O exíguo livro de versos

Formigas do Colorado


Pedro Gonzaga

 

 

 


À luz de um sol branco

- dezembro arde em Porto Alegre -

busco abrigo às cegas

na fachada do antigo sebo

tantas vezes percorrida

em horas mais cálidas.

 

Mergulho na penumbra,

e um cheiro doce

que sabe a mofo

brota dos cadáveres,

silenciosos e encadernados faraós

desprovidos de pirâmides.


Enquanto meus olhos

se acostumam à noite ali dentro

meus dedos percorremcom vaga cautela

as estantes empenadas em que

livros de fantasiosas ciências,

roucos,

apelam da escuridão:

um compêndio de biologia,

um tratado de química orgânica em espanhol

que cansou de dizer a realidade em 1940,

tantos carbonos e hidrogênios

inutilmente

desperdiçados.


Pouco depois,

uma grossa lombada diz

em inglês

Fomigas do Colorado.


Assusta-me o fato de que um homem

perdido entre longínquas montanhas

tenha dedicado sua vida às

formigas do Colorado.


Que promessa de felicidade terrena

ou eterna

pode levar alguém

a dedicar a força de seus membros

a usina de seu cérebro

o combustível limitado das gônadas

às formigas do Colorado?


Quase posso vê-lo,

senhor das formigas,

circunspecto

lustroso de autoridade,

garboso na sala decorada com esmero

madeiras escuras

e envernizadas

o feltro verde sob o tampo

o digno gabinete

do digno autor de

Formigas do Colorado.


Você não tem seriedade,

mr. Gonzaga,

você se farta na galhofa.

Onde está sua obra,

mr. Gonzaga,

onde está o seu legado?


A custo

penso nos dois volumes de contos

e no exíguo livro de versos

à espera de publicação.


Uma coisa, no entanto, me consola,

senhor Formigas do Colorado,

e a você dedico este semi-sorriso frouxo

que meus lábios não labutam para manter:

eu estou aqui,

vivo,

meu sangue ferve,

posso ser fera esta noite,

meus músculos vibram

e tenho uma mulher

que me espera.


Tudo isso passa, eu sei,

mas, ah,

que se fodam

as formigas do Colorado.

 

 

 


Pedro Gonzaga

publicado por ardotempo às 17:44 | Comentar | Adicionar