Moedas no semáforo

Não é meia-noite quem quer


António Lobo Antunes


Há anos que este verso de René Char me persegue.

 

Pensei usá-lo como título para um livro, como coda para um capítulo, fazer variações em torno dele num texto qualquer. Não fiz nada, até agora, porque me anda na cabeça mas não me aparece na mão, e só consigo escrever com os dedos, os miolos não pegam na esferográfica. Por qualquer motivo obscuro o bico da caneta não o aprova. E, no entanto, volta não volta lembro-me dele. Por exemplo quando me cruzo com a mendiga estrangeira, alemã ou holandesa, não sei, a pedir esmola no semáforo aqui perto. Dorme, com os seus sacos de plástico, na paragem do autocarro quase por baixo da minha janela, puxando trapos para si. Nunca lhe entendi a língua, mais sopros que palavras.

 

 

Espera que o sinal fique vermelho e percorre os automóveis, de mão estendida, a murmurar. As pessoas dos carros fingem que não vêem, olhando, fixas, para diante: uma desgraçada, mais uma, o que não falta por aí é gente assim. O sinal torna-se verde e ela corre para o passeio, com os sacos. Um grande amigo meu, José Cardoso Pires, que não tinha muito dinheiro, que tinha muito pouco dinheiro, dava-o a todos aos infelizes que encontrava na rua. Isto era uma das coisas que eu mais admirava nele. E sentia-o, por dentro, comovido, o Zé que tentava sempre esconder as emoções. Fazia livros, como eu. Era irascível, temperamental, muitíssimo corajoso. Infelizmente a estrangeira nunca o encontrou. É em seu nome que entrego moedas à mulher


- Da parte do Zé


embora duvide que ela me entenda, ou oiça sequer. Não faz mal: oiço e entendo eu.


Não é meia-noite quem quer, que deslumbramento para mim: olha o meu pai no hospital, de bata, olha eu no hospital, a sofrer. Já não sofro: cansei-me de dar prazer à desgraça. Se acontecer alguma chatice leva-me mas não me aborreças. Na recruta, a certa altura, tinha um pé inchadíssimo, de uma queda naqueles exercícios que por lá se faziam, custava-me a andar como o caneco, mas continuava, a repetir para mim mesmo


- É só dor, é só dor


e foi aí que comecei a não ter vergonha de mim. Ainda hoje


- É só dor


e a gente aguenta. Apesar de tudo não é meia-noite quem quer, não é verdade?

 

Há uns tempos que não encontro a estrangeira: terá mudado de poiso, terá morrido? Ninguém morre, que ideia mais idiota, morrer. A prova é que o meu pai, por exemplo, continua a andar, de bata e cachimbo, no hospital, não me tiram isto da ideia:


- Os meus rapazes


dizia ele dos filhos


- Os meus rapazes


e os seus rapazes cá estão, mais ou menos mas cá estão, olha este sol agora, a entrar casa dentro, o chão iluminado, os móveis, as paredes, as folhas das árvores com tantas cores diferentes, porque não convidá-las


- Não lhes apetece entrar?


começo a fazer esta crónica com pausas dado que a mão vazia, parece que tropeça na página, lá se recompõe, a pobre, ameaça desmaiar de novo, um livro na estante, não sei ao certo onde, à minha esquerda, acho eu, principia a conversar comigo, pergunta uma coisa que não entendo bem, não lhe respondo, faço um gesto sem destino na esperança de contentá-lo, o livro cala-se, que esquisitos os livros, tanta barulheira às vezes. Acabei o meu trabalho ontem, seguem-se os habituais meses de pousio, quando não ando às voltas com um romance o mundo torna-se estranho, devia ir para os semáforos com sacos de plástico


- Uma ajudinha, amigo


e fico aqui a ler, na mesma mesa em que rabisco as páginas, que silêncio nas coisas, que vazio, não é meia-noite quem quer, rodeio-me de pessoas que não existem, rodeio-me de vozes, sinto-me cheio de palavras que não amadureceram ainda, não palavras, larvas de palavras, imagens que surgem e se desvanecem, desfocadas, fugidias, peço a mim mesmo


- Uma ajudinha, amigo


vejo o Zé à cata de dinheiro nos bolsos, ainda me toca passar na rua dele, há-de tocar-me sempre


- Uma ajudinha, amigo


a eterna queixa do Zé


- Como é que eu consigo gramar um gajo que gosta de comida de avião?


e é verdade, gosto de comida de avião, voltar a brincar aos jantarinhos com todos aqueles plásticos com coisas dentro, folhinhas, raminhos, pedrinhas, porcarias e eu com ar solene de quem almoça a sério, gosto de pedir vinho branco e ter medo que se espantem


- Vinho branco na sua idade?


e se queixem à minha mãe


- O miúdo bebe às escondidas


a minha mãe, severa


- Que história é essa do vinho?


mesmo que experimente amaciá-la com uma lista de bêbados ilustres


- Quero lá saber do Hemingway


confesso que realmente, eu que não tomo álcool, me bato com uma garrafa de vinho branco nos aviões, a indignação dela a aumentar


- E que fazes tu nos aviões, já agora?


quando devia estar no quarto às voltas com raízes quadradas e, aqui para nós, realmente devia, demorei que tempos a perceber porque chamavam quadradas às raízes, quer dizer, percebo vagamente, o professor acha que percebo e deixa-me em paz, no fundo não percebo


- Não sei nada da vida, senhor, desculpe


e não sei nada porque não é meia-noite quem quer, raio de verso, que mal fiz eu a Deus para me perseguires, a minha mãe não desiste


- Como estamos com a mão na massa a léria de ir para os semáforos é verdade?


eu com a estrangeira, alemã ou holandesa, nos sinais vermelhos, murmurando para os carros parados, com as pessoas, surdas, a olharem em frente, agarrando o volante com mais força, lá recolhemos ao passeio quando o verde chega, os dedos dela, com um resto de luva, pesam-me no ombro, hoje não durmo em casa, durmo na paragem do autocarro, e talvez não seja má ideia de todo porque, em frente, num out-door, há uma rapariga em lingerie, lindíssima, que de vez em quando me pisca o olho.


António Lobo Antunes

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publicado por ardotempo às 00:22 | Comentar | Adicionar