A lenda dos jaguarões

As grandes onças brabas

 

Aldyr Garcia Schlee

 

Dizem que ali, para lá daquela volta do Jaguarão, lá adiante, nas barrancas, viviam as grandes onças brabas – metade tigre, metade peixe – que deram nome ao rio. Eram como sereias, com os seios, o jeito, o encanto de mulher. Talvez ocultassem sob a água o mistério de suas escamas de prata e de suas caudas ondulantes; mas não tardavam em revelar, na agudeza das garras, a voracidade de suas entranhas de fera.

 

Conta-se que elas atraíam e seduziam a gente com tal fascínio e encantamento que jamais qualquer um de nós pôde perceber que fora arrastado até ali a ponto de perder o coração. Conta-se que as grandes onças brabas comiam só o coração de suas vítimas.


Nas esplêndidas noites de lua, nas preguiçosas tardes de mormaço, nas resplandecentes manhãs de garoa com sol – em épocas de jasmim e flor de laranjeira – aqueles jaguarões deslumbravam e enfeitiçavam as pessoas apenas para comer-lhes os corações; só o coração. Conta-se que nunca ninguém teve memória para lembrar que fora vítima das grandes onças brabas.

 

Os que um dia se sentiram chamados para o rio, que serenamente entraram pelas águas e inadvertidamente se entregaram às garras das feras, ofuscados pelo brilho das curvas e subjugados pelo encanto feminino daqueles seres fantásticos – os perdidos de amor – estes deixaram ali o coração sem se darem conta disso e de tudo o mais.

 

Há quem diga que a história dos jaguarões não passa de lenda, até porque não resta por aí uma só lembrança das grandes onças brabas; jamais alguém admitiu ter sido atacado por elas; nunca ninguém cometeu a loucura de pretender provar a existência desses entes extraordinários que viviam no rio. Houve quem dissesse que tal lenda teria sido inventada em outros tempos pelos jesuítas e divulgada e aceita por aqui como remate dos primitivos rituais de iniciação dos índios, ao simbolizar na perda do coração o fim da pureza do amor e, assim, o risco da tentação, da traição – de tudo que é proibido e pecaminoso.

 

Houve quem dissesse que lenda não há, nem nada. E que, desdobrando-se um rosário de prostíbulos à beira do rio, era fácil imaginar ali mesmo na praia, tentadoras e humanamente renascidas, as grandes onças brabas – com as quais deixávamos a inocência de nossos corações, descobrindo, nos perigos da noite e nos riscos da clandestinidade, o carinho comprado e a ausência de afeto.

 

Eu vos digo, em verdade, que nada sei de maravilhas embora trema ao falar de jaguarões. Talvez eu também seja daqueles que não tenham se dado conta de mistérios, que não guardem lembrança de milagres, que não se animem a comprovar magias. Mas, cada vez que venho aqui, sei que perco um pouco o coração; e que, no entanto, saio redivivo. Por tudo, prefiro contar histórias que me contaram como verdadeiras: os meus Contos de Verdades.

 


 

A.G.S. 

Ilustração: Xilogravura de Leandro Barrios

 

Contos de Verdades ©Aldyr Garcia Schlee, edições ardotempo 2011 

 

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