A cabeça



A dor na cabeça aumentara.
Começara na noite anterior depois do jantar, um sanduíche industrial, insosso e gorduroso, um erro imprudente, ao qual B. deixara-se levar sem resistência. 
Tornara-se agonia crescente durante o abismo noturno. Fora uma platitude vertical em claro, na escuridão e no calor do verão tropical.
De tempo paralisado como uma fermata.
Intervalo desagradável, perpétuo, estivera apenas metrizado por gemidos imaginários ritmados com a respiração espaçada. Foi começando aos poucos e logo já se fazia dor, sem início e sem fim. Sem sentido. Não houvera a vertigem, apenas a dor. Estava exausto na manhã seguinte, após a vigília indesejada.
A dor o atacara com intensidade. Como um alfinete longo, fio de prata sem volume, macabra criação de tortura científica. Enfiado. De dentro para além dos limites do crânio e transformara o mundo ao redor em algo inchado, esponjoso, disforme  e desesperador.
Uma enxaqueca, talvez. Prolongada como suplício. Intensa, não saberia quantificá-la de outra maneira porque nada sentira parecido antes.
Tudo estava ocupado. Nervos, células, fluídos e pensamentos. Tudo se fizera dor.
A cabeça, os olhos embaçados sem foco, os gestos reumáticos. O fígado, obsoleto pelo arsênico de Napoleão, interpretava-se como um protagonista trespassado e friamente dividido. Congestionado. Abismado e incapaz. Sem função vital.
Lâmina transversal, polida, resplandecente e áspera no corte excessivo.
A dor não era uma palavra, um conceito.
Era objeto substantivo, físico, metal em fusão perdendo calor, que transbordava desconfortável num espaço um tanto maior que a caixa craniana e expulsava as abstrações, os pensamentos e as possibilidades das ações refletidas.
Punha os demônios na sala e no quarto.

Era apenas dor. Imperativa, sem matizes.

Ele não era mais um indivíduo, um sujeito de pensamentos e de ações, de humor moderado e silencioso. Não mais. Agora ele passara a ser a dor. Simplesmente a dor, que tomava conta e espaço de tudo em torno e na sua atenção, desfiada.
A dor era agora o tempo, intumescido e imóvel.
Gesso nauseabundo. Um rumor – infinito – de pele de surdo, sem a usina das pancadas, somente o ruído profundo, da gruta infernal, monótono.

Aquilo se estendera pela manhã e pelo princípio da tarde.
Mas passara lentamente. Em câmera bem lenta. Diminuíra e como chegara, partira.
B., que era a dor, passou a ser o nada. Um trapo, um miolo de pão dormido.


© Alfredo Aquino – Conto A cabeça, Revista Aplauso nº 86 - Porto Alegre RS  2007
    Pintura de Siron Franco
publicado por ardotempo às 02:34 | Comentar | Adicionar