Poemas de Mia Couto
O bairro da minha infância
Mia Couto
Não são as criaturas que morrem.
É o inverso:
só morrem as coisas.
As criaturas não morrem
porque a si mesmas
se fazem.
E quem de si nasce
à eternidade se condena.
Uma poeira de túmulo
me sufoca o passado
sempre que visito
o meu velho bairro.
A casa morreu
no lugar onde nasci:
a minha infância
não tem mais onde dormir.
Mas eis que,
de um qualquer pátio,
me chegam silvestres
risos de meninos brincando.
Riem e soletram
as mesmas folias
com que já fui
soberano de castelos e quimeras.
Volto a tocar a parede fria
e sinto em mim o pulso
de quem para sempre vive.
A morte é o impossível abraço da água.
Frutos
Mia Couto
A bondade da mangueira
não é o fruto.
É a sombra.
A térrea, quotidiana,
abnegada sombra:
no inverso do suor colhida,
no avesso da mão guardada.
Há a estação dos frutos.
Ninguém celebra a estação das sombras.
Assim, o amor e a paixão:
um, fruto; outro, sombra.
A suave e cruel mordedura
do fruto em tua boca:
mais do que entrar em ti
eu quero ser tu.
O que em mim espanta:
não a obra do tempo
mas a viagem do Sol
na seiva da árvore
A arte da mangueira
é a veste de sombra
embrulhando o seu ventre solar.
Para o homem vale a polpa.
Para a terra só a semente conta.
Números
Mia Couto
Desiguais as contas:
para cada anjo, dois demónios.
Para um só Sol, quatro Luas.
Para a tua boca, todas as vidas.
Dar vida aos mortos
é obra para infinitos deuses.
Ressuscitar um vivo:
um só amor cumpre o milagre.
Tristeza
Mia Couto
A minha tristeza
não é a do lavrador sem terra.
A minha tristeza
é a do astrónomo cego.
[in Tradutor de Chuvas, Caminho, 2011]
Publicado por José Mário Silva no blog Bibliotecário de Babel
Imagem: Fábrica da Brahma - Bairro do Paraíso - Pintura de Arcangelo Ianelli - Óleo sobre tela, 1957 (São Paulo SP Brasil)