A saída
Estação de serviço
António Lobo Antunes
- Preciso de tempo
disse ela, a tirar a mão da mão dele.
- Preciso de tempo. Foi tudo muito depressa e sinto-me baralhada.
O homem ficou à espera.
Estavam sentados no restaurante de uma estação de serviço, na esperança que ninguém conhecido de algum deles entrasse e os visse.
A mulher disse:
- Depois há o meu marido e os miúdos de um lado, tu do outro e a minha confusão no meio. Sinceramente não sei o que fazer.
O homem continuou calado, a brincar com uma colher pequenina. Não a brincar, a torcê-la nos dedos.
Daqui a nada parto isto, pensou ele, e poisou a colher no tabuleiro.
Havia sempre automóveis junto às bombas e pessoas a desenroscarem as tampas dos depósitos. Felizmente todos estranhos. A mulher não usava aliança, usava um anel de prata, largo, no médio da mão esquerda. Desde o primeiro momento que o homem gostava daquele anel.
A mulher disse
- Para não falar na tua mulher e nas tuas filhas. Se calhar não há solução para nós
isto sem o olhar, a olhar a televisão junto ao tecto, não reparando nela.
O homem reparou: era uma cantora negra, de lingerie e botas, com sujeitos negros a dançarem-lhe em torno.
A frase
- Se calhar não há solução para nós
ia ecoando sem fim dentro dele.
Junto ao restaurante da estação de serviço havia um hotel barato onde entraram duas ou três vezes, demasiado tensos, demasiado aflitos. A mulher despia a roupa interior depois de puxar os lençóis para cima
- É a primeira vez que isto me acontece
explicava ela.
- Palavra de honra que é a primeira vez que isto me acontece desde que casei
e o homem estendido ao seu lado, pouco à vontade, a pensar
- Não vou ser capaz, tenho a certeza que não vou ser capaz.
E não foi capaz de facto, ficou para ali quietinho, envergonhadíssimo, no receio de que a mulher pensasse que ele era impotente.
A cantora negra da televisão deu lugar a um grupo de guitarras eléctricas que acompanhavam um sujeito ruivo.
A mulher propôs
- Vamos deixando correr até nos conhecermos melhor, não achas?
O homem tocou-lhe de leve no anel de prata:
- É uma hipótese
disse ele, com qualquer coisa a rasgar-se-lhe ignorava em que sítio, na barriga, no peito, ou nem na barriga nem no peito, no fundo:
- Sinto-me cada vez mais preso a ti, sabias?
e, ainda a meio da frase, já a achava pateta: um marido, três filhos, o mais novo cinco anos se tanto, as filhas dele dezasseis e dezoito, nem uma só razão de queixa de ninguém lá em casa. Além do mais gostava do apartamento.
A mulher disse
- Eu também me sinto cada vez mais presa a ti mas o que é que podemos fazer?
imensa coisa a separá-los, crianças, família, gostos sem relação com os do outro, talvez, porque não acabar isto agora, porque não cessar de nos vermos, telefonemas às escondidas, culpabilidade, remorso, três filhos, que complicado, e a seguir?
A mulher disse
- Detesto a ideia de nos separarmos
e a cara esquisita como quando se aferrolham as feições para proibir uma lágrima, o homem, para si mesmo
- Não chores tu também
porque uma humidade no interior dos olhos, ele que desde a morte do pai não se recordava de, e admirou-se que a mulher não o tivesse achado impotente:
- Não tem importância nenhuma
disse ela
quando menos esperares volta
e uma gratidão de cachorro humilhado nele, ganas de abraçá-la durante imenso tempo a repetir
- Amo-te sem descanso,
a repetir
- Meu amor e nem
- Amo-te nem
- Meu amor
uma imobilidade de vencido, a súplica calada
- Não me mandes embora
uma tristeza só comparável à de quando a mãe deu o hamster a um vizinho
- Não aguento mais o chiar desta roda
e a mulher, metida na chávena de chá verde, informando-o que bebia litros de chá verde por dia
- Limpa o organismo das pessoas, sabias?
o homem
- Também detesto a ideia de nos separarmos mas detesto ainda mais a ideia de deixarmos correr
enquanto na televisão a negra de novo, com a mesma lingerie e as mesmas botas, a percorrer o corpo de um sujeito com o indicador lento, fitando a câmara numa espécie de gula. Os carros deles achavam-se estacionados, lado a lado, no parque vazio onde só uma furgoneta de entregas.
A mulher disse
- Que outra solução temos?
O homem levantou-se devagar
- Não sei
declarou
- Já venho
e em lugar dos lavabos saiu para o carro, abriu a porta, sentou-se ao volante, viu-a de pé igualmente, dava ideia que a chamá-lo, alcançou o parque e não tornou a vê-la, apanhou a estrada na direcção de Lisboa, cada vez mais depressa, uma curva suave, outra curva, notou as árvores da berma, plátanos, cento e vinte, cento e trinta, cento e cinquenta, ao ultrapassar um camião o volante escapou-lhe, o volante de onde os bombeiros tiveram dificuldade em desencaixá-lo quando um dos plátanos o recebeu, de folhas tão verdes como o chá que limpa o organismo das pessoas.
António Lobo Antunes