O ângulo da frase
As coisas mais simples
João Ventura
Dizem que o poeta tem seis sentidos: “os sentidos, com os seus traços lineares,/ são cinco como os quatro elementos mais/ o éter dos alquimistas. À volta deles anda o sexto/ que nasce da ideia do homem/ de que falta sempre qualquer coisa para atingir/ a perfeição”. O poeta habita uma casa na Mexilhoeira Grande. No quintal do poeta há uma figueira onde ele colhe, ao amanhecer, "os figos de S. João, os primeiros, que se colhem/ com um gesto só, ficando inteiros na mão". Na biblioteca do poeta há um livro de D. H. Lawrence onde este aconselha que se parta “um figo/ em quatro pedaços, para o comer, depois de deitar fora/ a casca”.
Mas o poeta que conhece “múltiplas formas de comer um figo” vai mais longe do que Lawrence e pensa também na figueira. Primeiro, os figos - mas poderia ser “a mulher da fotografia avançando até ao fim do molhe”, ou um homem encostado "à porta do palheiro", ou ainda, e sempre, a presença obsessiva do mar, do litoral, ou mesmo a visão das "ruas cheias de gente" de uma cidade qualquer - as coisas mais simples, portanto, como matéria impura que o poeta recolhe dos dias que passam.
Depois, “a árvore” que lhe “agarra a alma com os seus ramos ásperos” que o poeta afasta, "a mão transformada num prolongamento da figueira”. A mesma mão com que o poeta traça “o ângulo da frase”, que mostra as coisas mais simples, assim como o seu avesso, ou a sua transcendência, porque “o que é simples também pode ser o/ seu contrário”.
A mesma matéria impura que se estilhaça em “mil pedaços pelo chão” como um espelho quebrado da realidade que irrompe no poema, literal e figuradamente, inscrevendo um paradigma narrativo através do qual o prosaico invade o poético. Agora a mão do poeta afasta os ramos da figueira e atravessa a “fronteira de vida rasgada pelas coisas”. Dos mil pedaços em que o espelho partido reflecte as coisas mais simples, solta-se “um sopro metafísico” que empurra o poema ao encontro da sua substância mais profunda e o impede de ganhar “a ferrugem do tempo”. Na casa do poeta cresce o deslumbramento diante de coisas tão simples como os figos do quintal ou “a mulher da fotografia” - o quotidiano irrompendo furtivamente no poema para logo ser desfocado, transfigurado, através da alegoria, do devaneio.
“O tronco da figueira/ [é agora um] corpo de mulher nua; […] e o figo que o poeta tem na mão [fá-lo] sentir os seus seios macios”; há também a intertextualidade que o poeta convoca desde a sua biblioteca numa busca da essencialidade poética – D. H. Lawrence, Shelley, os poetas gregos. Há um trabalho sobre a história; há navegações errantes, partidas e chegadas, regressos, há um “conceito de paisagem” e uma “imagem da cidade por entre as ruas cheias de gente”.
Na casa da Mexilhoeira Grande, Nuno Júdice escreve um livro "à luz do apocalipse,/ as primeiras linhas do ocaso": descrições, narrações, personagens, memórias, odes, uma carta. O livro chama-se As coisas mais simples e foi escrito com os cinco sentidos mais um, aquele que só os verdadeiros poetas têm. Na curva da noite, arrumo as páginas do livro que o poeta escreveu. “Limito-me a deixar tudo no seu lugar" - a figueira, a fotografia, a biblioteca do poeta - "como se nunca aqui tivesse entrado, e volto a sair,/ pela abertura redonda, para a grande praia do poema” onde tudo recomeça.
João Ventura - Publicado no blog O leitor sem qualidades