Os mortos nunca faltam
Uma crónica ou lá o que é
António Lobo Antunes
Em Almeirim, no almoço anual com os meus camaradas.
Ouvir falar de África o tempo inteiro. Tratam-me sempre tão bem! Às vezes tenho dificuldade em distinguir, nos homens de hoje, os rapazinhos de então. Depois um sorriso, um trejeito, qualquer coisa para além das feições e reconheço-os.
Trazem as mulheres, os filhos, mostram a fotografia dos netos. Há quem venha do estrangeiro, de propósito. Há quem ainda ponha a boina na cabeça. Quase todos continuam lá, pelo menos uma parte deles continua lá. Os mortos connosco. Falo pouco, como sempre, oiço-os. Vivi tudo aquilo que eles continuam a viver e que, para mim, é uma espécie de sonho.
Farrapos de lembranças, coisas que me dizem que fiz e mal recordo. Ao lembrarem-mas avivam-se um bocadinho, desbotam-se de novo. Publicaram um livro com as cartas que escrevi durante aquilo: não o li nunca. Não sou capaz. Não é que queira esquecer, é que foi outro que por lá andou. Foi outro e fui eu, que difícil explicar isto. Não escrevi nenhum livro sobre a guerra, limitei-me a intercalar episódios laterais nos primeiros textos publicados, para estruturar melhor os capítulos e, talvez também, para, em certo sentido, me libertar de episódios que me embaciavam a memória, libertando-me deles como de um vómito.
Uma vez liberto deles pensei. Agora posso começar e, então, comecei.
Tanto tempo até encontrar o meu tom, o meu modo, uma forma que não devesse nada a ninguém, e em que as vozes alheias não entrassem na minha. Em Almeirim longos abraços enternecidos, saudades, quem sou eu? Sei e não sei, fujo de mim, regresso, persigo-me desisto. Sou muitos. Deixei muitos pelo caminho e continuo a ser muitos. Um dia tudo isto pára. E metem um só no caixão. Fiz o que pude, com a força que tinha, e dói-me que imensos erros, patetices, asneiras. Sofri que me fartei.
Algumas alegrias no meio disto, claro, alguns momentos quase perfeitos na eterna guerra civil dos meus dias. É isso que me confunde mais: porquê esta violência interior, estes excessos, esta permanente, desesperada busca? Trocava-me por qualquer um, preferia ser um bicho. Lembro-me de uma senhora alentejana na consulta, com uma doença horrível, ao perguntar-lhe como se sentia. Só fezes, só fezes, bebendo até às fezes, o cálice da amargura.
Trazia-me miminhos, ovos, figos, prendas de nada que eram imenso.
Há semanas fui ao Porto assinar na Feira, e a ternura e a delicadeza dos leitores comoveu-me. Uma fila de gente que não acabava, pessoas com sacos cheios de livros. Mereço isto, a atenção, o carinho para com um sujeito que lhes dá palavras em páginas coladas no interior de uma capa? Tenho dúzias de defeitos de que me envergonho mas, ao escrever, sou inteiramente honesto. Valha-me isso. Greene dizia que um escritor é um fulano sentado a uma mesa, cercado de criaturas que não existem. Não acho assim: sou um fulano sentado a uma mesa recebendo frases que não entende de onde lhe vêm e se colocam mais ou menos por ordem, apesar dele.
A seguir vem o trabalho pesado das correcções sucessivas, cortes, ofício de costura, achar outro modo, horas numa vírgula. Uma sina difícil e esquisita, que me acompanha desde que o início, e me condiciona a vida.
Em Almeirim com a tropa, emboscadas, flagelações, minas, álbuns e álbuns de fotografias daquilo. Não tenho nenhuma, não quero ter nenhuma. Bastam-me as mangueiras de Marimba que me perseguirão para sempre, cheias de morcegos. Uma longa fila de mangueiras enormes, os crocodilos do rio Cambo, um leão que, no Leste, passou rente à viatura: demasiada tralha já, de que me tento livrar sacudindo o lombo da alma. Em parte sou capaz, em parte não sou. E as mangueiras persistem.
Até ao fim hão-de morar comigo? Almeirim uma terra bonita. Não me importava de morar lá, conhecer as pessoas. Não me importava de morar fosse onde fosse, como não me importo de morar aqui, é me indiferente o lugar, desde que haja esferográfica, papel, uma cadeira e uma mesa. O almoço dos camaradas num restaurante enorme, com um casamento ao lado. Acho que um casamento, não sei. Vinha-se cá fora fumar, com o sol a pisar-nos. Assinei um livro ao dono do restaurante, antes de me vir embora. Eles continuaram lá. Gente de quem eu gosto, com quem vivi muitos meses. Nem os mortos faltaram: estávamos todos, os mortos nunca faltam. São os primeiros a chegar e os últimos a deixarem-nos. E aqui estão eles comigo, apesar de eu sozinho.
António Lobo Antunes