Sábado, 02.04.11

Reviver dos escombros

 

Nenhum sarcasmo sobre a nossa ruína

 

Mariana Ianelli

 

Sabem de grandes virtudes os que sobrevivem a uma cidade devastada. Um senso de comunidade desperta à força de uma tragédia em larga escala. Da noite para o dia, todos são convocados a participar de um assombro mútuo, a recomeçar daqui para frente cúmplices de um mesmo trauma. “Formamos esta ligação com estranhos no luto”, disse numa entrevista a escritora Edwidge Danticat, que enterrou quatro parentes entre os duzentos mil mortos no terremoto do Haiti no ano passado. Mede-se com pudor a diferença entre as desgraças pessoais. A igualdade é mais profunda, incontornável, um sentimento de segunda pátria à qual agora se pertence independentemente da vontade. Não há lugar para a arrogância nem para o tédio. Sobretudo, não há lugar para o sarcasmo.

 

Mas existem os sobreviventes de outras terras devastadas, os que dizem sua miséria sem necessidade de uma palavra. São os que vivem em perpétua quaresma, os que peregrinam e respeitam à risca os fundamentos de uma regra como se fossem precursores de uma disciplina monástica. Não aprendem debruçados sobre os livros, aprendem com a instrução da violência, essa linguagem selvagem que treina o corpo a comunicar logo à primeira vista muitos anos de convívio com a fome. Pedem qualquer coisa e, na falta do mínimo, obrigam aqueles que se desculpam a engolir de novo sua culpa no meio da omissão generalizada. É como se a terra tremesse para alguns e para outros se aquietasse. Como se fosse possível isto, ao mesmo tempo a terra tremer e se aquietar, um despautério que é o nome da injustiça, o descampado das virtudes, a pobreza maior de alguém já não sentir nojo por tantas vezes ter cruzado as mãos nas costas quando as mãos de um outro precisavam.

 

O fato é que quando a arca do dilúvio sai de uma estampa bíblica e desce para a realidade, nem a descrença nem a ironia acrescentam alguma coisa a uma paisagem que foi reduzida a nada. Há de repente um compromisso, uma compreensão tácita de olhares, a semelhança revelada em milhares de mãos estendidas, um laço de sangue que o discurso da razão não pode fazer caber nos limites do racional. É esse instinto de fé, essa longa e sobre-humana tarefa da paciência, da diligência e da humildade que levanta pilares concretos para reviver dos escombros um homem e uma cidade.

 

 

 

 

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Sábado, 26.03.11

Dedicados a escrever

 

Para aqueles a quem os dias são um sopro

 

Mariana Ianelli

 

Raramente concede entrevistas este ermitão chamado António Lobo Antunes. Não vai a lançamentos, não aparece, não promove seus livros. Uma vez, convidado a encerrar um congresso de medicina, não hesitou em frustrar as expectativas declarando que “esperar que um escritor diga coisas interessantes é o mesmo que esperar de um acrobata que ande aos saltos mortais na rua”. Por muito que soe antipático, e com isso prove a outra face da fama, Lobo Antunes não participa da indústria do espetáculo por uma razão muito simples, talvez por isso mesmo incômoda, elementar feito água. Lobo Antunes não aparece porque, sendo escritor, está a escrever. Porque o tempo é curto para o que de melhor ele tem a fazer, e está fazendo – diante do papel, não dos microfones.

 

Há um certo escândalo em se abster do espetáculo quando vigora a lógica de que todo o tempo, por uma boa causa, pode ser negociável. Há um escândalo no sentido radical da palavra, o impedimento de uma lógica perversa que arrebata o escritor da sua mesa de trabalho para um palco, aparentemente em favor da própria literatura.

 

É esperado que, além de escrever, o escritor fale a respeito do seu livro, e fale sedutoramente, que seja cativante, que desperte e faça durar o interesse de uma plateia, que conte um pouco sobre o seu método de trabalho, sobre como faz para pensar o que pensa e dizer o que diz.

 

 

 

É esperado que ele dê mais do que o inefável de sua escrita, ele, que já falhou tantas vezes na vida, e falhou com tanta excelência a ponto de criar um mundo novo dentro da órbita do espanto de estar vivo, ele, que escreve desde sua solidão sem fundo, desde súplicas remotas, fazendo das suas perguntas sem resposta o seu poema, ele agora é este escritor que deve estar apto a responder, a fascinar, a surpreender, como quem volta de uma longa jornada e abre sua bagagem cheia de lembranças exóticas, histórias de além-mar, relatos de pequenas grandes peripécias por trás de suas cicatrizes, tudo isso transformado de chofre num livro vivo, numa proeza, num evento digno de aplauso, como um acontecimento que, para além dos inenarráveis fracassos pessoais que porventura alimentam a própria escrita, possa ser considerado o fato de uma conquista, a razão de um sucesso, a prova de que um livro antes escrito sem plateia e sem garantia de resposta é um livro que, afinal, merece ser lido.

 

Basta pensar no teor venatório da expressão “público-alvo” para ver que alguma coisa aí não faz sentido. Num auditório que reúne uma centena de pessoas com o propósito de ouvir a uma única pessoa, ali, de frente para todos, caberia a pergunta de onde está realmente o alvo, deste lado ou do outro. Porque, ao fim e ao cabo, num verdadeiro encontro entre o escritor e seus leitores, não há quem não saia atingido, quem não se reconheça nas mesmas antigas interrogações de um único homem que, há muito tempo, nos confins da Arábia e do país de Edom, por falta de um consolo para a angústia que sentia, não encontrou outra saída senão cantar, e, assim, dentro de um longo poema, cantando, perguntava por que ele era cercado por todos os lados, vigiado, tomado por alvo, agarrado pela orla de sua túnica, confundido com o pó e a cinza.


 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Sábado, 19.03.11

Escondidos atrás da arte

Palimpsestos

 

Mariana Ianelli

 

Uma grande mulher por trás de um grande homem foi o que descobriu recentemente um restaurador do Museu de Belas Artes de Astúrias, na cidade espanhola de Oviedo. Trata-se de uma figura feminina pintada sob El Retrato de Jovellanos en el arenal de San Lorenzo, de Francisco Goya. Embora a identidade da mulher seja desconhecida, a radiografia de seu porte e seu vestido dá pistas de alguém pertencente à nobreza.

 

Gaspar Melchor de Jovellanos, o homem retratado, cujo braço apoiado à cintura enlaça invisivelmente o braço da jovem escondida atrás dele, foi um personagem eminente de sua época, acadêmico, jurista, filósofo, ávido leitor dos clássicos latinos, ele mesmo autor de vários poemas, peças teatrais e romances.

 

 

Impossível resumir a atuação de Jovellanos nos assuntos políticos, econômicos e sociais que rodearam sua intensa jornada de vida pública. Membro da Academia da História, da Sociedade Econômica de Madri e da Academia de Cânones, Liturgia, História e Disciplina Eclesiástica, além de ministro da Graça e da Justiça, foi um homem coerente com sua ideia de que só falta tempo a quem não sabe aproveitá-lo. Seu espírito audacioso e de embaraçosas virtudes para a época lhe rendeu, além de amigos ilustres, como Goya, inimigos digníssimos, como a rainha María Luisa.

 

¡Oh vilipendio! ¡Oh siglo!/

Faltó el apoyo de las leyes.

Todo/ se precipita: el más humilde cieno/

fermenta y brota espíritus altivos,/

que hasta los tronos del Olimpo se alzan.

 

Versos como estes ilustram bem não só a postura de Jovellanos contra uma aristocracia degenerada como fazem presumir os motivos que o levaram para a prisão em Palma de Mallorca em 1801.

 

Jovellanos era também colecionador de livros e quadros. Corre que suas ideias exerceram grande influência sobre Goya, que chegou a usar o verso de uma de suas sátiras no segundo Capricho.

 

Quinze anos depois de El Retrato de Jovellanos en el arenal de San Lorenzo, Goya retratou mais uma vez o amigo, agora em uma obra com atmosfera algo melancólica, Jovellanos sentado, rosto apoiado na mão esquerda, o olhar pensativo de quem vê e não vê. Um retrato muito diferente daquele primeiro, em que se esconde sob as tintas de um homem altivo e confiante o corpo de uma mulher, que, embora não se saiba ao certo quem é, poderia ser a Enarda de um poema do próprio Jovellanos, um amor de juventude que ele fez questão de preservar na sombra:

 

Quiero que mi pasión ¡oh Enarda! sea,/

menos de tí, de todo ignorada;/

que ande en silencio y sombra sepultada,/

y ningún necio mofador la vea/ (…)/

Amor es un afecto misterioso/

que nace entre secretas confianzas/

y muere al filo de mordaz censura.

 

Curiosamente, Jovellanos era também amigo de Antonio de Porcel e sua esposa, ambos retratados por Goya. O quadro de Don Antonio de Porcel, de 1806, teve o destino trágico de cento e cinquenta anos depois ter sido destruído em um incêndio no Jockey Club de Buenos Aires. Já o faustoso retrato em negro de Doña Isabel de Porcel guarda uma misteriosa cumplicidade com El Retrato de Jovellanos en el arenal de San Lorenzo. Também sob esse quadro existe uma outra pintura oculta: a figura de um homem.

 

Palimpsestos em pintura não são raros, como tem revelado a tecnologia avançada no trabalho de pesquisa de restauradores, que já desvendaram pela técnica de raios-X obras inteiras debaixo de quadros Edvard Munch, Jean-Baptiste Camille Corot, Hieronymus Bosch. Casos assim podem dizer muito sobre uma composição desde o seu primeiro esboço, sobre os caminhos incertos e mutáveis de um processo de criação. Dizem também mais do que isso, mais do que propõem as especulações no campo da ciência e da teoria da arte.

 

Palimpsestos falam de histórias recônditas, de um rosto debaixo de outro rosto, de uma página sobreposta a outra, tudo aquilo que existe subterraneamente e sobrevive, como a própria essência do pensamento, mantido em zona de penumbra, gravado porém com letras de fogo, guardando-se para o momento certo de ser revelado. Segredos da vida por trás da arte.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Sábado, 12.03.11

Vislumbre do infinito

Ciclópico, desmesurado, fenomenal

 

Mariana Ianelli

 

Folhear um dicionário analógico é, de partida, entrar na palavra cosmurgia. Usando uma expressão de Gonçalo Tavares, é algo assim como ingressar num “armazém metafísico” e perder-se numa baralhada de reflexões com energia para gerar muitas vidas.

 

Uma única palavra tem o efeito do grão que faltava para precipitar o sal dos mares, centenas, milhares de possibilidades e aproximações que estavam ali, no fundo do silêncio, só esperando o mote para ser glosado, o primeiro sopro que desperta e põe a máquina do mundo em movimento. Um luxo no passeio dos contemplativos, um dicionário como esse pode levar a um estado de excitação mental a ponto de ocupar o lugar da maior e melhor oficina de poesia.

 

Um bom medidor da intensidade dessa experiência poética é quanta tentação o livro nos inspira a elaborarmos nós mesmos a nossa galáxia pessoal de analogias, em dimensões proporcionais ao universo da nossa linguagem, uma espécie de cubo mágico de palavras que se ligassem umas às outras de acordo com a nossa própria astronomia. Pinçar, por exemplo, a palavra esquecimento e indagar o que ela nos atiça. Esquecer, redimir, desatentar, perder para o escuro, deitar uma pedra em cima – e assim é dada a largada para uma série potencialmente interminável de associações e diferentes matizes que uma palavra suscita dentro da nossa vida. Amar, abraçar sem a restrição da despedida, celebrar que o outro exista, alegrar-se com o pão, o quarto escuro, a fome e tudo o mais que seja repartido.

 

Pensando, então, em uma oficina poética, vale imaginar o dicionário analógico de Borges, algo possivelmente muito próximo do seu Livro de Areia. E que maravilhoso verbete dedicado a Deus no dicionário de Hilda Hilst – Sem Nome, sutilíssimo amado, relinho do Infinito, Cara Escura, Pássaro-Poesia, brusco Inamovível, cavalo de ferro colado à futilidade das alturas, Aquele Outro decantado surdo, O Grande Rosto Vivo, Grande Obscuro, Máscara do Nojo, Cão de Pedra, Grande Incorruptível, Cara Cavada, Sorvete Almiscarado, Tríplice Acrobata, Lúteo-Rajado, Querubim Gozoso, O Mudo-Sempre, Porco-Poeta, Grande Corpo Rajado, O Sumidouro, superfície de gelo ancorada no riso, Coisa incomensurável, Grande Perseguidor e Grande Perseguido, Caracol de Fogo, Grande-Olho, Obscura Cara, O Inteiro Desejado – e outros nomes mais, que, honrando o nome primeiro, inspiram uma lista sem fim.

 

No texto introdutório do dicionário analógico da língua portuguesa de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, Chico Buarque diz que recebeu esse livro de seu pai como um bastão, e com essa herança escreveu muitas canções e decifrou enigmas. Obcecado pelo dicionário, chegou a correr os sebos para tentar deter o monopólio dos raros exemplares que na época existiam. Com a nova edição, publicada no ano passado, Chico sentiu-se espoliado do seu tesouro particular. É compreensível. Um livro assim guarda um vislumbre do infinito.

 

 

 

 


 

 

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Sábado, 26.02.11

Fissura

Por onde a luz penetra
 
Mariana Ianelli 
 
 
Já faz quase seis anos, milhares de peregrinos atravessavam uma ponte sobre o rio Tigre a caminho da mesquita de Kadhimiya, em Bagdá, quando o boato de um homem-bomba entre os fiéis, com equivalente efeito explosivo, provocou a morte de quase mil pessoas, a maioria mulheres e crianças.
 
Foi também como um boato que a transmissão radiofônica da Guerra dos Mundos, de H.G.Wells, detonou uma histeria coletiva nos EUA em 1938. Os marcianos acabavam de aportar no Estado de Nova Jersey a bordo de um meteoro. A guerra começava. Orson Welles, autor da ideia da leitura do livro na rádio, simplesmente enriqueceu o urânio da ficção transformando-a numa verdadeira bomba jornalística. É uma radiância que escapa por esse intervalo de sombra entre o fantástico da literatura e a suposta objetividade da notícia. 
 
Nesse lugar de sombra também Edgar Allan Poe se colocou para escrever e publicar em uma revista, em 1842, O Mistério de Maria Roget, uma investigação do assassinato fictício de uma moça parisiense, cujas misteriosas circunstâncias remontavam às de um crime real, de uma garota chamada Maria Cecília Rogers, assassinada em Nova York. A solução do caso, só encontrada na época da publicação do artigo, confirmava o desfecho da investigação de Poe. Para Dostoievski, bastou a notícia de uma costureirinha ter se atirado do sexto andar de um prédio, agarrada a um ícone da Virgem, para que surgisse dois meses depois a novela A Dócil. Fazendo o caminho inverso, o escritor e jornalista argentino Rodolfo Walsh se serviu dos reposteiros da ficção para narrar no conto Essa Mulher a cena tenebrosa da sua entrevista, em 1961, com Carlos Eugenio de Moori Koening, responsável pela operação de sequestro do corpo embalsamado de Eva Perón. Dezesseis anos depois, salta da ficção a realidade: um comando militar persegue e mata o escritor em plena rua, em Buenos Aires, e seu corpo entra para o rol dos desaparecidos.
 
Como dizia o poeta, há uma fissura, um rasgo, um vão em cada coisa, e é por aí que a luz penetra, nesse lago de enguias onde os fatos, por si só, pouco explicam, nesse lugar da intuição sem propósito definido, na fábula de um homem que, fugindo da morte, vai ao seu encontro, no abraço à imagem da Virgem em queda livre.

 

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Sábado, 19.02.11

Estranheza

Um vaso de nardos e trinta moedas de prata

Mariana Ianelli

 

Ofereça um pouco mais do que o suficiente, escreva uma carta longa, de próprio punho, quando bastaria um bilhete, faça transbordar a taça no lugar da dose mínima, e uma sensação de desconforto irá pesar no ambiente. Não convém ser assim tão generoso. Via de regra, as pessoas desconfiam.

 

Como quando se pergunta pelo preço de uma joia linda e essa joia, sendo de graça, perversamente passa do conceito do que vale muito ao conceito do que não vale nada. Se é de graça, alguma coisa tem. Alguma coisa suspeita, sub-reptícia. Jesus não custou trinta moedas de prata? Pois então, é a célebre alma do negócio. Antes pecar por excesso de cautela do que se arriscar ao engano por ingenuidade. Como disse uma vez Martin Amis, “nós já surgimos não-inocentes”. Da falta de inocência à estranheza frente a um gesto magnânimo são poucos passos. Pois não foi justamente aquele que recebeu as trinta moedas de prata que se escandalizou com Maria Madalena ungindo os pés de Jesus com uma libra de nardo puro, quando podia ter vendido o perfume por trezentos denários? A casa recendendo a bálsamo um dia antes da Ceia e Judas indignado com tamanho desperdício.

 

Diga que sua mão esquerda não sabe o que faz a direita e para um desconfiado o provérbio comprova o delito. Para que seja uma dádiva mas pareça um acidente, como se o vaso, por azar, tivesse escorregado das mãos e só por isso os pés ungidos e a casa inteira perfumada, como se a taça transbordasse por simples distração, como se, afinal, não fosse tudo o que por isso mesmo não tem preço, capriche no delito: não diga nada.

 


 

P.S.: Para lembrar Vanessa de Vasconcelos Duarte, assassinada na manhã de 12 de fevereiro de 2011, último sábado:

A eternidade em uma hora não é mais um verso de William Blake, é este agora que desborda na imobilidade do pânico. Muitos nomes há para esta noite sem escolha: cólera, estupor, acrimônia, nenhum porém tão infinito quanto sorvedouro. Te arrastam para um sorvedouro e ali desgarram a alma do teu corpo. Mais do que a lei dos homens, mais do que uma sombra de culpa, fica a pena perpétua do teu grito se multiplicando até o céu da loucura. Ficam os teus olhos borrados, os teus punhos fechados, a tua forma congelada em posição de denúncia. Porque existem almas que Deus não captura, mas que lhe são enfiadas garganta abaixo, sob o castigo de um perdão a quem jamais, em eternidade nenhuma, a si mesmo se perdoa.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 02:40 | Comentar | Adicionar
Sábado, 12.02.11

Sem assinatura

Os novos condes de Lautréamont


Mariana Ianelli


E se de repente artistas do mundo inteiro aderissem ao anonimato? Contando que toda obra de arte que se preze hoje exibe o epíteto da originalidade, este seria um expediente bastante original. Não deixaria de satisfazer também certo gosto pelo ato performático. Excetuando-se o mal que isso acarretaria para a vaidade e o mercado que dela se aproveita, vale pensar no bem que faria, por exemplo, para a literatura.


Apagados o nome e a figura do escritor, ficaria o seu livro, um livro sendo tudo o que há, nem maior por ter a chancela de uma grife, nem menor por carência de fama. Um livro com seu justo peso e sua justa medida, louvável ou desprezível, impressionante ou insípido, envolvente ou fastidioso por ele mesmo, pelo que nele está escrito, do modo como está escrito, sem os atenuantes ou os encômios da crítica por se tratar deste ou daquele autor, sem a ressalva ao demasiado jovem ou a concessão ao demasiado velho, sem o anexo dos afetos ou das antipatias pessoais.

 

Um livro sendo tudo o que nele há de pensamento, olhar e voz de alguém cujo mistério da autoria, não garantindo mais os privilégios da consagração de um nome, reconduzisse todas as atenções para o texto como um corpo total, com suas virtudes e suas falhas levadas ao primeiro plano, despojadas de manto, chapéu, lapela amedalhada, gravata de lantejoulas e outros distintivos. Quem sabe dentro deste fabuloso universo de escritos apócrifos surgissem muitas surpresas, e um livro, em circunstâncias costumeiras desprezado pela mídia, alçasse ao rol dos mais lidos e comentados, e um outro, antes merecedor do timbre das academias, fosse considerado simplesmente um gatinho perdido no meio de uma savana de leões.

 

 

 

 

O certo é que neste mar de vozes, um grande escritor, contrariando a ansiedade por seu reconhecimento e as ocasiões forjadas para sua autopromoção, levaria um tempo indefinível até ser descoberto, o tempo mágico em que se elaboram os encontros com os leitores, um a um. E agora, sem estar submetido ao peso de nomes que eventualmente falam mais alto do que os livros, o leitor seria respeitado em sua participação soberana nas garimpagens e nas descobertas que fizesse de acordo com seus próprios critérios de exigência, interesse ou predileção. Os escritores, por sua vez, não mais ocupados com atrativos adjacentes, poderiam empenhar um tempo extra no que é a alma mesma do seu ofício, a escrita, o livro, a palavra na sua força intrínseca e na sua jornada paciente através do tempo rumo a um destinatário igualmente anônimo. No correr das águas, os livros iriam se entender entre si e com seus leitores, seguindo uma vida conquistada por seus méritos, dependendo aqui e ali de um pouco de sorte, mas, ainda assim, fazendo prevalecer os méritos, como deveria ser a vida de todos os filhos, que, já de seus pais, antes e para além do nome, herdaram o sangue.


É possível imaginar, neste cenário infinito de textos e de vozes atravessadas por outras vozes, um homem passeando entre mundos de papel coligidos em lombadas enigmáticas, um visitante qualquer que fosse movido pelo sentimento que nele despertam os títulos de alguns livros apanhados ao acaso, até que, subitamente, numa dessas leituras, o susto, o tremendo calafrio, como o de encontrar, com uma estocada de picareta, ouro na rocha: a descoberta de um novo Conde de Lautréamont muitos anos após a sua morte.


Mariana Ianelli - Publicado no blog Vida Breve

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Sábado, 05.02.11

O relâmpago

Ninguém mais senão eu comigo no escuro


Mariana Ianelli


O quarto feito um lago sem fundo e o corpo ali mergulhado, esperando o sono. Nesta hora do mais ninguém senão eu comigo no escuro, vai-se embora a pose de garça, o extenso currículo, a questão da honra. É quando tudo se aclara e as partes da bilha quebrada se encaixam.


Os dias voltam, tantas coisas voltam, o que nem imaginávamos ter salvado aqui dentro, o repique de um sino e um estrondo de portas, em algum lugar daquela casa uma briga mal contida, explodindo em sussurros, mas por que lembrar disso agora, dos móveis arrastados na enchente, das paredes cobertas de lama, de repente a prancheta branca onde o primeiro poema e uma gata siamesa debaixo do calor da lâmpada, tudo isso que vem num instante, e que já foi o pão de cada dia, durante anos e anos, agora é só uma aguada no tempo, um chumaço de nuvens desenhando formas, agora um lustre japonês, agora uma orquídea, agora uma salamandra, todas essas coisas que voltam misturadas, mas cada uma perfeitamente clara, inexplicavelmente viva, perto de ser tocada, nesta hora do corpo caído no escuro, ao comprido na cama, esperando o sono, nesta vigília do terceiro olho, este olho que se abre com perícia de lobo, que se abre e vai à caça de todas essas coisas, é então que lá de dentro vem o relâmpago, mas como foi que não vi isso antes, quanto descaso, quanta ansiedade inútil, ou será que vi e desprezei, pois também isso pode acontecer nesta hora, debulhar o terço do guardai-me em vosso nome, escutai-me, dai-me forças, minha rocha e meu refúgio.


Sabe-se lá quanto tempo dura essa hora que não tem fundo, para um corpo estendido que não está morto, que tem visões que não são as de um sonho, quando tudo fica tão nítido que mal chega o dia seguinte e já não lembramos que sabemos tanto.

 

 

 

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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Terça-feira, 01.02.11

Prêmio Literário Casa de las Américas

 

Nelson de Oliveira recebe prêmio Casa de las Américas (Cuba)

O escritor brasileiro Nelson de Oliveira foi anunciado como o vencedor do prêmio Casa de las Américas, de Cuba. (Literatura Brasileira)


A obra dele, "Poeira: Demônios e Maldições", foi considerada a melhor na categoria Literatura Brasileira.


O júri foi formado por Marcos de Moraes (Brasil), Trinidad Pérez (Cuba) e Ricardo Alberto Pérez (Cuba).


"A novela se sobressai pela eficiência de sua estrutura, que propõe o diálogo entre o discurso do relato e outro discurso que se vale de passagens oníricas e níveis elaborados a partir de jogos radicais com a linguagem", justificaram.


"Esta dualidade conduz o livro a uma posição renovadora que pretende mostrar o novo caminho da ficção, tratando de enfrentar um mundo irreverente e caótico."


A escritora e poeta Mariana Ianelli recebeu uma menção por "Treva Alvorada", e Orlando Senna, uma menção especial por "Os Lençóis e os Sonhos".


LITERATURA BRASILEÑA

 

El jurado integrado por Marcos de Moraes, Brasil; Trinidad Pérez, de Cuba y Ricardo Alberto Pérez, de Cuba acordó otorgar por unanimidad el Premio a la obra:


Poeira: demonios e maldições - Nelson de Oliveira


“Dicha novela sobresale por la eficacia de su estructura, la cual propone un diálogo entre el discurso del relato, y otro discurso que se vale de pasajes oníricos y niveles elaborados a partir de juegos radicales con el lenguaje. Esta dualidad conduce el libro a una posición renovadora que pretende mostrar el nuevo camino de la ficción tratando de enfrentar un mundo irreverente y caótico.
La novela es movida por el impulso de la literatura de pensarse a sí misma, de colocarse en una posición protagónica desde la que puede contemplar sus propias crisis. Estos rasgos colocan el territorio del libro como una zona de vértigo donde el que decida dejarse atrapar estará participando de una experiencia repleta de interrogantes y dudas que a su vez construyen una delirante posibilidad”.

 

 

 

 


Mención Treva alborada - Mariana Ianelli


Mención Especial  Os lençóis e os sonhos, novela  Orlando Senna

publicado por ardotempo às 11:10 | Comentar | Adicionar
Sábado, 22.01.11

A Natureza dá sua notícia

 

Empédocles manda lembranças


Mariana Ianelli


A fotografia é da ordem do extraordinário: a visão noturna de uma cidade timidamente iluminada, com suas construções baixas em tom de ouro velho na penumbra e, ao fundo, contornando a silhueta da montanha ao pé da qual a cidade se espalha, uma cascata vermelho-viva rompendo encosta abaixo. Invisível na foto, o cimo da montanha é a razão do espetáculo.

 

Há anos que o vulcão Etna não se exibia assim com tanto luxo. De tempos em tempos, a força de suas profundezas parece querer dar notícias da sua exorbitância. Nem por isso povoados milenares deixaram de viver à sua sombra. A cidade de Catania já uma vez precisou ser refeita das cinzas pela audácia de haver se estabelecido a apenas 18 quilômetros do vulcão. Mas essa audácia, longe de ser uma insolência, é mais uma tenacidade de amante, uma cumplicidade que atrela o poder da natureza à história de uma ilha que abrigou nas suas grutas os ciclopes de Homero, que recebeu a visita de Platão e inspirou cantos épicos de Virgílio.

 

Aos templos da Antiguidade, aos teatros grego e romano, às dezenas de piazzas, fontanas, duomos e palazzos, junta-se o Etna como mais um monumento, tão ancestralmente vivo quanto a herança histórica e cultural das cidades sicilianas. Na verdade, não é menor a intrepidez de viver onde se ergueu o portento de tantos poemas, episódios e mitos da história ocidental do que a ousadia de dormir e acordar aos pés de um dos maiores vulcões ativos do mundo. É essa intimidade sobre-humana com a potência da terra que nutre a lenda de que Empédocles teria se jogado em uma das crateras do Etna, oferecendo-se em sacrifício de amor aos deuses, como antes oferecera à Natureza seu pensamento. Que teria se purificado no regresso aos quatro elementos, de sua união fazendo elevar-se o Éter. Que teria encontrado no magma o seu banho lustral.

 

 

 

 


A imagem daquele rio chamejante descendo a montanha no meio da noite, que registrou mais uma erupção do Etna na semana passada, se amedronta pela ameaça de uma catástrofe, também fascina pelo seu aspecto fantástico, que lembra Empédocles na versão romântica de Hölderlin: um taumaturgo no topo do vulcão, como um cristo dos poetas, que se despede dos homens conclamando-os a serem livres, iguais e irmãos. Para que se entreguem à Natureza. Que voltem, afinados com os deuses, os cânticos. Para que todos se lembrem do que mataram por descuido. Para que amem.


Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 12:34 | Comentar | Adicionar

Editor: ardotempo / AA

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