O que cada vez mais se parece

Tempos difíceis

 

João Ventura

 

Por estes dias, celebram-se 200 anos do nascimento de Charles Dickens, e o mundo fora dos livros, desgraçadamente, vai-se parecendo, cada vez mais, com o mesmo mundo que ele retratou em romances como David Copperfield, Oliver Twist,

 

Tempos Difíceis ou História de Duas Cidades, que contribuíram para a minha formação literária e de algum modo, ajudaram a moldar as minhas convicções políticas. A actualidade da sua obra pode ver-se, por exemplo, no começo de História de Duas Cidades: "Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos; a idade da sabedora, e também da loucura; a época das crenças e da incredulidade; a era da luz e das trevas; a primavera da esperança e o inverno do desespero".

 

Em Tempos Difíceis, Dickens, critica com acidez as deploráveis condições de vida dos operários ingleses e o fosso abismal que existia entre a sua vida precária e o fausto obsceno dos ricos da Inglaterra vitoriana. Nestes tempos difíceis de crise que assola a Europa, com os impostos a aumentar e os salários a diminuir, com o desemprego a disparar para números impossíveis, com sucessivos cortes nas prestações sociais dos estados, enfim, com cada vez mais amplos sectores das populações a empobrecer, e com a Grécia, seguida de Portugal - onde, de acordo, com números do Eurostat, mais de 2.500 milhões de pessoas sobrevivem em estado de pobreza e de exclusão social - e de outros países europeus, caminhando à beira do abismo para onde os sucessivos desgovernos e os especuladores financeiros nos vão empurrando, impossível não nos assombrarmos ao constatar como este romance publicado em 1854 descreve a realidade actual.

 

É que a obscena desigualdade entre os miseráveis lares proletários, retratados por Dickens na sua frieza, obscuridade e pobreza extremas, e as luxuosas mansões dos capitalistas da época que tratavam os seus assalariados como bestas de carga, parece reproduzir-se nestes nossos tempos difíceis em que que aos magros salários de muitos se contrapõem aos altos salários de uns tantos gestores transitados da política para as empresas e para os bancos. A única diferença entre os privilegiados dos tempos difíceis de Dickens e os privilegiados de agora, é que os de antes se chamavam utilitaristas e os de hoje são neo-liberais, e que uns se reviam em Stuart Miller e os outros revêm-se em Milton Friedman.

 


Vale a pena recordar um acontecimento catastrófico vivido por Dickens, num início de Verão de 1865, quando viu despenhar-se num precipício sete carruagens do comboio em que viajava. Premonitória metáfora de uma Europa, primeiro a Grécia, depois a Irlanda e Portugal e logo as restantes carruagens deste comboio europeu - sem maquinista mas com maquinadores - que hoje vai descarrilando arriscando uma queda sem fim no abismo que se abre sob o seu gasto e destravado rodado metálico.

 

Talvez seja, ainda, possível evitar a queda se os maquinadores que nos conduzem para a catástrofe forem capazes de imitar o mesquinho senhor Scrooge de Um conto de Natal, que ao ver o futuro sombrio anunciado pelos espíritos do Passado, do Presente e do Futuro, onde podia ver-se um túmulo com o seu epitáfio e nenhuma flor flor, soube redimir-se a tempo e converter-se num homem generoso. Uma parábola, afinal, que a senhora Merkel deveria recordar se quiser, ainda, ter remissão.

 

João Ventura - Publicado no blog O que cai dos dias 

publicado por ardotempo às 22:59 | Comentar | Adicionar