Contraponto e antídoto aos modismos contemporâneos

Retorno ao sagrado


Rachel Gutiérrez - Rio de Janeiro, RJ


Carlos Drummond de Andrade terminou sua famosa Elegia com os versos:

 

Amor, quem contaria?

E já não sei se é jogo, ou se poesia”.

 

Mariana Ianelli, cujo novo livro é, em grande parte, uma elegia para seu avô, o artista plástico Arcangelo Ianelli, encontrou em outros versos de Drummond a epígrafe: “Vazio de quanto amávamos,/ mais vasto é o céu. Povoações/ surgem do vácuo./ Habito alguma?”. E os 45 poemas que compõem Treva Alvorada estão distribuídos em nove “povoações” habitadas, sim, por densa e intensa poesia.

 

Aqui, se jogo há é o que começa no oximoro do título e na capa, que reproduz um quadro da fase abstrata do pintor, triunfo da cor que se expande no escuro que a emoldura. Depois, é o jogo do claro/escuro da vida e da morte, ou o da evocação de mitos longínquos em contraste com a noite, “que durou anos”, um longo percurso de agonia e despedida. Nos últimos versos do último poema, outro começo se anuncia: “E terei me esquecido/ E terei me recordado/ Na idade certa de dizer,/ Se tempo houvesse:/ Aqui não se morre mais”.

 

Circularidade de uma experiência espiritual tão próxima de East Coker, segundo poema dos Quartets, do cristão T. S. Eliot, que termina com “In my end is my beginning”, quanto do misticismo tibetano, que diz, num provérbio, “todo mundo morre, mas ninguém está morto”. Poesia densa porque concentrada, onde as palavras são circundadas pelo silêncio do não dito, como o finito é envolto de infinito e a vida, a nossa finitude, limitada pelo tempo imensurável do passado e do futuro. Poesia intensa porque especulativa, intelectiva, meditativa.

 

Na era do entretenimento, da mera diversão, quando se foge da morte, da solidão e da busca de sentido, quando a exposição do escatológico e a banalização da violência vem se perpetuando assustadoramente, a poesia corre o risco de tornar-se mero jogo, performance ou engenhosa e pouco séria construção. Ora, quando significativa, a poesia é feita de som, de sentido e de silêncio. Mas nosso tempo é de estridências, de ruídos sem sentido e de ausência total de silêncio. Contrapondo-se a isso, Mariana Ianelli intitulou um de seus mais belos livros Fazer silêncio, onde encontramos nos versos do poema Legado (Obstinada chama dos antepassados,/ Capítulo um desta ficção de realidades), como em Perspectiva (Durou o instante de uma chama/ Mas ficou para a posteridade), e no primeiro dos Poemas para epitáfios, de outro livro, Passagens, (Porque o culto da alvorada persevera/ Tu não desaparecerás), prenúncios da temática principal de Treva alvorada.


Senhor das cores


Na primeira Povoação, o eu lírico da poeta ora encarna o eu do avô, artista múltiplo, que evoca outros tempos — “quando não havia ainda/ A necessária mortalidade das coisas,/ e (...) sobravam direções —, ora se distancia e observa consternado o intermitente definhar de um corpo (que) “ousa viver um dia”. Na segunda, e na terceira, onde a morte já espreita e “se mete/ Pelas frinchas, pelas guelras”, diz-se também que “em um minuto o passado elabora/ O museu do futuro”. Não podemos imaginar como foi a infância de Mariana Ianelli no convívio com esse avô senhor das cores e das formas, dos materiais mágicos da pintura e da escultura, mas sabemos que sua poesia é esculpida com palavras cuidadosas, pensativas, matéria e forma do trabalho de uma artista. “Quando canto,/ Sonho que flutuo sobre um pélago,/ Sonhar é o meu trabalho” (de Cântico). “Ser poeta significa estar na alegria”, diz Heidegger, em Approche de Höelderlin. Mesmo quando fala da morte, o poeta canta e aprendemos com Bachelard que o tempo da poesia é vertical, um mergulho para o alto, ou uma vertigem das profundezas. É no mistério das profundezas que são geradas as imagens e as metáforas. “Um sorvedouro/ Onde a paz dos contrários/ Treva alvorada./ Fecundado flutuas./ É a lei da graça”, como conclui o poema da sexta Povoação, que dá título ao livro.A evocação dos mitos torna mais compreensível o mistério da vida, o sentido da história, a condição do homem.

 

No 13.º Trabalho de Hércules, da oitava Povoação, “Eis o velho empreendedor,/ O indomado. (...) Mas a chaga do herói não se mostra”. E quando é lembrada a Origem dos Moabitas, na sétima Povoação: “Ele penetra/ Os recessos de um livro,/ Abre a fonte lacrada”. Como Loth, o patriarca dos Moabitas que, muito idoso engendrou uma nova descendência, o avô Ianelli a todos fecunda e deixa um duplo legado: uma herança e uma história, suas obras e um exemplo de vida consagrada à arte. História de ricas povoações do espaço. Arte é espaço ocupado, vida acrescentada, criação demiúrgica que se instaura no tempo. No mito também há jogo de vida e morte, só o morto tem a vida completa, fábula contada, história. “A gente morre é para provar que viveu”, disse Guimarães Rosa. E Mariana, no penúltimo poema, Diante da paisagem: “Bendita vida, trigueira vida/ Pasmando o nada”. Pois “o mito é o nada que é tudo”, como entendeu Fernando Pessoa, aqui o nada da ausência, o vácuo, o “vazio de quanto amávamos” da epígrafe de Drummond.

 

 

 

Em A palavra, a poeta faz esta confidência:

 

Eu te procuro

Em tempos de rara cortesia”.

 

Tempos de Mariana Ianelli,

que assumiu matrilinearmente o sobrenome do avô:


O teu nome se descobre

Feito de estranhas vogais.


E logo adiante:


E o que era eterno se ausenta

Em tudo à espera

De uma nova eternidade.


A poesia de Mariana Ianelli contrapõe, aos modismos contemporâneos, às elaboradas assonâncias, profundas ressonâncias artísticas e culturais. Trata-se de um corajoso retorno ao sagrado e às essências da humana condição. E justamente por representar um contrapeso e um antídoto à nossa época é que a sua poesia é necessária. Daí sua extraordinária atualidade. Nesta homenagem ao avô, de quem segue o exemplo de dedicação integral ao próprio ofício, a poeta encerra o livro como a cor do quadro de Arcangelo Ianelli, que, em seu triunfo sobre a sombra, expressa a vitória da luz. 

Memorando


Não há grandes notícias.
Uma torre desapareceu,

O inverno expandiu-se

E a esperança ainda rói

O fundo de uma caixa

Procurando saída.
Com esculpido esmero

Vai se acabando uma família.
Um gesto qualquer se repete

No ensaio de ser abolido,

Remediar, abafar, corrigir,

Nada lembra o que antes foi só

Generosidade de coisa viva.
Não convém

O alvoroço dos pássaros,

A revanche da galhardia.

É inútil desafiar o pó

E, contudo, desafia-se.


 

© Mariana Ianelli - Treva Alvorada - Editora Iluminuras, São Paulo, 2010

Publicado em Rascunho (Curitiba PR Brasil)

publicado por ardotempo às 20:47 | Adicionar