O livro lido

Aldyr Schlee e o impossível

 
Pablo Rodrigues
 
Transito com cautela por estas linhas. E já começo o texto tendo que resistir a mim mesmo, tendo que resistir à vontade de largar tudo para reler Os limites do impossível - Contos gardelianos, sétimo livro de contos do escritor jaguarense Aldyr Garcia Schlee. Na verdade, este comentário que inicio é, no fundo, um atrevimento. Sim, porque diante de uma obra como a que acabo de ler o não dito sempre falará mais. E melhor. Atiro-me, portanto, ao não-sei-onde.
 
Em 12 contos narrados a partir da história de 12 mulheres, o leitor caminha sutilmente pelo que há de mais belo e também de mais terrível no espírito humano: amores, traições, melancolias, desejos, violações e muitos disparates. No primeiro conto, intitulado Clara e por Clara narrado, a tristeza da menina feia apaixonada pelo filho do tambeiro e obrigada a casar com outro angustia o leitor. Angustia sobretudo pela forma como Clara se mantinha presa àquele mísero momento de quase-alegria, e sempre repetia para si mesma, como se estivesse condenada eternamente a andar em círculos: “... eu corria todos os dias de manhã cedo a receber-te na porta e tu me dizias ola e eu te respondia ola.” 
 
Em Felicia, segundo texto do livro, a história da mucama - contada por um narrador onisciente - começa a revelar a interdependência dos contos. A partir de Felicia, o leitor entrevê - um tanto abismado e a se perguntar: “Como ele faz isso?” - a grandeza do escritor. Ao longo de Os limites do impossível, o encanto se descortina gradualmente. De pequenos contos com histórias próprias e isoladamente repletas de sentido, o autor tece uma supra-história - e cria um romance. Talvez neste ponto resida o verdadeiro encanto estrutural da obra. Algo sem igual na literatura brasileira. 
 
“E Vidas secas?”, alguém dirá. Pois respondo: as diferenças são enormes. O livro de Graciliano Ramos é linear. E por vezes óbvio. O livro de Schlee, ao contrário, se desenvolve em narrativas labirínticas - ao melhor estilo borgiano - e misturadas, como a vida. Arrisco-me a dizer e me sujeito às pedras: Os limites do impossível (com toda a enorme carga de imaginação e invenção nele contido) soa mais real que Vidas secas (com todo o realismo que nele se pretendeu imprimir).  
 
“E onde entra Carlos Gardel nesta história?”, outro perguntará. Em tudo. E em muito pouco. Neste ponto reside mais um encanto do livro: Gardel não é citado. Fica como uma espécie de promessa. De porvir. Até nasce, na história de Manuela (“... um machito de quase dois palmos e cara mui redonda”), rebento do estupro e do incesto. A obra, porém, se ocupa em tratar profundamente do antes de Gardel. De como as coisas rumaram até ele. A figura central no livro é Carlos Escayola, pai do futuro tangueiro e de tantas outras crianças. Homem sedutor e mulherengo, capaz das maiores crueldades. Não entrarei em detalhes sobre ele, para não tirar do leitor o gosto - algumas vezes doce, mas em maioria amargo - da descoberta. 
 
De personagens reais (quase todos, ao menos), as histórias imaginadas ganham contornos que a realidade muito bem poderia ter dado. O cenário principal, onde se desenrola grande parte dos fatos, é a vila uruguaia de San Fructuoso, fundada em 1832 e que viria a se chamar Tacuarembó (sim, essa terra mítica onde, sim, também no livro nasceu Gardel). Em muitos trechos de Os limites do impossível  tem-se a nítida impressão de que o texto, pela construção das frases, foi pensado em espanhol. Nada mais coerente. 
  
Por enquanto, falta-me tempo à segunda leitura. Falta-me tempo para pensar melhor sobre pontos que ficaram insinuados e mereceriam mais atenção, como a estratificação social bem delineada dos personagens e a profunda oralidade presente nos diferentes estilos de narrar utilizados com maestria por Schlee; os não-dizeres de La Niña, por exemplo.
 
De certo, tenho que - pelo número de pormenores e peculiaridades narrativas - estamos diante de uma obra incomparável. De certo, tenho que cada linha, cada quebra de parágrafo e cada palavra valem o esforço do leitor. O livro vale ainda pelo muito que nele não coube, mas ficou indicado: inúmeras outras possibilidades. 
 
Schlee é homem da fronteira. E talvez isso diga tudo.

Pablo Rodrigues - Publicado no Diário Popular (Pelotas)
publicado por ardotempo às 01:41 | Comentar | Adicionar