Memória ao Poeta

Carta tardia a um poeta arredio
 
Ferreira Gullar
 
Poeta Carlos Drummond de Andrade, desculpe-me se venho lhe perturbar o sossego, dizendo-lhe coisas que, para você, a esta altura, não têm qualquer importância. Estarei sendo mesmo impertinente, ao manifestar-lhe, deste modo, minha solidariedade em face do vandalismo com que têm agredido sua estátua, ali, no calçadão da avenida Atlântica. Saquear a estátua de um poeta é coisa de gente demasiado ignorante.
 
Falo de impertinência minha porque, pelo que sei de você, estou certo de que não aprovaria essa ideia de materializá-lo em bronze como se estivesse sentado num dos bancos da praia a observar os banhistas e as banhistas sob o sol escaldante. Não que fosse indiferente à beleza das moças exibindo-se nos maiôs sumários que usam. Mas uma coisa é um poeta de carne e osso e outra, muito diferente, um poeta de bronze.
 
Tenho certeza de que jamais imaginou, ao passear por esse mesmo calçadão, que um dia estaria ali, metalicamente moldado, exposto ao sol e à chuva, à contemplação dos turistas como à solidão das noites intermináveis, quando o bairro inteiro dorme e mal se ouve, distante, o quebrar das ondas na areia.
 
Já que você, agora, é de bronze, e não me ouve, aproveito para dizer-lhe o que não disse nas raríssimas vezes em que nos encontramos e nas poucas, também, em que falamos, porque a verdade é que, se não sou tão arredio quanto você, sempre me foi difícil procurar as pessoas, muito mais ainda, poetas célebres, como é o seu caso. Já bastava ser célebre para me assustar; pior ainda se, além de célebre, era esquivo como você.
 
Vi-o, pela primeira vez, ao sair do elevador do "Correio da Manhã", na avenida Gomes Freire, aonde fui com Oliveira Bastos e Décio Victório, certa tarde, em que decidimos escandalizar as pessoas. Meus dois companheiros tinham as respectivas gravatas presas à cintura, enquanto eu trajava calças, paletó e gravata mas, em lugar de sapatos, calçava tamancos. Você não deve ter se dado conta da provocação, pois mal nos olhou, ao sair do elevador. Subimos até o andar da Redação e, numa saleta, nos deparamos com Otto Maria Carpeaux que, míope como era, escrevia à mão com a cara grudada no tampo da escrivaninha. Entramos os três e nos pusemos, ali, imitando-o, também com a cara colada na mesa. Ele se assustou e nos lançou um olhar indignado que nos fez deixar a saleta às gargalhadas.
 
Isso foi em 1955, quando alguns poucos que me conheciam tinham-me por maldito. Eu vagabundava, naquela época, pelas ruas do centro da cidade e às vezes me sentava à porta de um restaurante, ali na esquina de Graça Aranha com Araújo Porto Alegre; para contemplar o edifício do hoje Palácio Gustavo Capanema, que parecia flutuar, onde você trabalhava. E o vi, certa vez, deixar o trabalho, de mãos dadas com uma mocinha, que, soube depois, era sua namorada. A sua cara, porém, nada dizia.
Muitos anos se passaram até que você chegasse aos 70 anos e me convidassem para participar de um programa de televisão em sua homenagem. Escolhi, para dizer, aquele seu poema "Memória", por ser curto e por ser belo:
 
 
"As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão."
 
 
Fiquei todo bobo quando, dias depois, recebi um bilhete seu, agradecendo minha participação na homenagem e elogiando o modo como havia dito o poema. Tenho esse bilhete comigo, até hoje, guardado em alguma gaveta.
 
A última vez que o vi foi no velório de Vinicius de Moraes, no cemitério São João Batista. A morte, neste caso, serviu para nos aproximar: fui falar com você e, para minha surpresa, em vez do homem tímido e reservado, deparei-me com um sujeito irritado, reclamando da doença que lhe tinha aberto uma ferida no rosto, como me mostrou. Havia, de fato, uma cicatriz que lhe marcava a face direita.
 
Depois disso, só voltaria a vê-lo naquele mesmo cemitério, desta vez em seu próprio velório. Eu tinha, naquele dia, um compromisso de trabalho em Brasília mas, a caminho do aeroporto, fui, por assim dizer, despedir-me de você. E, desta vez, quem estava revoltado era eu, revoltado com sua morte, com esse fato inevitável e inaceitável, que é a morte das pessoas que amamos ou admiramos. As declarações, que dei aos jornalistas, naquela ocasião, estavam mais perto do insulto que de outra coisa. A quem eu insultava, na verdade, não sei. 
 

Ferreira Gullar - Publicado na Folha de São Paulo / UOL

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publicado por ardotempo às 14:05 | Comentar | Adicionar