Línguas à solta, sem constrangimentos
Alguém quer fazer uma pergunta?
José Mário Silva
Nos últimos anos, tenho aceitado muitos convites para moderar mesas-redondas literárias e apresentações de livros. Dessa minha experiência retirei um ensinamento: ao contrário do que seria legítimo esperar, não é o debate em si que levanta dificuldades. Salvo raras excepções, os oradores com quem partilho a mesa costumam ser pessoas inteligentes, articuladas, que sabem falar e têm coisas interessantes para dizer. Eu apresento-as, resumo os seus percursos, lanço tópicos para a conversa, vou gerindo os tempos, provoco aqui e ali, contextualizo, estabeleço pontes entre as principais ideias discutidas e esboço, no fim, uma síntese. Isto, com a prática, torna-se fácil.
Complicado é o que vem depois. O momento fatal em que olho para o relógio, confirmo que faltam dez minutos para acabar a sessão e dirijo ao público o desafio da praxe: "Alguém quer fazer uma pergunta?"
Primeiro, instala-se o silêncio. Um silêncio desconfortável, tenso, cheio de silêncios mais pequenos, como bolhas prestes a rebentar. Varrendo a sala com os olhos, descarto logo os espectadores adormecidos (ou em vias de adormecer) e os espectadores que nunca jamais em tempo algum seriam capazes de pedir a palavra (basta ver a forma como se afundam na cadeira), e concentro-me naqueles que embora não levantem, ainda, o dedo que assinala a resposta ao meu repto, já se agitam e soerguem os corpos, traindo a loquacidade que dentro deles fervilha.
Eu repito a pergunta, acrescento "Já se sabe que a primeira é a mais difícil", volto a varrer a sala com o olhar, insisto ("Alguém?'), olho para os convidados, viro-me para a plateia com cara de "falem agora ou calem-se para sempre", e então uma mãozinha lá se digna a acenar, quase a medo, como quem não quer a coisa (mas quer, mas quer).
Enquanto o microfone não chega ao dono da mãozinha, preparo-me para o embate. É agora que o meu trabalho verdadeiramente começa. Cabe-me ouvir com atenção as primeiras frases, detectar padrões de linguagem, traçar um perfil, enquadrá-lo na taxinomia dos frequentadores-de-debates-que-fazem-sempre-perguntas-no-fim e agir em conformidade.
O mais problemático destes espécimes (tratemo-los assim sem desprimor) é o que se apropria do microfone sem intenções de o largar. Se o deixassem, ficaria ali, perorando sobre tudo e mais alguma coisa (menos o tema do debate, claro) até à manhã seguinte. Ou até começar o Forum TSF, onde deve ter lugar cativo, seja qual for o assunto em discussão.
A este tipo de opinador verborreico não é fácil cortar a palavra, mas uma frase como "peço-lhe que faça, caro senhor, uma pergunta concreta à mesa, caso contrário vou ter de passar a outra pessoa" costuma ser remédio santo e ele depressa assume que na realidade já disse o que queria dizer.Há depois um sem número de categorias capazes de dar água pela barba ao Lineu que decidisse estudá-las. Entre outras, os perguntadores confusos, que se atropelam e enrolam e gaguejam e continuam a ser incompreensíveis mesmo depois do quinto "importa-se de repetir?"; os perguntadores complexados, que protestam contra o elitismo da mesa ("eu não percebi nada do que disseram, mas também nunca andei na universidade, trabalho desde miúdo", etc.); os perguntadores zangados, que se sentem pessoalmente ofendidos por algo que foi dito sobre a classe a que pertencem (profissional, etária, económica) e lavam a honra com muita verve e pouca capacidade de síntese; os perguntadores agradecidos, que apenas querem sublinhar o "enorme prazer" que tiveram ao ouvir comunicações "tão excepcionais"; os perguntadores alucinados, que vivem num universo paralelo e ainda não se aperceberam (nas Correntes d’Escritas há um que até fala em alemão); e os perguntadores poetas, que insistem em partilhar com o resto da sala os seus embaraçosos versos de pé quebrado.Justiça lhes seja feita, há também perguntadores normais, os que colocam questões sucintas e directas aos intervenientes, mas parece-me que são uma minoria.
Quando pergunto se alguém quer fazer perguntas, é dos outros que eu estou sempre à espera. E é por isso que às vezes fico aliviado quando ninguém levanta a mãozinha e eu remato com um "então ficamos por aqui".
Publicado no blog Bibliotecário de Babel