O tempo
A valorização do tempo
A campanha NÃO-FUTIBOL é uma reflexão sobre a imensurável quantidade de tempo perdido por milhões de pessoas envolvidas passivamente - hipnotizadas abulicamente - pelo fenômeno espetacular do negócio-futebol.
Nada contra o esporte, de dinâmica física e filosófica que imita a vida no seu constante recomeçar cíclico - perde-se num dia, recupera-se no outro. No seu regramento estruturado para ser seguido ou ser burlado em sua atávica dialética apolíneo-dionisíaca. Isso é o esporte simples, singelo e barato, uma bola, dois grupos adversários, quatro pedras formando os objetivos a alcançar e transpassar na busca do ponto e da vitória. Esporte vigoroso e saudável, que as crianças, os adolescentes e os adultos (homens e mulheres), praticam de forma espontânea e amadora. Nas várzeas, nos campinhos sem as dimensões das regras oficiais, nas escolas, nas periferias das grandes cidades, nas áreas rurais. Ao apito inicial, uma nova chance, uma renascença, a metáfora fina da vida, isso é positivo para quem o pratica, para quem está dentro das linhas traçadas em tinta ou apenas as imaginárias. Para quem joga o jogo.
Longa vida ao esporte e aos que o praticam com denodo, suor e inteligência.
Do lado de fora das linhas de jogo, fora do esporte, corre o tempo e a concretude da vida real das pessoas. Fora do campo, a história será outra.
Quando se transforma no negócio do mega-espetáculo, as coisas começam a ter outros enfoques, muito mais complicados e oblíquos. O negócio-futebol que é boa coisa apenas numa mínima fração de sua espantosa dimensão, que é um tanto má nos seus desvirtuamentos inevitáveis à condição humana (propinas, subornos, lavagem de dinheiro, química, drogas, influências, apostas, acordos secretos, o estímulo à violência, a violência desmesurada no entrecho e no coletivo) e é assombrosamente daninha na expropriação do tempo das multidões. Esse é o pior problema, a doença oculta - o sequestro do tempo.
O tempo é o mais valioso bem não-renovável que possuímos. O tempo de vida perdido de uma pessoa, um minuto que seja de espera numa fila ou de distração num momento de fadiga, será irrecuperável. O que dizer do tempo de duas pessoas, ou de centenas ou de milhões de pessoas, vidas preciosas jogadas fora impunemente e de forma desviada, alienada. O tempo perdido, a aura fantasmal e precoce no cadáver ainda em movimento.
O tempo de não se aprender, de não se ler um livro, de não se produzir nada criativamente, de pintar, de escrever, de pensar, de gerar tecnologias ou alimentos e até conseguir aproximar-se um pouco do estado da consciência plena (o que é dificilimo, fugaz e raro - manter-se em estado de consciência).
Ter a informação não basta, é necessário saber o que fazer com ela. E fazer algo, de fato.
O tempo do negócio-futebol é ganho para uns poucos, em forma de grandes volumes de dinheiro e é perdido dramatica e silenciosamente pela imensa maioria, sem uma razão concreta e produtiva.
O que se perde não é apenas o dinheiro, que é absolutamente insignificante frente ao que se perde na realidade - o tempo de viver. E na semana seguinte perde-se novamente e na outra semana perde-se de novo. De novo. Sem novidades. No negócio-futebol tudo é velho, tudo se repete de forma programada, na redundância do vício, na repetição patológica do prazer idêntico e caduco.
Tudo é engodo no negócio-futebol. A saber: a trupe de artistas do espetáculo (são artistas, são gladiadores de tempo também efêmero e finito, são negociantes e não são esportistas) ganham muito pouco por aquilo que propiciam como atração sedutora. É uma questão aritmética - são apenas uns trinta artistas por espetáculo (os jogadores, os juízes, os treinadores, os coadjuvantes eventuais das cenas recorrentes) que se apresentam num estádio para 5.000 ou 20.000 ou 30.000 assistentes, observadores sedentos do espetáculo repetitivo. As imagens são transmitidas à distância pela televisão para milhões ou bilhões que os assistem estáticos, estes todos perdendo inexoravelmente o seu tempo de vida, que jamais será recuperado. Aqueles protagonistas, tão poucos, que aparentemente ganham muito, na realidade ganham muito pouco, o que será insuficiente para remunerá-los pelo que acarretam, em benefícios e principalmente, em malefícios. Os atravessadores do negócio-futebol ganham fortunas (os clubes, as emissoras, os fabricantes dos produtos, os mercadores de carne humana, os publicitários, os jornalistas “especializados” em estimular o tempo sequestrado). As vítimas, os que perdem a sua vida e a sua chance de produzir arte e consciência, assistem paralisados, ao jogo errado.
Não percebem o seu tempo passando e a vida se extinguindo, segundo a segundo.
O negócio-futebol é uma auchwtiz gigantesca e sem resistência aparente, a incinerar o tempo de vida de bilhões de pessoas todos os dias, em todos os cantos do planeta. Chama-se entretenimento, aparentemente inofensivo, um mote eufemismo a disfarçar a terrível tragédia anunciada da renúncia à vida, a abdicação do tempo de criar. O tempo se esfuma ao som estridente de apitos e de uivos selvagens das torcidas enlouquecidas e distanciadas da realidade tangível . Na semana seguinte repetem-se as cenas já vistas com o mesmo ímpeto especular do videoteipe, que só não repete a data. Essa é cena de terror real: a data é outra, e depois tristemente será outra, para a mesma farsa de esforços estéreis.
Porém, todos estarão um pouco mais velhos, mais próximos da morte e nada de novo se terá produzido, sequer uma linha de texto, uma dança, um desenho, uma fotografia, um filme, uma invenção, um alimento, uma ideia, uma reflexão, um afeto, uma nova vida, uma percepção diferente do mundo e do planeta.
O tempo passa cruamente e cobra sua conta no final, adicionando o custo alto da gorgeta.
Neste ano teremos, infelizmente, a Copa do Mundo e tudo será tediosamente igual, o idêntico alarido publicitário, o fervor patriótico e a postura profundamente improdutiva do marasmo e da paralisia. A perda de tempo. individual e coletiva, irreparável. O sequestro do tempo das multidões inocula o veneno da impotência da criatividade.
NÃO-FUTIBOL é um convite a pensar em nosso próprio tempo como o melhor e mais valioso bem que possuímos. Que precisa ser cuidadosamente aproveitado. Bem que é bastante limitado, que é finito e que não deveríamos entregar de forma tão ingênua e tão cordata aos que o assaltam de maneira tão espalhafatosa e sem recato.