Escondidos atrás da arte

Palimpsestos

 

Mariana Ianelli

 

Uma grande mulher por trás de um grande homem foi o que descobriu recentemente um restaurador do Museu de Belas Artes de Astúrias, na cidade espanhola de Oviedo. Trata-se de uma figura feminina pintada sob El Retrato de Jovellanos en el arenal de San Lorenzo, de Francisco Goya. Embora a identidade da mulher seja desconhecida, a radiografia de seu porte e seu vestido dá pistas de alguém pertencente à nobreza.

 

Gaspar Melchor de Jovellanos, o homem retratado, cujo braço apoiado à cintura enlaça invisivelmente o braço da jovem escondida atrás dele, foi um personagem eminente de sua época, acadêmico, jurista, filósofo, ávido leitor dos clássicos latinos, ele mesmo autor de vários poemas, peças teatrais e romances.

 

 

Impossível resumir a atuação de Jovellanos nos assuntos políticos, econômicos e sociais que rodearam sua intensa jornada de vida pública. Membro da Academia da História, da Sociedade Econômica de Madri e da Academia de Cânones, Liturgia, História e Disciplina Eclesiástica, além de ministro da Graça e da Justiça, foi um homem coerente com sua ideia de que só falta tempo a quem não sabe aproveitá-lo. Seu espírito audacioso e de embaraçosas virtudes para a época lhe rendeu, além de amigos ilustres, como Goya, inimigos digníssimos, como a rainha María Luisa.

 

¡Oh vilipendio! ¡Oh siglo!/

Faltó el apoyo de las leyes.

Todo/ se precipita: el más humilde cieno/

fermenta y brota espíritus altivos,/

que hasta los tronos del Olimpo se alzan.

 

Versos como estes ilustram bem não só a postura de Jovellanos contra uma aristocracia degenerada como fazem presumir os motivos que o levaram para a prisão em Palma de Mallorca em 1801.

 

Jovellanos era também colecionador de livros e quadros. Corre que suas ideias exerceram grande influência sobre Goya, que chegou a usar o verso de uma de suas sátiras no segundo Capricho.

 

Quinze anos depois de El Retrato de Jovellanos en el arenal de San Lorenzo, Goya retratou mais uma vez o amigo, agora em uma obra com atmosfera algo melancólica, Jovellanos sentado, rosto apoiado na mão esquerda, o olhar pensativo de quem vê e não vê. Um retrato muito diferente daquele primeiro, em que se esconde sob as tintas de um homem altivo e confiante o corpo de uma mulher, que, embora não se saiba ao certo quem é, poderia ser a Enarda de um poema do próprio Jovellanos, um amor de juventude que ele fez questão de preservar na sombra:

 

Quiero que mi pasión ¡oh Enarda! sea,/

menos de tí, de todo ignorada;/

que ande en silencio y sombra sepultada,/

y ningún necio mofador la vea/ (…)/

Amor es un afecto misterioso/

que nace entre secretas confianzas/

y muere al filo de mordaz censura.

 

Curiosamente, Jovellanos era também amigo de Antonio de Porcel e sua esposa, ambos retratados por Goya. O quadro de Don Antonio de Porcel, de 1806, teve o destino trágico de cento e cinquenta anos depois ter sido destruído em um incêndio no Jockey Club de Buenos Aires. Já o faustoso retrato em negro de Doña Isabel de Porcel guarda uma misteriosa cumplicidade com El Retrato de Jovellanos en el arenal de San Lorenzo. Também sob esse quadro existe uma outra pintura oculta: a figura de um homem.

 

Palimpsestos em pintura não são raros, como tem revelado a tecnologia avançada no trabalho de pesquisa de restauradores, que já desvendaram pela técnica de raios-X obras inteiras debaixo de quadros Edvard Munch, Jean-Baptiste Camille Corot, Hieronymus Bosch. Casos assim podem dizer muito sobre uma composição desde o seu primeiro esboço, sobre os caminhos incertos e mutáveis de um processo de criação. Dizem também mais do que isso, mais do que propõem as especulações no campo da ciência e da teoria da arte.

 

Palimpsestos falam de histórias recônditas, de um rosto debaixo de outro rosto, de uma página sobreposta a outra, tudo aquilo que existe subterraneamente e sobrevive, como a própria essência do pensamento, mantido em zona de penumbra, gravado porém com letras de fogo, guardando-se para o momento certo de ser revelado. Segredos da vida por trás da arte.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 10:38 | Comentar | Adicionar