Conto de futebol de PAULO BENTANCUR
Paulo Bentancur
Tem homem aí por perto?
Homem mesmo, isto é, macho, não homem no sentido de ser humano – se bem que atualmente até mulher está encarando a atividade...
Tem homem?
Tem?
Quantos?
Menos de onze? Claro, não são necessários onze. Nem seria possível. O ginásio tem uma quadra de parquê onde podem, com algum conforto, correr dez atletas no total, cinco de cada lado da quadra, postados com uma tensa atenção, fixa à frente, antes do começo.
Então é só observar o movimento, nem precisa vasculhar, recolher quase ao acaso os cinco de olho mais vidrado e convidá-los a irem para a quadra. Vai ter futsal daqui a alguns minutos.
Rápido, rápido aparecem cinco fominhas, com a cara mais circunstancial do mundo. É a chance da redenção, claro, mas agem como se nada de importante estivesse acontecendo.
Um deles, Ioiô, é um guri espinhento, aloprado, duns dezessete, dezoito anos. Compensa a demasiada ânsia com o grande fôlego. Supera a afoiteza com a persistência, a teimosa perseguição a um futebol talvez inalcançável. De algum modo será útil.
Outro, Vinícius, que sabe bem ter existido um poeta chamado Vinícius (parceiro do Toquinho, violonista e compositor, em muito sucesso do samba-canção). Não joga porra nenhuma mas é viril como o saudoso Ortunho, do Grêmio de Porto Alegre, obsessivo como o Caçapava, do grande time que o Internacional, também de Porto Alegre, montou em 1975, e já não agüenta a mulher, com quem está casado há mais de quinze anos e um joguinho no domingo é uma boa desculpa para se conseguir a paz, a suprema paz. Vinícius será o goleiro.
Há um que impõe respeito. Não se sabe ao certo se é craque ou a determinação e a gravidade com que fita a bola e, sobretudo, o adversário, o fazem um atleta decisivo.
Alex Sander – assim mesmo, que a mãe não passou das primeiras letras e reproduziu o nome de um galã mencionado nas radionovelas que a Itaí, popular emissora AM já extinta, punha no ar em 1969.
Dar nome a um filho não é tarefa tão fácil assim. Aléquis. Alecs. Alequisander. Uma prima deu um palpite. Um vizinho também. Venceu o vizinho, que menos letras possuía. A mãe achou que o vizinho tinha razão e Alex, como herança, recebeu o nome dividido em dois.
E um outro se apresenta, Alaor, pinta de veterano, serenidade estampada na cara bovina. Ou é estupefaciente estado pós-alcoólico?
Alaor deve ter uns 45. É negro, com a carapinha prematuramente branca, o que é raro em sujeitos de sua raça. Ou ele passou água oxigenada e o amarelo, com o tempo, virou talco? Alaor boceja. Superioridade? Tédio? Ou imperdoável distração?
E surge ainda um quinto e complementar jogador. Sérgio.
Sérgio foi bancário. Saiu do banco. Foi professor. Fugiu dos adolescentes desinteressados em suas aulas. Sérgio foi livreiro. Cansou dos baixos índices nas vendas de livros num país que não lê e quando compra o livro da moda finge que lê. Fechou a livraria. Hoje ninguém sabe o que ele faz. Foi casado. Separou-se, a esposa com o tempo convertida numa amiguinha que apenas fazia a contabilidade do casal e à noite dormia cedo e acordava tarde, quando ele já enfrentava filas de bancos em busca de empréstimos.
Sérgio vai jogar no meio, fazendo a ligação entre defesa e ataque. Vai municiar Ioiô, encarregado de bombardear o inimigo.
Alaor e Alex Sander seguram lá atrás. Vinícius, mais atrás ainda, a derradeira barreira, tentará segurar algum chute menos ambicioso do oponente.
O oponente.
É um time experimentado. Não exatamente excepcional. Joga há dois anos e meio na mesma quadra, no mesmo dia – sempre aos domingos –, entregue a um ritual indissociável de suas cinco vidas (os titulares). Oito atletas o compõem: os de escalação garantida, Badico, Hélio, Walter (que adora que o chamem de Uálter e não de Valter), Bolita e Odd; e os reservas André, Niltinho e Marcelo.
Badico é goleiro e técnico do Mandinga, e faz a preleção. Há dois anos e meio essa preleção era um desafio frente à incontornável arte da retórica. Tanto tempo depois e muitos adversários precários encarados e superados, a preleção virou uma quase enfadonha repetição de seis frases básicas.
Começamos tocando a bola para ver quem eles são.
Não vamos acreditar que são ruins só porque aparentam isso. (A outra opção é: não vamos acreditar que são uns craques só porque aparentam isso, embora seja bom não facilitar.)
Se levarmos um gol logo de saída mais ainda temos que tocar a bola para esfriá-los. Um gol a gente busca; dois ou mais fica difícil.
Se estiver fácil, não convém humilhá-los. Ninguém gosta e eles podem querer briga.
Tentem esquecer a torcida, seja a favor ou contra. A favor é pressão na certa, a gente se sente obrigado a ganhar, e se precipita e faz cagada. Contra, a gente se encolhe, e acaba aceitando firula de qualquer merdinha.
Sem discussões com o juiz. Juiz é pior que o adversário. Contra o adversário a gente pode jogar; contra o juiz não tem jogo.
Alex Sander e Sérgio puxam a palavra que pretende uni-los – melhor seria dizer “batizar” – a Ioiô, Vinícius e Alaor. Anônimos, encararão o Mandinga.
A tradição do time da vila se sente um tanto desrespeitada pela total ausência de berço dessa equipe montada às pressas, adotada pela necessidade, sem registro entre si; que dirá na memória dos papos recheados de lendas, exageros, legitimados pela risada ou o severo olhar ao longe de freqüentadores de mesas de sinuca, em volta das quais também se comenta outros esportes, incluindo-se, sim, o futsal, tão freqüente, e eventos ainda frescos, alguns da semana passada.
Pois nada consta sobre esses cinco personagens que agora se examinam mais que ao adversário, talvez porque em primeiro lugar sejam eles mesmos seus próprios adversários, e só depois então possam tentar fazer alguma frente a quem rigorosamente pertence a um espaço que hoje eles infestam como moscas indesejáveis.
Vinícius, resignado.
Alaor, bonachão.
Ioiô, com a previsível e juvenil displicência.
Sérgio, diligente.
Alex Sander, concentrado.
Não há torcedores nas carcomidas seis arquibancadas da quadra que serve para vôlei, basquete e futsal do Ginásio Dr. Anthero Luz do município de Alvorada, 105.784 habitantes pelo último censo. Se estivessem lá, entretanto, os torcedores seriam ignorados. Ao menos pelo time que estréia nesse momento e cujos integrantes mal sabem nome e apelido um do outro.
Alguém bate na bola. Alguém recebe. É o jogo, tensão e prazer.
O rapaz que cuida do bar ao fundo, um ruivo magrinho, à falta de um mísero freguês, contorna o balcão e vai encostar-se à rede de proteção que fica atrás da goleira. Uma espécie de tontura se instala nos presentes. É preciso, aos poucos, forçar uma gradativa fixação das imagens, da compreensão sem armadilhas do que acontece de real. Como quando entramos num estádio de futebol e a multidão, a gigantesca onda sonora vindo de todas as direções da arena ovalada, somada ao espaço enorme e à distância entre cimento e campo, mais a profundidade deste na relação com o nível em que o torcedor costuma sentar-se, tudo isso a nos roubar as referências, e vagamos num agitado mar onde só na metade do primeiro tempo conseguimos enfim enfrentar a corrente de emoções e já nos sentimos em casa, e pulamos.
Então acontece fenômeno semelhante. O rapaz do bar sente isso. E é tão insignificante o que está ocorrendo: um joguinho amistoso entre desconhecidos amadores; e alguns, nem isso. Mas o ar está pesado, um chumbo, e é difícil atravessá-lo. E futsal exige rapidez, quase o vôo das pernas seguindo o vôo da bola.
No primeiro lance (quem lembra de um “primeiro lance”? Os jogos em regra só se revelam a partir do décimo, vigésimo lance), no primeiro lance o Mandinga troca passes, cinco, seis, nove, doze, até atrasar ao goleiro. Imagina, com tal procedimento, esmagar o adversário ante o controle que o time da vila pressupõe ter sobre a partida.
Essa troca improdutiva de passes se repete no lance seguinte, assim que a bola é liberta das mãos de Badico.
No lance seguinte, uma disputa no ataque do Mandinga, afinal o primeiro lance do time improvisado, Ioiô, tentando ajudar na marcação, recuado, se machuca, afoito, imprevidente. Alex Sander irrita-se, mas não aceita a oferta do adversário: um reserva do Mandinga para completar a equipe desfalcada.
Jogarão com quatro.
Sérgio olha Alex de relance, atônito.
Quer bancar o herói?, se pergunta.
Claro que Alex quer.
Ioiô quis.
Vinícius, se derem chance...
Só Alaor parece que não, sorrindo às divididas propostas pelo time inimigo. Divididas, aliás, que sem esforço ele ganha.
Sérgio não acredita em vitória, muito menos em heroísmo. Não recusa, porém, um joguinho, mesmo improvisado, mesmo sem aviso, mesmo precário no plano e na execução.
A equipe cuja biografia possui apenas uns vinte minutos começa a escrever seu primeiro capítulo. Alex entra com a dureza que Alaor, por exemplo, dispensa, e consegue o mesmo resultado do negrão: derruba dois adversários sem falta e avança célere. Bola na rede. Começam os problemas para o Mandinga, acostumado a eles, se diria, mas quando se joga não há costume, não na hora do jogo.
Finda a disputa, uma hora depois (viram de lado em trinta minutos), conversando-se sobre o que houve, tudo será encarado como normal. No entanto, no calor da hora, na febre do quique da bola, os incidentes trazem a velocidade atordoadora da tragédia ou da glória.
E, mesmo, de nenhuma delas. Dói reduzir um domingo a um jogo empatado e morno.
Sérgio põe a casa em ordem, embora estejam ganhando. Grita com Alex. Este sabe o que faz, mas, às vezes, faz em demasia. É preciso calma.
Não necessariamente a de Alaor, perfeito na sua quase imersão budista de onde sai para resolver um lance mais espinhoso.
A ameaça é Vinícius, digladiando-se, mais com a lembrança da mulher que com o Mandinga.
A primeira bola mais forte que chega ao gol é gol.
A segunda bate na trave.
A terceira é salva na linha por Alaor.
Na quarta, enfim, Vinícius intervém.
Ainda bem que Alex já fez três. E Sérgio um. E Alaor mais um, do meio da quadra, surpreendendo o rotineiro Badico.
Bolita dispara dois petardos e Vinícius nem vê. E fica nisso, 5 x 3.
– Só falta um nome! – exulta Alex Sander, gozando o alívio de quem não perdeu.
O alívio de quem não perdeu. Sensação às vezes superior à da vitória. Quem ali compartilhará com ele tal sentimento? Ninguém. Cada um é um estranho ligado agora pelo episódio. A humilhação imposta ao Mandinga.
Que nome dar a esse episódio? Para Sérgio é apenas a primeira partida e ele não sabe se haverá uma segunda. E tenta adverti-los. Atenção, a segunda será pior, independente do adversário. Talvez tenhamos ganho porque, inocentes, não tivemos o terror do qual não se foge quando se vive uma pressão constante. Talvez tenhamos ganho também porque nos concentramos com a facilidade de um início, quando tudo é novidade e dúvidas graves e necessárias passam despercebidas, e então superamos o obstáculo que não reconhecemos. Não por vaidade ou autoconfiança, mas por leveza mesmo.
Para Vinícius, o pior vem agora: a volta para casa, a mulher.
Alaor considera que o Mandinga é um blefe. Ri deles fingindo sorrir para eles.
Ioiô, na margem da quadra, massageando o calcanhar, está inconsolável, certamente muito mais machucado pela ausência na vitória do que pela dor da lesão.
– Pô, cara, que sujeira entrar daquele jeito! – reclama para Odd, que vai saindo, indiferente aos apelos do outro.
O ruivinho volta os olhos esperançosos para o bar: já viu cem jogos assim, mas o principal vem agora: consumidores de coca-cola e cerveja. Alex e Ioiô, os que têm mais sede, lhe garantem a féria do fim de semana.
Alaor observa o engradado de cerveja. Mais tarde, em casa, agarrado ao espeto de salsichões, esvaziará três ou quadro geladinhas.
Vinícius encara uma água mineral.
Sérgio vela a sede de todos e pergunta, como se ignorasse a resposta:
– Semana que vem vamos repetir a dose?
Os integrantes do Mandinga encaram:
– O raio não cai duas vezes no mesmo lugar...
Ioiô avisa:
– E não vai ser com quatro, vai ser com cinco.
Alex pensa: vamos piorar.
Faltam sete dias para o próximo domingo.
É muito tempo.
© Paulo Bentancur - Escritor