DON FRUTOS - Trecho inédito do romance

 

Trecho de Don Frutos, de Aldyr Garcia Schlee (O casamento de Anita)


 

QUE FAZER, diante de um pedaço de papel como este?


–  Comandante Rivera, responda por Don Juan Antonio Lavalleja, do qual tem plenos poderes: deseja casar com esta mulher?

 

–  Sim.

 

Doña Ana Monterroso: deseja casar com este homem?

 

Sim.

 

Sendo estas as expressões de suas vontades de se terem por esposos por mútuo consentimento, e não havendo algo que possa impedir este matrimônio, em nome de Deus e da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana, eu vos declaro marido e mulher.


Rasgar o papel? Olvidar? Recordar?


Pois o padre Oubiña ou era meio atolondrado ou estava confundido ou tinha bebido por demais... O cura, depois de ouvir o que lhe havia dito em nome de Lavalleja – que sim, que queria casar com Ana; depois, ainda perguntou a ela, simplesmente: deseja casar com este homem ? E ela: sim. E quem era este homem, o homem ali, ao lado dela? Era o homem com quem ela havia dito que desejava casar; era o homem que, afinal, pelo menos pela vontade manifesta dela mesma, o padre Oubiña declarava casado com Ana de Monterroso!


A gente toda está sempre tão habituada às arengas e prédicas, às palavras de sempre dos padres nas igrejas, que nem ouve nem se preocupa em saber o que  ficam dizendo e repetindo eles, seja num casamento, seja num batizado ou numa missa de defuntos...

 

De modo que ninguém se deu conta de com quem mesmo Ana de Monterroso disse que desejava casar...Bastou olhar para Felipe Duarte e Ramón Mansilla para entender que, como testigos, não haviam maliciado nada: estavam ausentes dali, apesar de por demais compenetrados e o mais ajaezados possível. Bastou ver uma luz meio que piscando, como que um lampejo de dúvida e de perplexidade, um brilho de nada nos olhos de Anita (quando ela disse sim), para notar como ela bem havia entendido tudo – mesmo que ninguém pudesse testificar aquilo; e como ela parecia bonita, que lindaça estava!...

 

Ana havia dito sim; e, no ato, havia entendido perfeitamente tudo. Se chegou a ter um instante de titubeio, foi, foi porque soube bem com quem, com que homem havia dito que desejava casar.


Numa solenidade de casamento há que agir com compostura e recato: as mãos cruzadas por diante, os olhos baixos, a cara séria e os pensamentos distantes. Mas ali, ali era demais: ia casando por outro, estava casando, e ao repente terminava como que casado com Ana; e ela se dava conta disso e era preciso fazer-lhe saber que, afinal, depois do sim, quedavam os dois mesmo que casados.

 

Tinha, afinal, cumprido com a representação delegada por Lavalleja. Permanecia ali, diante da noiva acompanhada apenas pela irmã – a mãe delas em total estado de demência, o pai já falecido; e sem a presença dos parentes do noivo, opostos ao enlace (na capela vazia, ninguém mais que o padre, o major, o capitão e dois negros saídos sabe lá de onde). O noivo Juan Antonio andaria pelas cercanias do arroio de la Calera, no cumprimento de ordens e de seus deveres de capitão de milícia, a reaproximar os artiguistas e a combater os portugueses.A noiva estava passada quase dez anos da idade de casar, bem como a irmã, Juana. Mas era uma mulher de presença forte, de porte altivo, a fisionomia aberta e a tez louçana. Ainda assim, quem a imaginaria, um dia, mandando em Lavalleja (“dá-te corte, Juan Antonio! não te quedes atrás!”)?

 

Quem imaginaria o que ela ia fazer, depois, daquele petiço cambota sem garbo e sem ânimo? Animo, ela sempre teria; como valor, valentia e intrepidez suficientes para incendiá-lo; e para defendê-lo: para lutar por ele, para se expor por ele, para sacrificarse por ele.Naquele instante, mirava Anita como a buscar adivinhar o que lhe passava pela cabeça; e, ao mesmo tempo, para tomar coragem suficiente e encontrar as palavras próprias para fazê-la ver o que então havia se passado. Ela estava com um vestido muito rodado – azul-claro, parece – de mangas compridas com fofos nos ombros; e dava para ver-lhe o que jamais esqueceria: a ponta dos sapatos, de camurça branca, lisos, com uns tufos de seda por cima.


Foi preciso esperar um pouco, porque, encerrada a cerimônia, Juana abraçou-se à irmã, chorando; e, havendo se sumido os negros, Anita esteve, ainda, a receber os cumprimentos do próprio cura e dos dois oficiais. Só aí foi possível chegar até ela, quedar-se de banda para saudá-la, e dizer-lhe:

 

Cumprimentos... Receba meus cumprimentos.

 

Gracias, senhor comandante.

 

Bueno... Mire, Anita...

 

Sim?

 

– Sabes de uma cousa?

 

Que cousa?

 

Que estou mui feliz de ver-te casada.

 

Ah! Gracias, muchas gracias por seu sentimento.

 

E mais, se me permite...

 

Mais quê?

 

O que já lhe digo...

 

Diga nomás...

 

Usté me desafia a dizer-lhe, porque é inteligente e vivida o suficiente para sabê-lo.

 

Saber quê, senhor comandante?

 

Disse-lhe, então, sorrindo:

 

Saber que o cura se atrapalhou; e à vez de perguntar-lhe se queria casar-se com Juan Antonio, perguntou se usté queria casar-se comigo.

 

Pobre padre Oubiña, estava tão nervoso...

 

É que usté respondeu que sim, que queria casar comigo...

 

Que cousa, comandante...

 

 

 

 

 

Imagem: ©Gilberto Perin - Edições ARdoTEmpo (Don Frutos, Aldyr Garcia Schlee - 2010)

publicado por ardotempo às 17:11 | Comentar | Adicionar