A cerimônia do expurgo

 

O nosso lado escuro à solta


Mariana Ianelli


Sob o Sol de Satã está de volta às livrarias e não podia ter surgido em melhor época, depois de tantos anos fora de catálogo. Basta um laço de fita e deixá-lo debaixo do pinheirinho cheio de luzes no centro da sala. O lar familial, antes das festas, do vinho e da mesa farta, merece mesmo o beijo do diabo.


Como acontece todos os anos na Guatemala, na queima dos diablitos de papel, um evento que reúne centenas de pessoas para expurgar os males antes do ano novo, ou como fazem em vilarejos da Áustria, antes do Natal, homens fantasiados de demônios, que saem pelas ruas arrastando correntes e perseguindo as crianças mal-educadas, também nós podíamos começar por fazer uma limpeza dos nossos recintos particulares, aqueles que nós escamoteamos, atapetamos, como se a nossa casa fosse sempre muito hospitaleira, muito encerada e agradável, e não existissem todas aquelas sombras, aquelas carantonhas, o quarto das fúrias mantido atrás do armário. Pelo destempero em casa por culpa do trabalho, pelo ataque de nervos no trabalho por causa do cansaço, pelo cansaço e a sujeira sob o capacho, pelo nosso riso irônico e a nossa pose enfatuada, pelo gesto obsceno e as respostas arrevesadas, pelos excessos, as refregas, a palavra venenosa, pelo nosso dar de ombros e o mau humor dado de graça, podíamos promover esse desfile de demônios antes da reunião de irmãos, primos, tios e sobrinhos no Natal.


Seria um desfile entusiasmante, o nosso lado escuro à solta, tudo o que é inspiração das intenções mais rastejantes, a praga de suçuaranas, de espinhos, cobiça e azedume passando sem cerimônia num expurgo memorável. Depois ficaríamos horas e horas à mesa bebendo e conversando, com aquela pachorra das tensões aliviadas, alguém levantaria um brinde, como pede a data, e seria uma algazarra, uma surpresa boa, seria enfim alguma coisa completamente nova.


Mariana Ianelli - Publicado em Vida Breve

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publicado por ardotempo às 16:13 | Comentar | Adicionar