Entre o desejo e o real

A Fenda - de Alfredo Aquino, Iluminuras, 2007

 

Crítica literária de João Paulo Sousa - Da Literatura

 

Publicado no Brasil em 2007, por mão da editora Iluminuras, A Fenda é o primeiro livro de ficção literária do artista plástico Alfredo Aquino. Trata­‑se de uma reunião de contos de tamanho diverso, unidos, entre outras características, pela presença do que Genette designou como narrador heterodiegético, isto é, aquele que relata uma história na qual não se integrou como personagem. Tal não o impede, porém, de apresentar uma focalização quase sempre construída a partir de um dos intervenientes na acção, embora o grau de conhecimento não se mantenha idêntico ao longo de cada conto. A essa subtil oscilação entre aquilo que a personagem sabe e aquilo que é conhecido pelo narrador fica a dever­‑se um pouco da sensação de estranheza que marca a leitura destes contos. Mais do que sequências narrativas marcadas pelo desenrolar da acção, eles apresentam­‑se como fragmentos das histórias dos protagonistas, cujos passados nos são dados a entrever.

 

Em matéria de futuro, tudo permanece mais aberto, até porque a interrupção ou a suspensão da narrativa, sem o desenlace mais ou menos clássico, muitas vezes até sem ultrapassar a apresentação do problema que aflige a personagem principal, é outro dos traços distintivos destas ficções que contribui para o já referido estranhamento. É no limite anterior à inverosimilhança que a escrita de Alfredo Aquino se detém, conseguindo criar o efeito de perplexidade em relação ao que acontece às suas figuras por mérito de uma hábil capacidade em fundir o sonho e o desejo com o real concreto e quotidiano.

 

Tudo  se passa como se houvesse uma fenda entre esses dois domínios, uma fenda de que as personagens se servem para transitar discretamente entre um espaço mental e o outro, como, por exemplo, acontece com Bernardo, o protagonista de "A Caverna":

 

"Uma única vez, numa noite fria de inverno, em casa e a sós, ele lembrou a ela aquela sensação ancestral que tivera, desenvolvendo a idéia da caverna deslocada no tempo e fincada naquele corredor. Ouvindo seu argumento, Carolina olhou­‑o fixamente do fundo azul de seus olhos, em silêncio absoluto, durante vários minutos, sem nenhum sorriso. Bernardo teve então uma nova sensação, estranha e desconhecida, dando­‑se conta do magnetismo indomável daquele olhar tremendo e predador, de grande felino, e, pela primeira vez, da sua assombrosa semelhança com um outro olhar, presente de maneira errática em sua memória, similarmente azul, grave e milenar, o de uma gata siamesa que convivera com ele e com seu trabalho durante um período de dezoito anos, até a morte do pequeno animal" (p. 29).


A passagem entre os dois planos opera­‑se à vista do leitor, através de uma sintaxe moderadamente regular, afastada de qualquer propósito de torção da linguagem, que, no entanto, não rejeita a tensão decorrente da disponibilidade para alongar a frase, por meio de orações subordinadas, sempre que tal é solicitado pela complexidade da narração. Torna­‑se perceptível, nestes contos, um prazer em trabalhar as palavras que incita à valorização do discurso do narrador sobre as falas das personagens, quase residuais, a maior parte das vezes transformadas em intervenções solitárias, desligadas das do outro interveniente, ou na expressão fragmentária de um monólogo interior. O resultado é uma espécie de clareza meridional da língua, mesmo em momentos que não pareceriam especialmente adequados a essa limpidez discursiva, como se verifica no conto "Baratas Voam dos Cemitérios":

 

"Durante uma recepção para vários convidados, entre os quais o sr. Albumina era dos presentes, numa mansão em estilo neocolonial brasileiro, plantada com elegância entre jardins nas encostas do bairro Pacaembu, aconteceu um fenômeno aterrorizante. A casa repentinamente fora tomada por milhares de baratas que a atravessaram em alta velocidade, como se fosse uma enchente vermelha. As baratas vieram pelo chão e pelo ar, voando através das janelas e correndo pelos pisos de tábuas e mármore, desesperadas e dirigindo­‑se todas numa mesma direcção, o rumo norte, como se seguissem uma bússola interna. O pânico instalou­‑se entre os convidados que gritavam e escalavam cadeiras, mesas e escadarias. As baratas subiram pelas pernas das mulheres, enredaram­‑se pelas cortinas. E aquelas que não ficaram aprisionadas por qualquer razão naquele local, desapareceram como por encanto, nos próximos minutos, seguindo um destino aparentemente programado" (p. 71).

 

Publicado no blog Da Literatura - em 23.05.2008

publicado por ardotempo às 20:38 | Adicionar