"O mar anda/ e a água canta"
"O mar anda/ e a água canta”
José Mário Silva
Quando a Alice tinha três anos (quase a fazer quatro), viu-me certo dia a rabiscar furiosamente um moleskine e perguntou logo: «O que é que estás a fazer, papá?» Expliquei-lhe que era um poema e ela ficou ao meu lado, silenciosa, a ver os traços deixados pela tinta negra da Bic.
Na manhã seguinte, apanhei-a deitada no chão do quarto, a rabiscar furiosamente um caderno. A página estava cheia de gatafunhos ilegíveis, mas muito bem ordenados, linha a linha. Pormenor importante: as linhas não chegavam ao fim da página. Foi a minha vez de perguntar: «O que é que estás a fazer, Alice?» E ela, como já terão adivinhado, respondeu: «poemas».Só isto já merecia ser contado, mas a história não acaba assim.
Quando peguei no caderno, apercebi-me de que o primeiro poema tinha apenas duas linhas. E fiz a pergunta óbvia: «Podes dizer-me, Alice, o que está escrito aqui?» Então ela aproximou-se e leu, muito desembaraçada, apontando o seu pequeno dedo aos gatafunhos:
«O mar anda /
e a água canta».
Eu nem queria acreditar no que tinha ouvido. Pedi-lhe que repetisse. O dedinho lá seguiu o primeiro verso,
«O mar anda»,
e depois o segundo,
«e a água canta».
O espanto, o espanto, o espanto. Fiquei a repetir os dois versos, a apreciar a sua música, a sua ressonância helénica (um vislumbre de Ulisses e as sereias), perplexo com isto de uma criança de três anos ser capaz de criar assim, out of the blue, um dístico que, perdoem-me o exagero, pede meças a muita coisa que se vê para aí publicada.
Agora, se um dia a Alice se tornar poeta e lhe perguntarem quando é que começou a escrever poemas, ela pode responder com a data exacta: 3 de Janeiro de 2009. E acrescentar os dois versos:
O mar anda/ e a água canta.
O entusiasmo foi tal que a Alice, à noite, teve dificuldade em adormecer. «Estou a pensar nos meus poemas», dizia ela, com os olhos a piscarem de sono.
Disse-lhe que dormisse, que sonhasse com palavras e que na manhã seguinte escrevesse mais versos no caderno. E assim aconteceu.
O primeiro contacto directo com a poesia foi tão belo e espontâneo que não merecia prolongamentos forçados. O reencontro acontecerá quando tiver de acontecer. E nessa altura ela saberá que o pai não se esqueceu dos seus primeiros poemas, escritos quando ela ainda nem sequer sabia escrever.
José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel