Georges Bernanos

Uma literatura do desespero


Mariana Ianelli


No ano em que Paul Éluard publicava Capital da Dor e André Gide Os Moedeiros Falsos, um romance de estreia iria alvoroçar o meio literário francês vendendo 6 mil exemplares da primeira edição em apenas um dia. O estrondoso sucesso de público e a atenção da crítica que despertou Sob o Sol de Satã, do então desconhecido Georges Bernanos, em 1926, vieram prenunciar a consagração de um autor marcado pelas angústias de um espírito cristão no seio da modernidade. Sete títulos representativos da trajetória de Bernanos, que foi também jornalista, começam agora a ganhar as livrarias brasileiras, por iniciativa da Editora É, que inaugura a Coleção Georges Bernanos com o relançamento de Sob o Sol de Satã, há pelo menos uma década fora de catálogo, na tradução do poeta Jorge de Lima.


O itinerário sobrenatural que se configura nesse romance, protagonizado pelo padre Donissan, futuro santo de Lumbres, apresenta de maneira exemplar os embates de alma e corpo contra o mal a que todos os personagens de Bernanos de algum modo estão submetidos. Ambientado nos campos do norte da França, paisagem da infância do escritor, Sob o Sol de Satã traz em seu prólogo a história de Mouchette, uma adolescente atormentada, presa da luxúria e da destruição, que não consegue vencer a tentação do desespero, contra a qual luta o padre Donissan na primeira parte do livro. São duas potências contrárias, duas faces que se atraem e que se enfrentam dentro dos personagens e também entre eles: a necessidade da fé e o apelo do vazio, o poder da esperança e a contaminação do tédio, Deus e o Diabo em uma guerra encarniçada cujo desfecho, reconciliador dos opostos, na segunda parte do livro, só pode ser sinônimo da morte.


O próprio Bernanos, dois meses antes de sua estreia literária, em carta a Vallery-Radot, dizia estar “entre o Anjo luminoso e o Anjo obscuro”, observando a ambos “com a mesma fome raivosa de absoluto”. Pois é também assim que seus personagens se miram uns aos outros, uma face duplicando-se na outra, como Sob o Sol de Satã se duplica, após um período de dez anos, no Diário de um Pároco, romance que está na lista das próximas publicações. A imagem atlética do padre Donissan mostra o seu inverso na figura macilenta do pároco da aldeia, a perdição de Mouchette tem seu contraponto na salvação da senhora condessa, o encontro com o Diabo no ponto obscuro de uma estrada reflete-se agora na visão luminosa da Virgem e o beijo que o santo de Lumbres recebe do seu adversário transmuda-se no beijo amigo que o pároco de Ambricourt recebe de um soldado. O que envolve os personagens de Bernanos nesse jogo dialético é uma mesma noite satânica, uma potência de destruição que ensombrece a todos, induzindo-os à falta de amor e à perda da alma.


Existem conflitos e lugares carregados de simbolismo que são recorrentes na obra do escritor. Entre eles, a errância solitária dos padres por estradas enlameadas, o intervalo entre noite e manhã como um espaço de metamorfose existencial, e o lugar do confessionário, um dos mais emblemáticos, com seus tabiques de madeira “impregnados de vergonhas”, onde aquele que dá a paz não a encontra em si, tal como as páginas aflitas do diário de um pároco relatam seu testemunho de almas perturbadas em uma anunciação do Juízo Final. É importante dizer que também pertencem a um território de confissão os diversos olhares trocados entre os personagens de Bernanos, olhares que leem uns nos outros os pensamentos não verbalizados, a fixidez da luxúria, a mentira, a vontade de suicídio, aquela parte humana povoada de sombras cuja revelação involuntária põe a alma a nu diante do “olhar primeiro de Deus”.


A figura feminina tem igualmente papel relevante, pois além de encarnar a artimanha e a perversão, no caso da menina Mouchette, que se decompõe em Chantal e Seraphita no Diário de um Pároco, representa a inocência corrompida pelo mal. A figura do soldado, por sua vez, tão cara a Bernanos, tem na imagem de Joana d’Arc a representação máxima do heroísmo cristão. Tais personagens ressurgem na obra do escritor em A Nova História de Mouchette, romance escrito durante a Guerra Civil Espanhola, e Joana, relapsa e santa, ensaio biográfico sobre Joana d’Arc, dois outros títulos a serem lançados em breve.


Quanto aos temas sempre presentes para Bernanos, destacam-se a miséria enquanto fonte do desespero, alimentada por Satã, e a pobreza enquanto fonte da esperança, princípio de realeza de um povo errante, descendente de Cristo. O texto “Vida de Jesus”, que, tal como Um Sonho Ruim, permaneceu inédito até a morte do autor, fala da cristandade da pobreza. Para o escritor, a exploração do homem pelo homem perdura nos costumes, dentro de um “circuito infernal” que escamoteia a injustiça, que é parte da condição humana, ao tentar dispersar a força dos pobres e converter sua altivez em servilismo, se possível transformando-os em pequenos funcionários.


Referindo-se ao tipo grotesco com que Bernanos retrata Anatole France em Sob o Sol de Satã, no personagem do escritor Antoine Saint-Marin, André Malraux atribui a caricatura a uma herança das “gárgulas de Léon Bloy”. De fato, Bernanos compartilha com Bloy das opiniões mais enérgicas e controversas sobre a caducidade das academias literárias, sobre o sacerdócio da pobreza e um mundo de tal modo dominado pelo tédio e pelo niilismo que somente uma literatura do desespero seria capaz de responder à linguagem moderna, que “encontrou um meio de fazer da palavra misticismo uma injúria”.


Polêmico em sua militância nos anos de juventude, quando chegou a defender a causa monarquista, Bernanos lutou como soldado durante a 1ª Guerra Mundial, experiência que foi assimilada para sua literatura e que atesta uma preocupação intensa com a realidade histórica e espiritual da época, a ponto de o escritor, anos mais tarde, acompanhar de perto, em Palma de Mallorca, os expurgos de Franco e o envolvimento da Igreja na Guerra Civil Espanhola, denunciados em seu longo ensaio Os Grandes Cemitérios sob a lua.


O final do ano de 1938 marca o início do autoexílio de Bernanos no Brasil, país que ele chamava de “terra da esperança”, onde viveu por sete anos, entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, e onde compôs seu romance Senhor Ouine, originalmente intitulado A paróquia morta. Também nesse período o escritor colaborou para a imprensa com seus “artigos de guerra”, depois reunidos em Ensaios e escritos de combate, além de ter mantido estreito contato com escritores e intelectuais brasileiros, como Alceu Amoroso Lima e os poetas Murilo Mendes e Jorge de Lima. Na sua conferência “Adeus à juventude brasileira”, proferida em dezembro de 1944 na sede da União dos Estudantes, no Rio, o escritor conclama os jovens a retomar o espírito de liberdade semeado pela Revolução Francesa. Não por acaso, é também a Revolução Francesa o cenário no qual se passa Diálogos das Carmelitas, única peça de teatro e última obra de Bernanos, concluída na Tunísia, em 1948, poucos meses antes do seu falecimento.


Mariana Ianelli - Publicado em O GLOBO (Rio de Janeiro RJ Brasil)

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publicado por ardotempo às 23:05 | Comentar | Adicionar