A Natureza dá sua notícia
Empédocles manda lembranças
Mariana Ianelli
A fotografia é da ordem do extraordinário: a visão noturna de uma cidade timidamente iluminada, com suas construções baixas em tom de ouro velho na penumbra e, ao fundo, contornando a silhueta da montanha ao pé da qual a cidade se espalha, uma cascata vermelho-viva rompendo encosta abaixo. Invisível na foto, o cimo da montanha é a razão do espetáculo.
Há anos que o vulcão Etna não se exibia assim com tanto luxo. De tempos em tempos, a força de suas profundezas parece querer dar notícias da sua exorbitância. Nem por isso povoados milenares deixaram de viver à sua sombra. A cidade de Catania já uma vez precisou ser refeita das cinzas pela audácia de haver se estabelecido a apenas 18 quilômetros do vulcão. Mas essa audácia, longe de ser uma insolência, é mais uma tenacidade de amante, uma cumplicidade que atrela o poder da natureza à história de uma ilha que abrigou nas suas grutas os ciclopes de Homero, que recebeu a visita de Platão e inspirou cantos épicos de Virgílio.
Aos templos da Antiguidade, aos teatros grego e romano, às dezenas de piazzas, fontanas, duomos e palazzos, junta-se o Etna como mais um monumento, tão ancestralmente vivo quanto a herança histórica e cultural das cidades sicilianas. Na verdade, não é menor a intrepidez de viver onde se ergueu o portento de tantos poemas, episódios e mitos da história ocidental do que a ousadia de dormir e acordar aos pés de um dos maiores vulcões ativos do mundo. É essa intimidade sobre-humana com a potência da terra que nutre a lenda de que Empédocles teria se jogado em uma das crateras do Etna, oferecendo-se em sacrifício de amor aos deuses, como antes oferecera à Natureza seu pensamento. Que teria se purificado no regresso aos quatro elementos, de sua união fazendo elevar-se o Éter. Que teria encontrado no magma o seu banho lustral.
A imagem daquele rio chamejante descendo a montanha no meio da noite, que registrou mais uma erupção do Etna na semana passada, se amedronta pela ameaça de uma catástrofe, também fascina pelo seu aspecto fantástico, que lembra Empédocles na versão romântica de Hölderlin: um taumaturgo no topo do vulcão, como um cristo dos poetas, que se despede dos homens conclamando-os a serem livres, iguais e irmãos. Para que se entreguem à Natureza. Que voltem, afinados com os deuses, os cânticos. Para que todos se lembrem do que mataram por descuido. Para que amem.
Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve