Primeiro fez-se um desenho em tinta china e aguadas a pincel japonês de ideogramas sobre papel de gravura. Posteriormente utilizou-se a pena caligráfica e, em determinados instantes, os dedos para estruturar a mancha nervosa e arriscada do desenho. A figura, realizada em rápidos gestos transversais, de poucos segundos de duração, estava finalmente pronta, num desenho de fatura veloz.
Este desenho serviu de base a uma pintura que, por sua arquitetura particular, será diferente e estrutrurada cumulativamente em tempo muito mais extenso que o exigido pelo desenho. Linguagens, técnicas, materiais e tempo são específicos à pintura e ao desenho. A tinta a óleo exige um período mais longo de tempo físico para sua secagem e assim vários dias serão necessários para o desenvolvimento pleno da pintura, como foi originalmente pensada. A pintura é sempre fruto de uma reflexão, apurada pelas condições do material.
Melhor que seja assim, o óleo que se faz perene e estável, propõe esse tempo de observação e de reflexão. Será importante, no entanto, conservar o frescor do gesto ágil e espontâneo presentes naquela primeira obra do esboço. Entrava agora em cena uma nova protagonista, a cor da pintura - valor artístico fundamental para a linguagem pictórica, especialmente as cores que, ocultas, estruturarão o fundo da tela e que estão ali presentes, mesmo que aparentemente não sejam percebidas imediatamente.
Num primeiro momento ao olhar o resultado da tela pronta, não se vêem as cores da base, mas são essas as camadas que compõem a cor final - a cor que não quase podemos definir com tanta precisão qual seja na realidade, em razão de seus muitos matizes.
Constróem o fundo e fazem a alma invisível da tela. Serão seis, sete ou mais camadas totais, de tintas e pigmentos superpostos na tela, mesmo que a aparência final denote apenas uma tela em negro. Mas não é apenas isso, será uma cor bastante trabalhada. Ali estão vários tons de azuis de intensidades diferentes, brancos, violetas e grises, antes das diferentes colorações em texturas finais de negro. Este passo a passo revela essas camadas escondidas e recobertas por outras camadas, que se fazem mais aparentes pela superposição do acabamento. Todos os matizes estão lá e podem ser redescobertos por observação mais detida.
Como se pode ver uma tela assim? O que isso significa de fato, a mesmo tempo e valor que seu andaime e esqueleto de cores? A pintura, na verdade é essa arte em progresso, é essemomento em que se realiza, em mutação dinâmica durante algum tempo e que ali está carregada de significados, de segredos, de alternativas, de alterações de percurso, de acidentes e correções. A pintura é um pequeno simulacro da vida, com um objetivo definido a ser alcançado. E intensa no provisório de sua realização, como a riqueza da vida constitui-se desse mesmo modo, na verdade. O resultado é apenas o final, pintura pronta e acabada. É o tempo crucial da realização da cirurgia e quando vemos o resultado algum tempo depois, constatamos que o paciente foi salvo.
Nessa pintura utilizou-se uma tela de 100 cm x 130 cm, em lona de algodão estendida e fixada em bastidor de madeira retangular com cravelhas em cunha, mais uma estrutura simples de apoio horizontal sobre uma parede, como poderia ter sido um cavalete tradicional, uma mesa ampla ou a própria superfície do chão. Isso não é nada importante, apenas apontam ser o suporte e sua base de apoio para pintar. Foram utilizados para pintar pincéis, papéis, tecidos, as mãos e os dedos para a aplicação da tinta a óleo.
Apenas uma pintura.