Estranheza

Um vaso de nardos e trinta moedas de prata

Mariana Ianelli

 

Ofereça um pouco mais do que o suficiente, escreva uma carta longa, de próprio punho, quando bastaria um bilhete, faça transbordar a taça no lugar da dose mínima, e uma sensação de desconforto irá pesar no ambiente. Não convém ser assim tão generoso. Via de regra, as pessoas desconfiam.

 

Como quando se pergunta pelo preço de uma joia linda e essa joia, sendo de graça, perversamente passa do conceito do que vale muito ao conceito do que não vale nada. Se é de graça, alguma coisa tem. Alguma coisa suspeita, sub-reptícia. Jesus não custou trinta moedas de prata? Pois então, é a célebre alma do negócio. Antes pecar por excesso de cautela do que se arriscar ao engano por ingenuidade. Como disse uma vez Martin Amis, “nós já surgimos não-inocentes”. Da falta de inocência à estranheza frente a um gesto magnânimo são poucos passos. Pois não foi justamente aquele que recebeu as trinta moedas de prata que se escandalizou com Maria Madalena ungindo os pés de Jesus com uma libra de nardo puro, quando podia ter vendido o perfume por trezentos denários? A casa recendendo a bálsamo um dia antes da Ceia e Judas indignado com tamanho desperdício.

 

Diga que sua mão esquerda não sabe o que faz a direita e para um desconfiado o provérbio comprova o delito. Para que seja uma dádiva mas pareça um acidente, como se o vaso, por azar, tivesse escorregado das mãos e só por isso os pés ungidos e a casa inteira perfumada, como se a taça transbordasse por simples distração, como se, afinal, não fosse tudo o que por isso mesmo não tem preço, capriche no delito: não diga nada.

 


 

P.S.: Para lembrar Vanessa de Vasconcelos Duarte, assassinada na manhã de 12 de fevereiro de 2011, último sábado:

A eternidade em uma hora não é mais um verso de William Blake, é este agora que desborda na imobilidade do pânico. Muitos nomes há para esta noite sem escolha: cólera, estupor, acrimônia, nenhum porém tão infinito quanto sorvedouro. Te arrastam para um sorvedouro e ali desgarram a alma do teu corpo. Mais do que a lei dos homens, mais do que uma sombra de culpa, fica a pena perpétua do teu grito se multiplicando até o céu da loucura. Ficam os teus olhos borrados, os teus punhos fechados, a tua forma congelada em posição de denúncia. Porque existem almas que Deus não captura, mas que lhe são enfiadas garganta abaixo, sob o castigo de um perdão a quem jamais, em eternidade nenhuma, a si mesmo se perdoa.

 

Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

publicado por ardotempo às 02:40 | Comentar | Adicionar