Rumo a uma outra estação
A batalha poética de encantar
Mariana Ianelli
Estreia do gaúcho Pedro Gonzaga na poesia, “A última temporada” prenuncia no título a fina ironia do livro, visível, antes de tudo, no fato de um poeta surgir aos 35 anos para inaugurar um fim. Desde uma juventude que termina, e com ela certa exultação e certa irresponsabilibidade, os poemas de “A última temporada” têm o poder de atravessar esta sutil ironia do título para ir à poesia propriamente dita.
Chega, portanto, aonde poucos chamados jovens poetas costumam chegar, a um ponto de suspensão em que a cotidianidade não desencanta o verso. Ao que se perde de uma geração para outra de uma família, ao “misterioso exoesqueleto abandonado” de algumas roupas, à morte de um amigo, o poeta responde com a força de imagens que ficam, com uma fantasia que não se deixa intimidar pela aspereza da verdade de “inquisidores e síndicos”.
Se há um imperativo que move o poeta, esse imperativo é “uma ilusão adamantina, não a verdade”, pois “se puderes fechar os olhos para o real/ fecha agora/ não te preocupes,/ antes,/ aproveita/ hão de acordar-te os credores/ a dor no ciático/ o fingimento da mulher que nunca se entrega”.
Defender e fazer durar essa ilusão requer nada menos que uma batalha poética, afinal, encantar tanto perdeu valor que “quase já não há mais garotas sentimentais/ e por isso o mundo está perdido/ por isso o mundo só poderá ser salvo/ quando armado de alaúdes/ voltar à provença/ um novo exército de trovadores”. É assim que os poemas de Pedro Gonzaga respondem à cotidianidade com o poder da fantasia. O amor entre dois bêbados de vinho, o erotismo da mulher transmudada em ave mítica, a lembrança de dois corpos jovens tingidos de azul e vermelho sustentam, no poema, um instante fora do tempo. Até mesmo “a macabra fantasia” dos mortos, “de permanecerem iguais/ em nossa memória”, participa desse estado poético de suspensão, de encantamento, que não se decompõe como acontece ao efeito da ironia.
A batalha poética de “A última temporada” se faz desde dentro da poesia e também à poesia se dirige, à expressão de uma época desencantada que marca presença na estética contemporânea tanto no seu apreço pelo coloquialismo quanto na expressão de uma poesia autorreferente, instilada pela teoria.
Em seu “poema em linha torta”, Pedro Gonzaga fala daqueles que “de todos os lados/ armam-se de teses/ (futuristas cansados)”, os que “debatem o fim da lira/ locupletam-se com artigos/ em revistas indexadas”, os que “alegam ser capazes de ler na tela/ 300 páginas mas não vencem uma quadra/ de quevedo”. Já farto “da maçada de lhes dar combate”, o poeta apenas ergue seus versos e os mantém suspensos – porque esta sim é a sua batalha – sem pretender enfrentar o que não seja o próprio alcance da poesia no seu benefício de envolver “num delírio (dolorosamente necessário)” quem dela se aproxima.
O teor irônico que sutilmente compõe o livro serve como um reflexo do rosto que o espelho devolve e que o poeta confronta com outra visão, aquela que não envelhece na memória. Mas Pedro Gonzaga não ri apenas de sua nostalgia como ainda ironiza sua condição de poeta num mundo onde o que importa é estar preso ao chão e às coisas chãs: “mais uma vez deliraste/ feito um adolescente/ com a solidão sem par de marco aurélio/ o que não se deixava alegrar/ nem pelo império indiviso/ nem pela admiração renitente dos soldados/ a quem por certo haveria de ferir/ o filho dissoluto/ de que te serve, afinal/ o áspero estoicismo helênico das meditações?/ (...)/ verás que não te aguarda o exílio fatal em capri/ não cunharão teu perfil na face áurea da moeda/ terás meramente o financiamento cancelado/ então veremos até onde vai tua poesia,/ bravo estoico”.
Esta autoironia, que não protege o poeta de suas dúvidas nem dos seus limites, inverte o sentido da irreverência. Este homem que antes teve “esperança,/ agora uma azia intermitente”, este que, como “dédalo”, de um dos belos poemas do livro, “ao inventar uma fuga”, inventou “também uma queda”, sabe que já não pode se escudar no humor quando lhe bate à porta a morte de um amigo, a falta de amor, o dia em que terá de “abraçar o corpo frio de seu pai”.
De todas essas perdas e incertezas expostas, quando “a orquestra pára/ e um a um os rostos abrem suas pétalas”, desse lugar mais profundo do silêncio aonde o sarcasmo não chega é que a poesia de Pedro Gonzaga se alimenta. O encontro de Ovídio e Napoleão, separados pelos séculos mas unidos pelo destino de “uma queda e uma esperança”, no poema “dois homens em elba”, e o antológico poema “em zama”, que retrata o instante entre a esperança e a queda de Aníbal, sintetizam uma só derrota emblemática, a que dá “palavras/ (suprema humilhação)/ a este precário poeta/ do outro lado do mundo/ desconhecido”. Se a ilusão inconsciente chega à sua última temporada, Pedro Gonzaga tem diante de si a fantasia necessária, este desejo que “seguirá clandestino/ rumo a uma outra estação”.
© Mariana Ianelli - Publicado em Prosa&Verso - Jornal O Globo - Rio de Janeiro