Vislumbre do infinito
Ciclópico, desmesurado, fenomenal
Mariana Ianelli
Folhear um dicionário analógico é, de partida, entrar na palavra cosmurgia. Usando uma expressão de Gonçalo Tavares, é algo assim como ingressar num “armazém metafísico” e perder-se numa baralhada de reflexões com energia para gerar muitas vidas.
Uma única palavra tem o efeito do grão que faltava para precipitar o sal dos mares, centenas, milhares de possibilidades e aproximações que estavam ali, no fundo do silêncio, só esperando o mote para ser glosado, o primeiro sopro que desperta e põe a máquina do mundo em movimento. Um luxo no passeio dos contemplativos, um dicionário como esse pode levar a um estado de excitação mental a ponto de ocupar o lugar da maior e melhor oficina de poesia.
Um bom medidor da intensidade dessa experiência poética é quanta tentação o livro nos inspira a elaborarmos nós mesmos a nossa galáxia pessoal de analogias, em dimensões proporcionais ao universo da nossa linguagem, uma espécie de cubo mágico de palavras que se ligassem umas às outras de acordo com a nossa própria astronomia. Pinçar, por exemplo, a palavra esquecimento e indagar o que ela nos atiça. Esquecer, redimir, desatentar, perder para o escuro, deitar uma pedra em cima – e assim é dada a largada para uma série potencialmente interminável de associações e diferentes matizes que uma palavra suscita dentro da nossa vida. Amar, abraçar sem a restrição da despedida, celebrar que o outro exista, alegrar-se com o pão, o quarto escuro, a fome e tudo o mais que seja repartido.
Pensando, então, em uma oficina poética, vale imaginar o dicionário analógico de Borges, algo possivelmente muito próximo do seu Livro de Areia. E que maravilhoso verbete dedicado a Deus no dicionário de Hilda Hilst – Sem Nome, sutilíssimo amado, relinho do Infinito, Cara Escura, Pássaro-Poesia, brusco Inamovível, cavalo de ferro colado à futilidade das alturas, Aquele Outro decantado surdo, O Grande Rosto Vivo, Grande Obscuro, Máscara do Nojo, Cão de Pedra, Grande Incorruptível, Cara Cavada, Sorvete Almiscarado, Tríplice Acrobata, Lúteo-Rajado, Querubim Gozoso, O Mudo-Sempre, Porco-Poeta, Grande Corpo Rajado, O Sumidouro, superfície de gelo ancorada no riso, Coisa incomensurável, Grande Perseguidor e Grande Perseguido, Caracol de Fogo, Grande-Olho, Obscura Cara, O Inteiro Desejado – e outros nomes mais, que, honrando o nome primeiro, inspiram uma lista sem fim.
No texto introdutório do dicionário analógico da língua portuguesa de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, Chico Buarque diz que recebeu esse livro de seu pai como um bastão, e com essa herança escreveu muitas canções e decifrou enigmas. Obcecado pelo dicionário, chegou a correr os sebos para tentar deter o monopólio dos raros exemplares que na época existiam. Com a nova edição, publicada no ano passado, Chico sentiu-se espoliado do seu tesouro particular. É compreensível. Um livro assim guarda um vislumbre do infinito.
Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve