As Negas Malucas de Mia Couto
Entrevista de Mia Couto
Os moradores da Vila Cacimba, onde se passa o novo romance do escritor moçambicano Mia Couto –Venenos de Deus, remédios do Diabo – poderiam viver parede e meia com os da Vila do Meio-Dia, do lendário musical Gota d'água, de Paulo Pontes e Chico Buarque. Poderiam até ter organizado protestos em grupo. Fosse Atlântico o oceano que banha o lado da África onde fica Maputo, Deolinda, a mulata do romance africano, poderia até ter trocado segredos com Esmeralda, a mulata de Mar morto, de Jorge Amado. A familiaridade das histórias contadas pelo escritor, em que um médico, Sidónio Rosa, apaixona-se pela bela Deolinda, em meio à sua conturbada ausência, é instantânea. Faz lembrar a proximidade que há entre Brasil e os países lusófonos, não só pela língua – agora ainda mais, pelo acordo ortográfico – mas também pelos temas. Mia Couto venceu a guerra civil moçambicana e evolui em uma trama repleta de universalidade: incesto, política, religião, dores de saudades. JB: De onde vieram Bartolomeu, Munda, Sidónio Rosa, Deolinda... Como as histórias sopraram-lhe o ouvido? Mia Couto – Nunca sabemos onde se localizam os personagens que criamos. São vozes, são ecos que moram no fundo de nós, moram na fronteira entre sonho e a realidade. No meu caso, estes personagens corporizam alguns fantasmas relacionados com o sentimento do tempo e o facto de, pela primeira, tropeçar naquilo que se chama "idade". JB: A aproximação com a oralidade, neste Venenos de Deus, remédios do Diabo, é o traço mais forte da sua literatura, hoje? Mia Couto – A oralidade é dominante na sociedade moçambicana. Mas não é o território da oralidade, em si mesmo, que me interessa. È a zona de fronteira entre o universo da escrita e a lógica da oralidade. Essa margem de trocas é que é rica. JB: Você diz que já é mais velho que o próprio país independente. Neste romance, o tema colonial é o pano de fundo das "incuráveis vidas da Vila Cacimba". A colônia deixou de ser personagem? Mia Couto – A colônia nunca foi personagem. Eu creio que, não apenas na literatura, mas no imaginário dos moçambicanos, esse passado colonial foi bem resolvido. É preciso pensar que a independência de Moçambique se deu como resultado de uma luta armada que criou rupturas de cultura bem sedimentadas. JB: O tema da guerra civil esgotou-se? (Não é uma cobrança, só uma provocação...) Mia Couto – Já antes a guerra civil se havia esgotado. No O Outro pé da sereia ele já surge. JB: No fundo, você sempre escreve sobre o mesmo tema? Mia Couto – Escrevi 23 livros, todos tratam de temas diversos. Existe, sim, uma preocupação central em toda a minha escrita: é a negação de uma identidade pura e única, a aposta na procura de diversidades interiores e a afirmação de identidades plurais e mestiçadas. JB: De que maneira percebe o ranço colonial na literatura dos países lusófonos? Mia Couto – Não há ranço. O passado está bem resolvido. JB: O romancista é o historiador do seu tempo? Mia Couto – Em certos momentos, sim. Por exemplo, depois da guerra civil os moçambicanos tiveram um esquecimento colectivo, uma espécie de amnésia que anulava os demônios da violência. Os escritores visitaram esse passo e resgataram esse tempo, permitindo que todos tivéssemos acesso e nos reconciliássemos com esse passado. JB: "As formas de expressão usam-se quando se tem medo de dizer a verdade", diz a sabedoria bruta de Munda, personagem do livro. O escritor diz a verdade? Mia Couto – O escritor é um mentiroso que apenas diz a verdade. Porque ele anuncia como uma falsidade aquilo que é a sua obra. JB: Um brasileiro, ao ler um romance de Moçambique, ganha riquezas sobretudo de linguagem. Você acha que a língua portuguesa tem a perder com o acordo ortográfico? Mia Couto – As línguas nunca perdem. Os acordos apenas tocam numa camada epidérmica, num lado convencional que não é o coração do idioma. Entrevista de Mia Couto concedida a Mariana Filgueiras - publicado no JB Online - 14.06.2008