Maria Kodama fala sobre Borges
Maria Kodama
Um dia o bisavô de Jorge Luis Borges deixou Moncorvo para ir ganhar a vida na Argentina e décadas depois nasceu aquele que é considerado um dos maiores escritores do mundo. Do bisavô nada se sabe, mas do autor de Aleph quase tudo é conhecido, mesmo que a sua posterior passagem por Lisboa para receber uma condecoração tenha sido breve e nem tenha possibilitado uma "expedição" à terra das origens. Quem conta este episódio é Maria Kodama, que está em Portugal para falar do Borges que conheceu e com quem viveu, hoje, na Biblioteca Nacional ao lado de José Saramago.
Não é o primeiro encontro entre ambos para falar da influência da obra do autor argentino, mas, segundo diz, é mais fácil para Saramago "falar dele porque é um escritor e tem uma forma de pensar e de pensar-se muito próxima da que Borges tinha, até porque são os dois muito perfeccionistas" devido às "formas de ver o mundo, que coincidem, mesmo sendo as reflexões filosóficas sobre a vida num caso autobiográficas [as de Borges] e no outro não". Lamenta que "não se tenham conhecido porque creio que se teriam dado muito bem, tido conversas magníficas e creio que conseguiriam conciliar as suas personalidades".
Quando se lhe pergunta o que vai revelar hoje aos portugueses, responde que ainda não sabe, mas pretende contar situações da sua memória em torno de Borges, "até porque a sua percepção é diferente da dos leitores e muda de leitor para leitor". E ao falar da palestra, Maria Kodama não resiste mais uma vez a lembrar as ligações do escritor ao nosso país: "Gostava muito da literatura épica portuguesa, principalmente de um dos seus autores preferidos, Camões, de quem sabia partes da obra de memória." Quanto aos livros do seu parceiro de palestra, Maria Kodama dá especial preferência ao Ensaio sobre a Cegueira, porque possui "reflexões muito agudas" e não protesta quanto ao estilo saramaguiano porque "para mim é fundamental que exista algo que diferencie o autor e se não o encontro desisto da leitura". "Esse fascínio encontro-o em Saramago, como se fosse uma música, o que já é raro, porque a maioria dos autores pensam que escrever é pôr uma frase a seguir a outra e não reconhecem a diferença entre literatura e uma conversa. Falta-lhes a leitura e isso nota-se".
Como presidente da Fundação Jorge Luis Borges, considera que a sua principal tarefa é captar novos leitores e iniciá-los na leitura da obra, porque "não falta interesse aos estudantes e académicos nas universidades, onde já é muito lido, mais até no estrangeiro - designadamente em França e nos EUA - do que na Argentina". Para Maria Kodama, o mais difícil "é preservar a memória, quando o interesse da obra desperta o interesse em promover inúmeras iniciativas mas só vêm pedir o nosso apoio quando está tudo organizado".
Profunda conhecedora da obra do ex-companheiro, Maria Kodama faz questão de lembrar o quanto Borges "desejava ser reconhecido pela sua poesia e queria poder exprimir-se desse modo - que achava maravilhoso - e acho que o conseguiu em muitos poemas". Quanto à prosa, não nega que a tese existente de que o escritor antecipou o aparecimento da Internet, ao tornar o leitor um participante activo, tem consistência porque "o trabalho que fez nos anos 40 antecedeu o que se fez nos anos 70/80".
Uma história que Maria Kodama não deverá contar na palestra de hoje é como conheceu Borges: "Tive o primeiro contacto com ele aos cinco anos através de uma professora que me ensinava inglês, e como o seu sistema passava pela leitura de poesia leu-me dois dele. Portanto, a nossa primeira aproximação foi de ouvido e enquanto me explicava o que estava a ler - mesmo sendo um poema que falava do amor e de sedução -, fazia-o de um modo imperturbável. Anos mais tarde, conheci-o pessoalmente numa conferência a que um amigo fanático de Borges me levou. Não entendi nada da conferência, mas impressionou-me muitíssimo e entendi que era tão ou mais tímido que eu. Aos 16 anos, comecei a estudar inglês antigo com ele e aí começou uma história complexa..."