Conto-crônica (inédito) de Mariana Ianelli
Já estivemos entre os primeiros da fila, pelo menos, é o que consta nos
registros. Havia muito o que perder naquele tempo, mas quem sabia disso?
Ninguém sabia.
"Naquele tempo" é o que dizemos quando a simples missão de
atravessar a rua se tornou um verdadeiro sacrifício, ou quando o espelho do
banheiro converteu-se na vitrine de um museu pessoal de arqueologias.
Continuamos na fila depois de dar a meia-volta e lentamente vamos chegando à
outra ponta, vencidos por um par de sapatos velhos, uma cirrose e o espanto
de uma agenda telefônica cada vez mais defasada e fictícia. Nossos antigos
colegas de classe bem poderiam ter permanecido naqueles bancos caquéticos,
decorando o teorema de Tales, o futuro do pretérito, a Questão das
Investiduras ou a estrutura molecular dos polímeros. Mas não.
Existe sempre um mensageiro do sinistro que vem, não se sabe de onde,
só para dizer que Ana, vocês se lembram de Ana, a campeã dos torneios
de basquete?, pois então, nas últimas férias de julho ela voltava de uma viagem
com a família, à noite, pela via expressa, quando um caminhão desgovernado
simplesmente; e o Gordo, vocês se lembram dele?, pois não foi que o coitado teve
um surto, sozinho num sítio lá onde o mundo faz a curva e, sabem como é,
de repente o desespero, o vazio por todo lado, a ronda do caipora, as ratazanas, as serpentes, o mato gritando noite adentro e aquela irresistível espingarda na parede.
De quando em quando também chegam notícias dos que deram certo e
conservaram os dentes fortes, a cabeça razoavelmente lúcida e o sangue,
apesar dos pesares, limpo. Entre eles, o Toninho, que nós já desconfiávamos,
finalmente ali, na capa de uma revista, com seu rosto lânguido de Psiquê
enrolado num manto de caxemira; ou ainda, as famosas pernas do colégio, que
de um dia para o outro começaram a desfilar pelos corredores de uma clínica
de estética, atendendo a madames e falsas atrizes.
Assim vamos passando, nós, esses pequenos montes de areia engarrafados
no funil de uma ampulheta depois de amanhã mais cheia embaixo do que em cima.
Com os pés enfiados nos chinelos, vamos até a mesa da cozinha e invadimos as novas páginas da História para ver quem são agora os vanguardistas, os milhões de meninos e
meninas se acotovelando no início da fila. São eles que nos empurram
adiante, que sacodem o rabo da salamandra, estas crianças de mãozinhas
estendidas, cheias de barro e de fuligem, estas caras alarmadas, esculpidas
pela fome e estas patas mansas de filhotes instruídos pela hedionda
estupidez televisiva.
E nós amamos, nós aprendemos a amar uma geração nascida da loucura e do sublime,
que ainda insiste na esperança, quem sabe se por ignorância ou por delírio, e que
oferece à roleta do jogo a própria vida, como antes nós arriscamos e perdemos a nossa aposta em um Deus impossível.
© Mariana Ianelli, 2008