Fissura

Por onde a luz penetra
 
Mariana Ianelli 
 
 
Já faz quase seis anos, milhares de peregrinos atravessavam uma ponte sobre o rio Tigre a caminho da mesquita de Kadhimiya, em Bagdá, quando o boato de um homem-bomba entre os fiéis, com equivalente efeito explosivo, provocou a morte de quase mil pessoas, a maioria mulheres e crianças.
 
Foi também como um boato que a transmissão radiofônica da Guerra dos Mundos, de H.G.Wells, detonou uma histeria coletiva nos EUA em 1938. Os marcianos acabavam de aportar no Estado de Nova Jersey a bordo de um meteoro. A guerra começava. Orson Welles, autor da ideia da leitura do livro na rádio, simplesmente enriqueceu o urânio da ficção transformando-a numa verdadeira bomba jornalística. É uma radiância que escapa por esse intervalo de sombra entre o fantástico da literatura e a suposta objetividade da notícia. 
 
Nesse lugar de sombra também Edgar Allan Poe se colocou para escrever e publicar em uma revista, em 1842, O Mistério de Maria Roget, uma investigação do assassinato fictício de uma moça parisiense, cujas misteriosas circunstâncias remontavam às de um crime real, de uma garota chamada Maria Cecília Rogers, assassinada em Nova York. A solução do caso, só encontrada na época da publicação do artigo, confirmava o desfecho da investigação de Poe. Para Dostoievski, bastou a notícia de uma costureirinha ter se atirado do sexto andar de um prédio, agarrada a um ícone da Virgem, para que surgisse dois meses depois a novela A Dócil. Fazendo o caminho inverso, o escritor e jornalista argentino Rodolfo Walsh se serviu dos reposteiros da ficção para narrar no conto Essa Mulher a cena tenebrosa da sua entrevista, em 1961, com Carlos Eugenio de Moori Koening, responsável pela operação de sequestro do corpo embalsamado de Eva Perón. Dezesseis anos depois, salta da ficção a realidade: um comando militar persegue e mata o escritor em plena rua, em Buenos Aires, e seu corpo entra para o rol dos desaparecidos.
 
Como dizia o poeta, há uma fissura, um rasgo, um vão em cada coisa, e é por aí que a luz penetra, nesse lago de enguias onde os fatos, por si só, pouco explicam, nesse lugar da intuição sem propósito definido, na fábula de um homem que, fugindo da morte, vai ao seu encontro, no abraço à imagem da Virgem em queda livre.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve
publicado por ardotempo às 08:59 | Comentar | Adicionar