mera casualidade que utilizei a palavra “tendencial” como característica de uma certa prática pictórica que, apesar de instalada sem equívocos naquilo que, generalizando demasiado, chamamos arte abstracta, se recusa a cortar completamente as pontes com o mundo dos signos e dos símbolos, quer arquetípicos, quer modernos.
 
Ela brotou espontaneamente no meu espírito enquanto contemplava, de olhos deslumbrados e tomado por uma emoção poucas vezes experimentada antes, as pinturas murais com que Jesús Mateo cobria as paredes frias da igreja de San Juan Bautista de Alarcón. Era Jesús Mateo um pintor abstracto “tendencialmente” realista? Ou, pelo contrário, um pintor realista “tendencialmente” abstracto?
 
E essas pontes de ligação a que acima fiz referência seriam somente praticáveis para comunicar a arte “abstracta”com os signos e os símbolos gerados nas diversas indagações de que a realidade tem sido objecto, ou existiriam igualmente para comunicar a arte “realista” com um universo de abstracções em contínua expansão? Pensei então que Jesús Mateo, ao mesmo tempo que se havia libertado das ataduras condicionadoras de um realismo estrito para se entregar a um trabalho sobre formas também elas “tendencialmente” livres, embora em meu entender acatando sempre a lógica cromática, havia logrado, graças à introdução inteligente e criteriosamente medida de signos e símbolos sem custo identificáveis, fundir em uma expressão única, e quase diria uníssona, como um coro a plenas vozes simultâneas, como um políptico perspectivamente reunido em um só ponto de fuga, as enormes paredes que subiam do chão arrastando consigo toda as cores surdas da terra para ir ao encontro das cores luminosas do ar. Perante o ciclópico assombro, conceitos como abstraccionismo e realismo perdem algo do seu significado autónomo corrente, tornam-se mão esquerda e mão direita modelando em harmonia o mesmo barro.
 
Não sei se a igreja de San Juan Bautista de Alarcón virá a ser olhada como a Capela Sixtina do nosso tempo, mas sei, tanto por ciência que creio certa como por intuição divinatória, que o pintor Jesús Mateo nasceu da mesma árvore genealógica que deu os seus melhores frutos em Hyeronimus Bosch e Brugel, o Velho.
 
Tal como eles, Jesús Mateo explicou o homem. Pelo visível e pelo invisível.
 
© José Saramago - Publicado no blog O Caderno de Saramago
 
 
Auto-retrato, de João Fahrion - Pintura, óleo sobre placa de madeira (Detalhe)
publicado por ardotempo às 17:59 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 17.07.09

Fotografia - Boaz Lyu

Fotografia 

 

 

 

 

Boaz Lyu - Fotografia - Coliseu (Roma - Itália), 2009 

Blog de Fotografia Boaz International

publicado por ardotempo às 00:16 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 06.07.09

Aldyr G. Schlee na Palavraria - dia 11 de julho

Aldyr Garcia Schlee - Um oportunidade rara e preciosa para conversar com o autor

 

Na Palavraria:

 

 

11, sábado, 19h: Nós y nosotros, bate-papo com o escritor Aldyr Garcia Schlee, conversando sobre seus dois próximos livros – Don Frutos e Nos limites do impossível – Contos gardelianos e sobre a obra dos escritores Mario Benedetti e Simões Lopes Netto.
 
Aldyr Garcia Schlee (Jaguarão, 22/11/1934) é escritor, jornalista, tradutor, desenhista e professor universitário. Doutor em Ciências Humanas, publicou vários livros de contos e participou de antologias, de contos e de ensaios. Alguns livros seus foram primeiramente publicados no Uruguai pela editora Banda Oriental. Traduziu a importante obra Facundo, do escritor argentino Domingos Sarmiento, fez a edição crítica da obra do escritor pelotense João Simões Lopes Neto. Foi professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas – UFPel, por mais de trinta anos onde foi também pró-reitor de Extensão e Cultura.
 
É torcedor do Brasil de Pelotas, clube que chegou a ser tema do conto “Empate”, publicado em “Contos de futebol”. Criou o uniforme verde e amarelo da seleção brasileira de futebol, mais conhecido como Camisa Canarinho. Recebeu duas vezes o prêmio da Bienal Nestlé de Literatura Brasileira e foi três vezes premiado com o Prêmio Açorianos. Atualmente vive em um sítio em Capão do Leão, município vizinho de Pelotas.
 
Obras publicadas
 
2000: “Contos de Verdades”, contos (ed. Mercado Aberto)
1998: “Linha Divisória” (contos, ed. Melhoramentos)
1997: “Contos de Futebol” (contos, ed. Mercado Aberto)
1983: “Contos de Sempre” (contos, ed. Mercado Aberto)
1991: “El dia en que el papa fue a Melo” (contos, ed. de la Banda Oriental) (republicado em português como “O Dia em que o Papa foi a Melo”, ed. Mercado Aberto, 1999)
1984: “Uma Terra Só” (contos, ed. Melhoramentos)  

publicado por ardotempo às 13:48 | Comentar | Adicionar

O blog da Palavraria

 

A Palavraria Livros & Cafés é a simpática livraria do Bom Fim, em Porto Alegre RS, na Vasco da Gama ao lado da locadora.

 

Palco de lançamentos memoráveis de livros, de oficinas literárias de grandes autores e professores de literatura, de palestras de autoras e autores, com leituras, saraus e conversas.

 

No sábado que vem, dia 11 de julho, apresenta Aldyr Garcia Schlee com Nós y Nosostros.

 

Agora a Palavraria tem um Blog que os seus livreiros chamam de sítio.

 

 

O sítio (ou o blog) da Palavraria está disponível no endereço
 
 
Já existe o convite  de Luiz Heron, Carlos e Carla, a todos os interessados em literatura, poesia, autores, textos e livros em geral para que façam uma visita e realizem um passeio pelos artigos postados  e pelos links. O trabalho recém começou e ele prometem estar atentos à sugestões e realizar todo o esforço possível para apresentar um sítio (ou blog)  dinâmico e satisfatório. Aguardam-se os comentários e as sugestões.
 
Palavraria - Livraria-Café
Rua Vasco da Gama, 165 - Bom Fim
90420-111 - Porto Alegre 
Telefone 051 32684260
 
palavraria@palavraria.com.br

 

tags: ,
publicado por ardotempo às 13:24 | Comentar | Adicionar
Domingo, 05.07.09

Atenção às aparências

Aparências
 
José Saramago
 
Suponho que no princípio dos princípios, antes de havermos inventado a fala, que é, como sabemos, a suprema criadora de incertezas, não nos atormentaria nenhuma dúvida séria sobre quem éramos e sobre a nossa relação pessoal e colectiva com o lugar em que nos encontrávamos. O mundo, obviamente, só podia ser o que os nossos olhos viam em cada momento, e também, como informação complementar não menos importante, aquilo que os restantes sentidos – o ouvido, o tacto, o olfacto, o gosto – conseguissem perceber dele. Nessa hora inicial, o mundo foi pura aparência e pura superfície. A matéria era simplesmente áspera ou lisa, amarga ou doce, azeda ou insípida, sonora ou silenciosa, com cheiro ou sem cheiro.
 
Todas as coisas eram o que pareciam ser pelo único motivo de que não havia qualquer razão para que parecessem e fossem outra coisa. Naquelas antiquíssimas eras não nos passava pela cabeça que a matéria fosse “porosa”. Hoje, porém, embora sabedores de que desde o último dos vírus até ao universo, não somos mais do que organizações de átomos e que no interior deles, além da massa que lhes é própria, ainda sobra espaço para o vácuo (o compacto absoluto não existe, tudo é penetrável), continuamos, tal como o haviam feito os nossos antepassados das cavernas, a apreender, identificar e reconhecer o mundo segundo a aparência com que se nos apresenta. Imagino que o espírito filosófico e o espírito científico, coincidentes na sua origem, deverão ter-se manifestado no dia em que alguém teve a intuição de que essa aparência, ao mesmo tempo que imagem exterior capturável pela consciência e por ela utilizada, podia ser, também, uma ilusão dos sentidos. Se bem que habitualmente mais referida ao mundo moral que ao mundo físico, é conhecida a expressão popular em que aquela intuição veio a plasmar-se: “As aparências iludem.” Ou enganam, que vem a dar no mesmo.
 
© José Saramago - Publicado em O Caderno de Saramago
publicado por ardotempo às 14:11 | Comentar | Adicionar
Sábado, 04.07.09

No espelho, a realidade incorpórea

Da literatura sem qualidades
 
João Ventura
 
 
A literatura como "uma tentativa de tornar real a vida", escreveu Pessoa. Ignorava o poeta que algumas décadas mais tarde Enrique Vila-Matas haveria de fazer da possibilidade de introduzir o real na ficção uma marca do seu estilo pessoal através da qual a aparência de verdade levada até ao extremo converte aquilo que no início é apenas verosímil numa nova forma de realidade que não necessita de nenhuma outra explicação a não ser a da evidência da ficção; e de uma ficção que questiona o nosso limitado conceito de verosimilhança e nos transforma em exploradores mentais de mapas obscuros em cuja cartografia abismal nos adentramos para nos aproximarmos mais da verdade.
 
Trata-se, então, de um conceito de verosimilhança que remete não tanto para aquilo que verdadeiramente entendemos por realidade, isto é, aquilo que acontece, mas mais para aquilo que poderia ter acontecido, que poderá acontecer, introduzindo, assim, na ficção "um sentido de possibilidade" musiliano que transforma as personagens "correntes e vulgares", como, por exemplo, as que atravessam a cartografia vilamatiana de Exploradores de abismos, em expedicionários de mundos paralelos, protagonistas de vivências nunca experimentadas que sobrepõem ao tédio quotidiano com a insolência de quem possui a fórmula mágica que o há-de esconjurar.
 
Lembram estes exploradores vilamatianos, "esses homens [musilianos] do possível [que] vivem, como se costuma dizer, numa trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos" que constituem simulacros de sentido num mundo que Musil sabe sem sentido, mas que insiste em narrar em O homem sem qualidades (Dom Quixote) apesar de "tudo ter deixado de ser narrável e não seguir já nenhum fio" (p. 827). Por isso, terá inventado "um novo modo de narrar que se constitui em permanente ensaio da vida" e que "abriu, sem fechar, o mais amplo horizonte que se oferece ao romance moderno", respondendo (tal como Hermann Broch) àquilo a que Kundera classificou como o apelo do pensamento, "não para transformar o romance em filosofia, mas para mobilizar, com base narrativa, todos os meios, racionais e irracionais, narrativos e meditativos, susceptíveis de esclarecer o ser do homem; de fazer do romance a suprema síntese intelectual".
 
Um convite, então, não para um passeio romanesco ao passado, mas para uma longa expedição através dos mapas obscuros do "apocalipse alegre" (expressão que sintetiza, segundo Broch, a forma como os austríacos viveram nihilismo de fin de siècle), cujos abismos cacanianos me disponho agora a explorar num programa de leitura para afrontar o vazio deste "mundo de qualidades sem homem" em que vou vivendo sem nele me despenhar. Isto é, escolhendo a qualidade de leitor sem qualidades, logo, aberto a toda contingência, a toda a possibilidade de leitura que pode surgir numa qualquer dobra das duas mil páginas da monumental edição da Dom Quixote, numa autorizada tradução de João Barrento.
 
João Ventura - publicado no blog O leitor sem qualidades
Fotografia de Mário Castello - A escultura (MON Museu Oscar Niemeyer / Curitiba PR Brasil), 2009
publicado por ardotempo às 12:49 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 02.07.09

Palavras de Saramago

Palavras
 
“Não pode haver conferência de imprensa sem palavras, em geral muitas, algumas vezes demasiadas. Pilar insiste em recomendar-me que dê respostas breves, fórmulas sintéticas capazes de concentrar longos discursos que ali estariam fora de lugar. Tem razão, mas a minha natureza é outra. Penso que cada palavra necessita sempre pelo menos outra que a ajude a explicar-se. A coisa chegou a um ponto tal que, de há tempos a esta parte, passei a antecipar-me às perguntas que supostamente me farão, procedimento facilitado pelo conhecimento prévio que venho acumulando sobre o tipo de assuntos que aos jornalistas mais costumam interessar. O divertido do caso está na liberdade que assumo ao iniciar uma exposição dessas. Sem ter de preocupar-me com os enquadramentos temáticos que cada pergunta específica necessariamente estabeleceria, embora não fosse essa a sua intenção declarada, lanço a primeira palavra, e a segunda, e a terceira, como pássaros a que foi aberta a porta da gaiola, sem saber muito bem, ou não o sabendo de todo, aonde eles me levarão.
 
Falar torna-se então numa aventura, comunicar converte-se na busca metódica de um caminho que leve a quem estiver escutando, tendo sempre presente que nenhuma comunicação é definitiva e instantânea, que muitas vezes é preciso voltar atrás para aclarar o que só sumariamente foi enunciado. Mas o mais interessante em tudo isto é descobrir que o discurso, em lugar de se limitar a iluminar e dar visibilidade ao que eu próprio julgava saber acerca do meu trabalho, acaba invariavelmente por revelar o oculto, o apenas intuído ou pressentido, e que de repente se torna numa evidência insofismável em que sou o primeiro a surpreender-me, como alguém que estava no escuro e acabou de abrir os olhos para uma súbita luz. Enfim, vou aprendendo com as palavras que digo. Eis uma boa conclusão, talvez a melhor, para este discurso. Finalmente breve.”
 
José Saramago
 
(in O Caderno, de José Saramago, Caminho, 2009)
 
Publicado no blog Bibliotecário de Babel
publicado por ardotempo às 02:50 | Comentar | Adicionar
Quarta-feira, 24.06.09

Indignado sempre...contra a tortura, contra os torturadores

 
 
Sabato
 
José Saramago
 
Quase cem anos, noventa e oito exactos, são os que hoje está cumprindo Ernesto Sabato, cujo nome escutei pela primeira vez no velho Café Chiado, em Lisboa, aí pelos remotos anos 50. Pronunciou-o um amigo que inclinava os seus gostos literários para as então mal conhecidas literaturas sul-americanas, ao passo que nós, os outros membros da tertúlia que ali nos reunia ao fim da tarde, pendíamos, quase todos, para a doce e então ainda imortal França, salvo algum excêntrico que se gabava de conhecer de cor e salteado o que nos Estados Unidos se escrevia. A esse amigo, que acabei por perder no caminho, devo a incipiente curiosidade que me levou a nomes como Julio Cortázar, Borges, Bioy Casares, Astúrias, Rómulo Gallegos, Carlos Fuentes, e tantos outros que se me atropelam na memória quando os convoco. E havia Sabato. Por um qualquer fenómeno acústico associei as três rápidas sílabas a um súbito golpe de punhal. Conhecido como é o significado desta palavra italiana, a associação haverá de parecer o que há de mais incongruente, mas as verdades são para se dizerem, e esta é uma delas.
 
El túnel tinha sido publicado em 1948, mas eu não o havia lido. Nessa altura, com os meus inocentes 26 anos, ainda seria muito o pão e o sal que teria de comer antes de descobrir o caminho marítimo que haveria de conduzir-me a Buenos Aires… Foi aquele meu inesquecível companheiro de mesa de café quem me proporcionou a leitura do romance. Logo às primeiras páginas percebi até que ponto havia saído exacta a ousada associação de ideias que me havia levado de um apelido a um punhal.
 
As leituras seguintes que fiz de Sabato, quer dos romances, quer dos ensaios, só viriam confirmar aquela minha intuição inicial, a de que me encontrava perante um autor trágico e eminentemente lúcido que, além de ser capaz de abrir caminho pelos corredores labirínticos do espírito dos leitores, não lhes consentia, nem por um só instante, que desviassem os olhos dos mais obscuros recantos do ser. Leitura por isso difícil? Talvez, mas leitura fascinante entre todas. A amálgama de surrealismo, existencialismo e psicanálise que constitui o suporte “doutrinário” das ficções do autor de Sobre héroes y tumbas, não nos deveria fazer esquecer que este auto-proclamado “inimigo” da razão que se chama Ernesto Sabato é à falível e humilde razão humana que acabará por apelar quando os seus próprios olhos se enfrentarem a esse outro apocalipse que foi a sangrenta repressão sofrida pelo povo argentino. Romances que se reportam a épocas historicamente determinadas e a lugares objectivamente definidos, El túnel, Sobre héroes y tumbas, Abbadón el exterminador não fazem ouvir somente o grito de uma consciência afligida pela sua própria impotência e a visão profética de uma sibila a quem o futuro aterra, também nos avisam de que, tal como Goya (mais conhecido como pintor que como filósofo…) já havia deixado constância na famosa gravura dos Caprichos: foi sempre do sono da razão que nasceu, cresceu e prosperou a inumana genealogia dos monstros.
 
Querido Ernesto, é entre o temor e o tremor que decorrem as nossas vidas, e a tua não podia ser excepção. Mas talvez não se encontre nos dias de hoje uma situação tão dramática como a tua, a de alguém que, sendo tão humano, se nega a absolver a sua própria espécie, alguém que a si próprio não perdoará nunca a sua condição de homem. Nem todos te agradecerão a violência. Eu peço-te que não a desarmes. Cem anos, quase. Estou certo de que ao século que acabou se virá a chamar também o século de Sabato, como o de Kafka ou o de Proust.
 
 
© José Saramago - Publicado no blog O Caderno de Saramago

 "El sueño de la razón produce monstruos" - Francisco Goya y Lucientes (Los Caprichos) 1799

publicado por ardotempo às 02:14 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 29.05.09

A greve cândida (e impossível)

Armas
 
José Saramago
 
O negócio das armas, sujeito à legalidade mais ou menos flexível de cada país ou de simples e descarado contrabando, não está em crise. Quer dizer, a tão falada e sofrida crise que vem destroçando física e moralmente a população do planeta não toca a todos. Por toda a parte, aqui, além, os sem trabalho contam-se por milhões, todos os dias milhares de empresas declaram-se em falência e fecham as portas, mas não consta que um único operário de uma fábrica de armamento tenha sido despedido.
 
Trabalhar numa fábrica de armas é um seguro de vida. Já sabemos que os exércitos precisam de armar-se, substituir por armas novas e mais mortíferas (disso se trata) os antigos arsenais que fizeram a sua época mas já não satisfazem as necessidades da vida moderna. Parece portanto evidente que os governos dos países exportadores deveriam controlar severamente a produção e a comercialização das armas que fabricam. Simplesmente, uns não o fazem e outros olham para o lado. Falo de governos porque é difícil crer que, a exemplo das instalações industriais mais ou menos ocultas que abastecem o narcotráfico, existam no mundo fábricas clandestinas de armamento.
 
Logo, não há uma pistola que, por assim dizer, não vá tacitamente certificada pelo respectivo, ainda que invisível, selo oficial. Quando num continente como o sul-americano, por exemplo, se calcula que há mais de 80 milhões de armas, é impossível não pensar na cumplicidade mal disfarçada dos governos, tanto dos exportadores como dos importadores. Que a culpa, pelo menos em parte, é do contrabando em grande escala, diz-se, esquecendo que para fazer contrabando de algo é condição sine qua non que esse algo exista. O nada não é contrabandeável.
 
Toda a vida tenho estado à espera de ver uma greve de braços caídos numa fábrica de armamento, inutilmente esperei, porque tal prodígio nunca aconteceu nem acontecerá. E era essa a minha pobre e única esperança de que a humanidade ainda fosse capaz de mudar de caminho, de rumo, de destino.
 
 
 
 
José Saramago - Publicado no blog O Caderno de Saramago
publicado por ardotempo às 23:11 | Comentar | Adicionar
Segunda-feira, 25.05.09

Universidade Senior - Uma idéia de gênio

Porquê no Brasil não poderia existir uma?
 
Mayores
 
José Saramago
 
Em português diríamos pessoas de idade. Num caso e no outro trata-se de eufemismos para fugir à aborrecida palavra “velhos”, que podendo e devendo ser tomada como uma afirmação vital (“Vivi e estou vivo”), é, com demasiada frequência, lançada à cara do idoso como uma espécie de desqualificação moral.
 
E, contudo, pelo menos no meu país, usava-se (usa-se ainda?) uma resposta definitiva, fulminante, dessas que tapam a boca ao interlocutor: “Velhos são os trapos”, respondiam os velhos do meu tempo a quem se atrevesse a chamar-lhes velhos. E continuavam com o seu trabalho, sem dar mais atenção às vozes do mundo. Velhos seriam, claro, mas não inúteis, não incapazes de meter a sovela no lugar certo do sapato ou de guiar a relha do arado com que andasse lavrando. A vida tinha uma coisa má: era dura. E tinha uma coisa boa: era simples.
 
Hoje continua a ser dura, mas perdeu a simplicidade. Talvez tenha sido esta percepção, formulada assim ou doutra maneira, que fez nascer a ideia de criar uma universidade para pessoas de idade em Castilla-La Mancha, essa que precisamente se chama Universidad para Mayores e de que tenho a honra de ser patrono. Pessoas a quem a idade obrigou a deixar o seu trabalho, que fazer com elas? Outras em quem a idade fez nascer curiosidades que até então não se haviam experimentado, que fazer com elas?
 
A resposta não tardou: criar uma universidade para as gerações de cabelos brancos e rugas na cara., um lugar onde pudessem estudar e descobrir mundos do conhecimento ocultos ou mal sabidos. Cada uma dessas pessoas, cada uma dessas mulheres, cada um desses homens, pode dizer quando abre um livro ou escreve a resposta a um questionário: “Não me rendi”. Nesse momento uma aura de juventude rediviva perpassa-lhes no rosto, em espírito é como se estivessem sentados ao lado dos netos, ou foram eles que se vieram sentar ao lado dos seus maiores. O conhecimento une cada um consigo mesmo e todos com todos.
 
 
Qualquer idade é boa para aprender. Muito do que sei aprendi-o já na idade madura e hoje, com 86 anos, continuo a aprender com o mesmo apetite. Não frequento a Universidade para Mayores Castilla-La Mancha (lá irei um dia), mas partilho a alegria (diria mesmo a felicidade) dos que lá estudam, esses a quem me dirijo com estas palavras simples: Queridos Colegas.
 

José Saramago - Publicado no blog O Caderno de Saramago 

Fotografia de Mário Castelo

tags: ,
publicado por ardotempo às 04:15 | Comentar | Adicionar
Domingo, 24.05.09

A sereia de Vila-Matas

Un Bradbury perfecto
 
Enrique Vila-Matas  
 
Al mediodía, un descubrimiento casual. En la biblioteca, detrás de las novelas de Flaubert, encuentro -tan polvoriento como intacto, más de un cuarto de siglo sin verlo- mi añorado y extraviado número 1 de la revista de fantasía y ciencia-ficción Minotauro. Edición de 1964. En aquel año, la revista comenzó a distribuirse en librerías junto a las novelas de la colección del mismo nombre y era en realidad la edición en castellano de The Magazine of Fantasy and Science Fiction.
 
Aquel primer número contenía relatos de Knight, Bradbury, Boucher, Leiber, Clarke, Reed, Anderson, Bester y Ballard. Quien me lo regaló fue la primera persona del mundo a la que oí decir que quería ser mi amiga y a la que sin embargo vi sólo en dos ocasiones -en la segunda me regaló ese ejemplar inolvidable de Minotauro- y después perdí totalmente de vista, sin que haya vuelto a saber nada de ella en los últimos cuarenta y cinco años.
 
No leía mucho entonces y prefería con creces el cine, y de aquella revista - me inquietaba la idea de que fuera de ciencia-ficción - me limité a leer La costa en el crepúsculo, el cuento de Ray Bradbury, el único autor que me sonaba, ya que Truffaut había comenzado a preparar el rodaje de Fahrenheit 451, película basada en una novela suya. No he podido olvidar nunca que quedé absolutamente fascinado por el cuento. Hasta este mediodía siempre lo había recordado como la poética historia de dos jóvenes que encuentran a una sirena de una belleza extrema y van a la ciudad a buscar hielo para conservarla. La sirena se la lleva el mar y ellos se quedan esperando a que vuelva algún día.
 
Releída hoy, me ha parecido recordar que la historia me fascinó porque vi desmentirse de golpe todas las ideas, cargadas de temores, que me había ido construyendo acerca de lo que podía ser un cuento de ciencia-ficción. Creo que vi que la etiqueta de escritor de ese género aplicada a Bradbury no tenía el menor sentido. La costa en el crepúsculo, releído años después, no ha perdido su fuerza y encanto. Al igual que le sucede a la sirena, el cuento tiene unidas dos mitades y termina por ser un relato de orden fantástico, pero en el fondo perfectamente realista: "Las dos mitades de la sirena estaban unidas de tal modo que no se veía dónde la mujer perlada, la mujer blanca de agua transparente y de cielo claro, se confundía con la mitad anfibia...".
 
Me pareció un cuento perfecto. Allí estaba reunida, con la máxima concentración, toda una visión del mundo. Era un relato que enseñaba a escribir relatos. Era un cuento que situaba a la espera como condición esencial del ser humano. Como no había leído por aquel entonces demasiado y no tenía mucho donde comparar, la historia de Bradbury me recordó Ante la ley, de Kafka, donde el protagonista se pasa la vida esperando cruzar una puerta que sólo está destinada a él y que nunca logrará atravesar. También en La costa en el crepúsculo la espera se situaba en el centro de la historia. Leído ahora, el parentesco con Kafka no lo veo por ningún lado. Pero es que, además, la gracia de Bradbury y su genialidad estriban en parte en que, a pesar de que se han pasado la vida clasificándole, es un escritor tan original como inclasificable. En La costa en el crepúsculo es admirable su destreza en el tratamiento de la ambigüedad a lo largo de todo el relato. Es un cuento perfecto, de estirpe clásica, porque se abre a todo tipo de interpretaciones. Es el cuento de una gran anarquista y arquitecto al mismo tiempo. Su historia de la sirena en una playa desierta socava y reconstruye el paisaje banal de la realidad.
 
Al volver a pensar en el relato después de tanto tiempo, he vuelto también a los días del invierno de 1968 en los que adapté ese cuento para el cine, para el primero de los dos cortometrajes que dirigí en Cadaqués antes de cumplir los veinte años. La película la titulé Todos los jóvenes tristes -en homenaje caprichoso a un título de Scott Fitzgerald- y conté en ella la historia de una desesperación generacional. Silvia Poliakov fue la sirena. Quico Viader, Gay Mercader y Manuel Pérez Estremera, entre otros, participaron en este rodaje. La película no llegó a ser montada y por tanto no ha sido nunca vista y lo filmado descansa en una caja circular que guardo en casa. Del rodaje recuerdo muy especialmente un episodio extravagante: la secuencia del suicidio del autor, una escena trágica que incluí en la película y que tal vez fue el involuntario reconocimiento por mi parte de que no servía para el cine.
 
Hasta este mediodía, La costa en el crepúsculo no fue para mí más que un texto ligado a mi biografía cinéfila de joven triste; un texto perdido en una etérea y modesta revista de 1964; un relato no conectado con nada ni con nadie, salvo conmigo, que intenté pasarlo al cine y conservo de la experiencia unas fotografías extrañas que publicó Fotogramas. Hasta este mediodía yo creía que era un cuento que nadie conocía y que, de ir al buscador de google, no lo encontraría ni nombrado. Y sin embargo la sorpresa ha saltado cuando he visto que hay una película española de 1971, The sleeping coast, firmada por Rafael Gasent, "inspirada lejanamente en el cuento La costa en el crepúsculo".
 
¿Es Gasent alguien que en aquellos días llevó una vida paralela a la mía? ¿Tiene Gasent una mínima noticia de todo esto? Lo más curioso es que el año pasado revisó aquella historia rodada en su juventud y "filmó Living in the coast, basándose en aquel cuento de la sirena (...) tomando apuntes de la narrativa de Bradbury, pero llevándolos a su propio terreno". O sea que muy probablemente es alguien que, como yo, ha visto su vida marcada por aquel relato de Bradbury.
 
Ese primer número de la revista Minotauro -me indica también google- fue publicado por el gran editor argentino Francisco Porrúa, al que hace unos años conocí en Barcelona y me trató con un inesperado cariño inolvidable, como si intuyera o creyera que estábamos unidos por más cosas que un simple saludo. Porrúa fue el editor en 1955 de Crónicas Marcianas -también de Bradbury, traducida bajo seudónimo por el propio Porrúa y con un inolvidable prólogo de Borges- y el histórico primer editor de Cien años de soledad.
 
Como pensaba que nadie conocía ese cuento perdido, me he llevado también una sorpresa al enterarme de que lo escribió Bradbury tras leer "un encantador poema de Robert Hillyer sobre el hallazgo de una sirena en Plymouth Rock". Ahora, para completar un círculo imaginario, debería averiguar quién es el tal Hillyer y tal vez acercarme algún día a la playa de Plymouth Rock y repetir allí la secuencia del suicidio del autor. Y de paso comprobar que tampoco Plymouth Rock me pertenece plenamente. 
 
 
 
 
Enrique Vila-Matas - Publicado em Babelia
Imagem: A sereia (detalhe) - Pablo Picasso - Pintura, óleo sobre tela - 1947 
tags: ,
publicado por ardotempo às 15:01 | Comentar | Adicionar
Sexta-feira, 22.05.09

Pela voz da sombra

Sobre O Mago, Fernando Morais revela os segredos
 
Fernando Morais passou quatro anos a mergulhar no passado de Paulo Coelho, a segui-lo como uma sombra, a ir no seu encalço, a falar com os amigos e inimigos e a escrever a biografia do famoso escritor brasileiro. Quando o primeiro exemplar impresso de “O Mago” foi parar às suas mãos, tal como havia prometido, o jornalista brasileiro enviou-o em correio urgente para Paulo Coelho. Tinham pré-acordado que o autor de “O Alquimista” não teria acesso ao manuscrito da sua biografia.
 
 
Deixou passar cinco dias, uma semana, duas semanas e nada. Silêncio tumular. Começou então a telefonar para o escritor e a chamada caía no atendedor de chamadas. Com o telemóvel acontecia a mesma coisa. Aos “emails” não obtinha resposta. Passou um mês, mês e meio. Fernando Morais começou a ficar preocupado. Meteu-se num avião, foi a Paris e bateu à porta de Paulo Coelho. Ele atendeu.
 
“– Senhor, que passa? Que está acontecendo?”, disse Fernando Morais quando Paulo Coelho lhe abriu a porta. “ – Entra para cá, rapaz”, respondeu o escritor.
 
Ficaram os dois em pé. “Ele não me mandou sentar”, conta Fernando Morais, num restaurante de Lisboa onde esteve a semana passada a promover o seu livro. Paulo Coelho explicou ao biógrafo o seu silêncio – que era ainda mais estranho porque na última fase da escrita da biografia falavam várias vezes por dia – dizendo que teve que ler “O Mago” duas vezes. Teve uma enorme dificuldade em se identificar com aquele personagem e descobriu que o seu passado lhe dava “um medo muito grande”. Contou ainda que “O Mago” o tinha obrigado a fazer psicanálise, uma coisa que ao longo de 60 anos sempre tinha recusado. Sentiu-se como se tivesse colocado um dedo na garganta e deitado para fora, tudo o que tinha de feio do lado de dentro.
 
E fez uma queixa. Paulo Coelho disse a Fernando Morais que o facto de ele ser ateu, de ser materialista, o impediu de ver o lado espiritual dele. “Não concordo com essa crítica”, afirma agora Fernando Morais que tem uma explicação para essa crítica. “De cada vez que o Paulo [Coelho] contava, no meio de um depoimento, que um dia estava no seu carro em França e se apercebeu que tinha um anjo ao seu lado eu perguntava-lhe: ‘Anjo como? De carne e osso? Anjo homem ou anjo mulher? Falava? Francês, português, espanhol?’ Ele se irritava com aquilo. Dizia-me que eu não tinha capacidade de absorver a transcendência. Toda a vez que ele falava de experiências paranormais, eu insistia. Não estou me defendendo mas acho que para o leitor do livro foi melhor ter um biógrafo ateu do que um biógrafo crente. Muitas das perguntas que fiz para ele, muitos dos apertos que eu dei nele são curiosidades que o leitor tem.”
Mas entre os dois – biografado e biógrafo – “não ficou nenhuma sequela” e Paulo Coelho “cresceu como ser humano” aos olhos de Fernando Morais quando deixou que tudo isso, o que é revelado em “O Mago”, fosse publicado.
 
Quando Fernando Morais se mudou da editora Companhia das Letras para a Planeta, esta editora só lhe pediu que se escrevesse uma biografia não fosse sobre uma personagem estritamente brasileira. Como sempre tinha tido uma grande curiosidade sobre Paulo Coelho – que não conhecia nem nunca tinha visto –, lembrou-se dele depois de Hugo Chavez ter recusado. Só tinha lido os seus dois primeiros livros – “Diário de um Mago” e “O Alquimista” –, e não se tinha convertido num “coelhista”. Numa entrevista de Umberto Eco descobriu que Paulo Coelho escreve para quem tem fé, para quem acredita. “Não é o meu caso, sou agnóstico, sou ateu, não sou baptizado”, explica.
 
Tinha muita curiosidade “não sobre o fenómeno Paulo Coelho, o ‘popstar’ das letras, a Madonna, o Mick Jagger da literatura mas tinha curiosidade sobre o ser humano”. Queria saber “quem é o cara que vive debaixo da pele do fenómeno Paulo Coelho”. Mas disse à editora Planeta que achava que ele não ia aceitar sobretudo porque teria que ser obrigatoriamente uma biografia não autorizada: ele não leria os originais.
 
Paulo Coelho respondeu por “email” quando lhe fizeram o pedido: “Já recusei mais de 30 propostas idênticas feitas por autores norte-americanos e europeus mas sendo o Fernando Morais a minha resposta é sim”. O jornalista marcou então um encontro com o escritor no aeroporto de Lyon porque ele vive numa localidade no sul da França. Foi a sua primeira surpresa. “Imaginava que ele fosse chegar numa limusina, com batedores, com guarda-costas, com puxa saco, com secretária, com o cara que vai fazer o ‘check in’ para ele, o cara que atende o celular…” Morais que raramente usa gravata até foi de gravata e de repente, viu parar um táxi e de lá de dentro descer “um cara” que parecia “um padre de interior, um cura de província”. Estava de “jeans”, “camiseta”, bota de lona e puxava uma “malinha vagabunda”. “Era um tipo como qualquer outro.”
 
Nesse encontro Fernando Morais disse-lhe que havia uma condição: ele não teria acesso ao manuscrito. Para sua surpresa, Paulo Coelho respondeu que não havia problema. Morais começou a ficar preocupado, a achar que não devia ser uma boa história. “Se ele está me dando com tanto desprendimento isso deve ser uma história água com açúcar.” Achou que tinha entrado “numa roubada” mas foi descobrindo que ao contrário do que possa parecer à primeira vista, ou do que se pode julgar pela leitura das suas obras, a vida de Paulo Coelho é uma sucessão de tragédias. “Desde o começo, desde a infância mais remota, a vida do Paulo é uma sucessão de tragédias familiares, religiosas, sexuais. Ele é internado em hospício, abandona o cristianismo fundamentalista dos jesuítas onde tinha sido educado e na pré-adolescência dá uma guinada de 180º e mete-se com Satanismo, sacrifício de animais domésticos, Anjo da Morte.
 
Paulo Coelho é uma “sucessão de surpresas”. Jornalista há mais de 50 anos, Morais nunca tinha visto nada parecido com o que acontece com o escritor brasileiro. “Ele não é só um fenómeno literário. Quando está junto do público as pessoas não se satisfazem só de receber um autógrafo. Querem tocar nele e muitas vezes quando começa a falar, as pessoas choram.”
 
Depois de acompanhar o escritor pelo mundo, foi para um hotel perto da casa dele em França onde esteve hospedado. Acordava uma hora mais cedo do que o seu biografado, ia para casa dele e só o abandonava quando se ia deitar. “Fui a sombra dele. Não só gravando mas vendo como ele se comportava com a mulher, com o barbeiro, com o vizinho, com o padeiro. Queria fotografar o miolo dele.
 
Regressou então ao Brasil para ouvir as pessoas referidas nesse longo depoimento. Quase todas estavam vivas, menos a mãe que já morreu, bem como Raul Seixas (para quem Coelho fazia letras das canções). Ficou oito meses no Rio e entrevistou 100 pessoas. Regressou a França para reconfirmar informações que Paulo não lhe tinha contado. Ao voltar ao Brasil começou a escrever. Já tinha 200 páginas escritas quando “bateu o olho” no testamento que o escritor renova anualmente. “Ali tinha uma coisa mais importante do que o dinheiro. Numa linha perdida lá no meio dizia: ‘Na minha casa no Rio de Janeiro, no fundo de uma dispensa de guardar bagulhos velhos, tem um baú fechado com dois cadeados. As chaves estão no banco x de Copacabana e esse baú deve ser incinerado com todo o conteúdo, sem ter sido aberto imediatamente depois da minha morte.’”
 
Quando Fernando Morais lê isto e telefona imediatamente a Paulo Coelho a pedir as chaves do baú. O escritor diz-lhe que lá não há nada que lhe interesse (“são só desenhos, coisas da primeira infância”) Morais responde-lhe que não é “bobo” – se fosse algo tão pouco importante ele não ia mandar queimar. Nada feito. Mas um dia Paulo acorda Fernando com um telefonema de madrugada e desafia-o: “Se você descobrir quem foi o militar que me torturou em Agosto de 1969 no interior do Paraná na cidade de Ponta Grossa eu te dou as chaves. Não o quero processar, só tenho muita curiosidade, quero saber quem é esse cara e onde está.” O escritor só se lembrava que o homem era major na época porque tinha patente no ombro e que uma parte de um dos seus dentes da frente era de ouro.
 
O jornalista começou a sua investigação, foi ver quantos majores estavam naquela época naquele sítio, quantos tinham morrido, foi reduzindo a lista e ficaram três ou quatro hipóteses. Foi então consultar o livro “Tortura Nunca Mais” – uma relação com todos os torturadores da ditadura identificados pelo nome. “Cruzei os meus dados e Bingo! Estava lá. Estava vivo, retirado, um senhor já velhinho, que não vive mais na mesma cidade. Fui até lá e na hora em que comecei a falar, ele me botou para fora de casa. Começou a gritar que era ‘um absurdo’, ‘só me faltava essa de ser difamado pelo mundo fora como o torturador de Paulo Coelho! Eu nem sabia de Paulo Coelho, nem me lembro dessa época, eu nunca torturei ninguém’. E eu fiz uma foto dele com o celular porque precisava que o Paulo visse para me poder dar as chaves. Foi a única entrevista que o Paulo leu e a única foto que ele viu antes de ver o livro pronto. Falei é esse o cara? Ele disse: ‘É’. Então eu quero as chaves.
 
Quando foi à casa de Paulo Coelho em Copacabana Fernando Morais pensava que ia encontrar um baú daqueles em que as avós guardam botões e agulhas. Afinal era um baú dos que se levam nas grandes viagens de barco. Uma arca coberta de poeira, com uma televisão a preto e branco em cima e lá dentro tinha “ouro puro”. Eram 170 cadernos e uma data de cassetes áudio onde Paulo Coelho registou os seus diários dos 10 aos 50 anos. Fernando Morais começou a ler e “arrepiou os cabelos”. Percebeu que tinha que começar o livro de novo.
 
Digitalizou todos aqueles documentos, contratou um especialista japonês para criar um banco de dados e um programa de pesquisa. “Joguei fora as páginas escritas e recomecei o livro do quilómetro zero. Isto atrasou o livro um ano.” Obrigou-o a uma nova viagem à Europa para falar com Paulo Coelho “por causa das centenas de episódios e de pessoas a que ele nunca tinha feito referência ou por omissão de memória ou por autodefesa. Nunca o soube e pouco importa.”
 
Todas aquelas revelações íntimas do diário de Paulo Coelho acabaram por trazer a Fernando Morais um problema que não tinha tido nos seus livros anteriores: um conflito ético. “Cada vez que eu descobria uma coisa feia para os nossos valores, uma coisa que depõe contra ele, eu pensava: Será que tenho o direito de tornar pública uma informação como essa sobre alguém que está sendo tão generoso comigo, que está abrindo a sua casa, o seu coração, a sua alma? E isso me perturbava muito. A minha mulher percebeu e me disse: ‘Você está ameaçando submeter o seu leitor a uma censura que o Paulo não te pediu. Ele não impôs nada.’”
 
Se Fernando Morais tivesse um baú como o de Paulo Coelho, não o daria para ninguém. E se o leitor, fechar os olhos e pensar um minuto se entregaria o seu baú, qual seria a sua resposta? Certamente, não daria. Paulo Coelho deu e depois da leitura desta biografia ninguém olhará para o escritor com os olhos de antigamente.
 
Publicado por Isabel Coutinho, no blog Ciberescritas - reproduzido de Ípsilon (Lisboa - Portugal)
tags:
publicado por ardotempo às 15:38 | Comentar | Adicionar
Quinta-feira, 21.05.09

Sobre quadrinhos e mulheres nuas

Muita mulher nua
 
Ivan Lessa
 
Muita mulher nua e muita mulher pelada. Internetando, eu poderia ficar vendo, talvez admirando, muita mulher nua. Algumas até peladas. Muita gente faz isso. Nada tenho contra mulheres nuas ou peladas. Acompanhadas ou não. Fazendo isso ou aquilo outro. Problema ou alegria delas (e seus deles também).
 
Minha cota de mulheres nuas e peladas fazendo artes já se esgotou. Meu tempo passou. Não que eu tenho enjoado. Mulher nua e pelada, até mesmo sendo apenas razoável, é sempre - perdão - um prazer. Agradável de se ver, ter, pegar, fazer o que normal, ou anormalmente, se faz nessas horas.
 
Por ora, nesta prorrogação de meu tempo regulamentar, prestes a se esgotar, não tenho tempo para bobagem. Conforme disse a raposa para as uvas inalcançáveis: "Ora, estão verdes!" E que me perdoem as mulheres nuas e peladas. A culpa está em mim e não nelas.
 
Claro.
 
 
Internetando, digo a verdade, sou mais história em quadrinho. Da época de ouro da HQ. Lá entre os anos 40 e 50. Depois veio Stan Lee, romance gráfico, tudo, as coisas e as pessoas, ficaram excessivamente sérias. Tudo bobagem. Foucault e Derrida nunca se preocuparam com essas coisas. Nem mulheres nuas e peladas, nem com o Doll Man, o Homem-Bala, Manolita, Meia-Noite, Brucutu e Dick Tracy.
 
Will Eisner é o santo padroeiro dessa gente toda, dessa época que se foi. Chegou até mesmo, num dia menos inspirado, a perpetuar o primeiro romance gráfico. Se visse o que Alan Moore e o Frank Miller e o Art Spiegelman fizeram com o gênero, deixaria serenamente que o Espírito encerrasse seu expediente se casando afinal com Helen Dolan além do mais com a benção do Comissário Dolan. E fim de história. Em quadrinho.
 
Almocei uma vez com Will Eisner. Todos brasileiros almoçaram uma vez com Will Eisner. Ele nunca disse não a um festival de HQ, fosse no Rio, São Paulo ou Guarapuçaú. Nem todo brasileiro tem, no entanto, dois desenhos do Espírito incentivando-o, como é meu caso, a "keep up the good fight". Estão lá em casa. Emoldurados e pendurados na parede de meu quarto-escritório.
 
Chego enfim ao busílis. Descobri, depois de quase setenta anos, como morreu O Cometa e porque foi substituído no Globo Juvenil Mensal, em fevereiro de 1942, por seu irmão, O Vingador, que nada tinha a ver com a série de nosso rádio.
 
Um gangster, "Big Boy" Malone, em julho de 1941, matou O Cometa. Fico sabendo, e já tenho idade para suportar o choque, que tudo não passou de uma jogada comercial, direitos, questão de circulação.
 
No sítio que descobri, depois de, sei lá por que motivo, googlar "o cometa hq", lá estava tudo. Um sítio por nome "hq Quadrinhos", em português, e que tem tudo, tudo, tudo da idade de ouro, prata e zircão das HQ. Como o zelador da prazerosa localidade conseguiu originais de capas e histórias para contar suas histórias não sei.
 
Aonde pescou o acervo todo, santo Deus! Será que se trata de um legítmo super-herói? Num sei. Sei que lá está no perfil do homem: Lancelot, idade: 50; Gênero: masculino; Signo Astrológico: Virgem; Ano Zodíaco: Cachorro; Indústria: Agricultura; Locação: Afeganistão. Seguramente alguém tá "mangando de mim". O que importa é reencontrar os dois irmãos, ver, imprimir, pegar, depois de quase 70 anos, repito, sem ver O Cometa e O O Vingador.
 
Tremendo de um blog. No momento, em minha cotação pessoal, cinco estrelas e o apodo de "O Melhor Blog do Mundo".
 
Há outros sítios de HQ sensacionais. Mas sou egoísta. Devagar com o andor. Não acredito nessa história de que a internet é para ser compartilhada. Negócio é que quando é bão, mas bão mesmo, esconder, moitar, malocar.
 
Ao Cometa e ao Vingador, tudo! Às mulheres nuas e peladas, bravo, parabéns, continuem na luta! Saibam, no entanto, que jamais chegarão aos pés de O Cometa e de O Vingador.
 
Ivan Lessa - Publicado no blog BBC Brasil
tags: ,
publicado por ardotempo às 05:20 | Comentar | Adicionar

Coelhos em Paris

Fotografia

 

 

 

 

Coelhos em Paris - Fotografia - Eric Tenin  (Paris - França), 2009

 

Publicado no blog Paris Daily Photo

publicado por ardotempo às 04:01 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

Pesquisar

 

Fevereiro 2012

D
S
T
Q
Q
S
S
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
25
26
27
28
29

Posts recentes

Arquivos

tags

Links