Reviver dos escombros
Nenhum sarcasmo sobre a nossa ruína
Mariana Ianelli
Sabem de grandes virtudes os que sobrevivem a uma cidade devastada. Um senso de comunidade desperta à força de uma tragédia em larga escala. Da noite para o dia, todos são convocados a participar de um assombro mútuo, a recomeçar daqui para frente cúmplices de um mesmo trauma. “Formamos esta ligação com estranhos no luto”, disse numa entrevista a escritora Edwidge Danticat, que enterrou quatro parentes entre os duzentos mil mortos no terremoto do Haiti no ano passado. Mede-se com pudor a diferença entre as desgraças pessoais. A igualdade é mais profunda, incontornável, um sentimento de segunda pátria à qual agora se pertence independentemente da vontade. Não há lugar para a arrogância nem para o tédio. Sobretudo, não há lugar para o sarcasmo.
Mas existem os sobreviventes de outras terras devastadas, os que dizem sua miséria sem necessidade de uma palavra. São os que vivem em perpétua quaresma, os que peregrinam e respeitam à risca os fundamentos de uma regra como se fossem precursores de uma disciplina monástica. Não aprendem debruçados sobre os livros, aprendem com a instrução da violência, essa linguagem selvagem que treina o corpo a comunicar logo à primeira vista muitos anos de convívio com a fome. Pedem qualquer coisa e, na falta do mínimo, obrigam aqueles que se desculpam a engolir de novo sua culpa no meio da omissão generalizada. É como se a terra tremesse para alguns e para outros se aquietasse. Como se fosse possível isto, ao mesmo tempo a terra tremer e se aquietar, um despautério que é o nome da injustiça, o descampado das virtudes, a pobreza maior de alguém já não sentir nojo por tantas vezes ter cruzado as mãos nas costas quando as mãos de um outro precisavam.
O fato é que quando a arca do dilúvio sai de uma estampa bíblica e desce para a realidade, nem a descrença nem a ironia acrescentam alguma coisa a uma paisagem que foi reduzida a nada. Há de repente um compromisso, uma compreensão tácita de olhares, a semelhança revelada em milhares de mãos estendidas, um laço de sangue que o discurso da razão não pode fazer caber nos limites do racional. É esse instinto de fé, essa longa e sobre-humana tarefa da paciência, da diligência e da humildade que levanta pilares concretos para reviver dos escombros um homem e uma cidade.
Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve