Dívidas, hiper-consumo, ruptura ambiental

De olhos bem abertos
 
Manuel Maria Carrilho
 
 
"Deus ri-se das criaturas que se queixam dos efeitos, mas que continuam a alimentar as suas causas" - Bossuet
 
Vivemos hoje, individual e colectivamente, lúcida ou inconscientemente, as consequências das nossas opções.
 
Quando estas consequências são boas, todos reivindicam um papel, quantas vezes a despropósito. Quando elas são más, não aparece ninguém a assumir responsabilidades. Pelo contrário, todos as enjeitam, escondendo-se atrás do inesperado, como se de repente uma ordem sobrenatural - a crise, claro! - se abatesse sobre a humanidade.
 
Assim entendida, a crise corre o risco de conduzir a uma inquietante irresponsabilidade, passando-se ao lado do essencial, que é - quer se trate do autismo financeiro ou do desastre ecológico, do impasse económico ou do susto social - o do realista confronto connosco próprios.
 
Confronto incómodo porque, por um lado, revela toda a fragilidade do racionalismo calculista que tem dominado o mundo nas últimas décadas. E, por outro lado, porque destaca a força dos elementos irracionais - a que os gregos chamavam pathos - no comportamento humano, seja pelo lado dos que iludem (traders, publicitários, políticos, agências de rating, etc), seja pelo lado de todos os que são iludidos, numa espiral de cumplicidade que marcou o singular crescimento destes últimos vinte anos.
 
A crise é, contudo, a hora do inevitável confronto com algumas evidências, que têm sido evitadas pela cegueira que sempre tende a acompanhar a perseguição dos nossos desejos. O homem, dizia Adam Smith, gosta de colher o que nunca semeou, vivendo o impossível como se de algo natural se tratasse. E o impossível foi, na circunstância, um crédito sem consequências, como se as dívidas contraídas se esfumassem no imperativo da despesa ou na magia do consumo.
 
Foi esta a ilusão que a crise veio por brutalmente em causa. Tanto como evidenciar os indubitáveis excessos da finança, ela veio questionar este modo de viver, que se impôs com a precarização generalizada de populações enfraquecidas pelo aumento do custo de vida, mas constantemente seduzidas e electrizadas pelo hiper-consumo. Situação a que só conseguiram fazer face, dada a estagnação salarial, recorrendo cada vez mais ao crédito.
 
O calcanhar de Aquiles está, pois, aqui: o crescimento assentou, nas últimas décadas, e de uma forma cada vez mais intensa, no crédito. Esgotado este recurso, dados os já estratosféricos níveis da dívida (primeiro da privada, e agora também da pública), haverá algo que ponha de novo este modelo em funcionamento? Esta é a questão nuclear, que continua sem resposta.
 
E, entretanto, a tenaz aperta-se. Como ainda por estes dias explicavam J. P. Fitoussi no Le Monde e P.Krugman no The New York Times, ou se continua a beneficiar o infractor que joga com cinismo no "too big to fail", correndo-se o risco de se caminhar para uma nova bolha. Ou se aposta na normalização da situação, e as hipóteses de recessão e de uma explosão do desemprego são imensas
 
Não admira, pois, que se fale tanto em mudar de paradigma. Mas para se mudar de facto de paradigma, é fundamental que, de olhos bem abertos, se compreenda a verdadeira novidade desta crise, tanto quanto à sua natureza como quanto às suas consequências. Este passo, contudo - como bem se viu no mês passado em Copenhaga - dificilmente será dado pelos mesmos actores que conduziram à situação actual. Esperá-lo é como acreditar que um dinossáurio se torne num mamífero…
 
É preciso outro espírito, que combine realismo e utopia e perceba que hoje tudo está de facto ligado. São necessárias outras visões, outras instituições e outros gestos, que não sejam de pura retórica, como acontece com as vagas promessas de um crescimento "mais verde", "mais sustentável" ou "mais tecnológico".
 
Como diz Mia Couto, este "desenvolvimentês" tornou-se na linguagem do engano mais comum, porque fala do que na verdade é incapaz de pensar. E, assim, mantém os que a ouvem reféns de tudo aquilo que conduziu à crise quando, justamente, do que se precisa agora é de mudança de expectativas e de comportamentos, de linguagem e de valores.
 
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publicado por ardotempo às 21:43 | Comentar | Adicionar