OS ALEMÃO - 4






Os que mudaram a fronteira

                    


Tio Carlos
era enorme de grande e gordo. Suava todo o tempo, usava terno branco inverno e verão, sapatos de duas cores, e um chapéu com que se abanava, ofegante, como se estivesse sempre a se asfixiar, afogando-se nas palavras em que tropeçava, falando aos solavancos. De noite, roncava tanto que era sobressaltado pelo próprio ronco e acordava assustado, com seu cabelo dourado mal posto numa touca de dormir que já ninguém mais usava. 

Ele era rico: vivia de rendas, depois de ter vendido aos outros irmãos sua parte nos negócios de navegação. E se dera ao luxo de comprar quase todas as terras improdutivas da beira da Lagoa, na barra do arroio, onde hoje é a turística praia de São Lourenço do Sul.

Tio Emílio não tinha um olho, ou melhor: tinha um olho de vidro, que tirava nas ocasiões mais inesperadas ou depositava nos lugares menos esperados. Ele que me contou a história de Robinson Crusoé, antes de eu ter aprendido a ler. Ele que soube por um alemão de Valdívia, que na ilha de Juan Fernández estava afundado o encouraçado Dresden. Ele que comprou equipamento de escafandro e convenceu os irmãos a adquirirem o direito ao resgate de tudo que encontrassem nas carcaças dos navios afundados em toda a costa do Rio Grande e do Uruguai. Ele que, doente, morreu ao cair da cama, sonhando talvez com o tesouro perdido de sir Francis Drake, mas sem nunca ter conseguido chegar ao menos perto das profundezas inabordáveis do Admiral Graf Spee.

Tio Guilherme era baixo e meio corcunda, parecendo sempre preocupado, desatento e desinteressado a ponto de acordar para o que se dizia com um ah, sim! que só fazia revelar como seu pensamento andava em outras coisas, em outras gentes, em outros lugares. Ele tinha negócios de importação e exportação com o Uruguai (diziam que se fizera sócio do embaixador brasileiro) e era quem trazia para cá o que se quisesse e se precisasse – e vendia lá o que eles precisassem e quisessem. Até que, epilético, foi-se para Buenos Aires e Montevidéu em busca de uma cura tão impossível quanto capaz de lhe tragar dezenas de imóveis, uma fábrica de conservas, uma “barraca de fructos do paiz” e o próprio negócio de exportação e importação.
                            

Tio Gustavo comprava todos os bilhetes de loteria que aparecessem; e tirou duas vezes a sorte grande: na primeira, embarcou em Buenos Aires na 1a. Classe do navio alemão Cap Arcona, fazendo uma luxuosa viagem de ida e volta à Europa, via Rio de Janeiro – durante a qual jogou todo o muito que tinha.

Na segunda, estava em Sta. Vitória do Palmar,
aonde levara uma égua chamada Mimi para correr uma penca milionária, quando soube que seu bilhete inteiro estava premiado; apostou então o bilhete, por um terço do valor, contra tudo e todos – dinheiro vivo, locomóvel, junta de bois, ponta de gado, fração de campo...


Mimi, que era uma tordilha filha de Listo, ganhou.

                           
Augusto, meu pai, era muito mais moço que os outros. Usava gravata borboleta, fumava cachimbo, andava de picareta e polainas, tinha abandonado os estudos de odontologia e não sabia dançar. Papai guri foi moço de convés e marinheiro, logo dono do Aníbal II, sócio dos irmãos na companhia de navegação. Depois teve fábrica de sabão, alambique de cachaça, um armazém chamado Mina de Ouro, além de uma fábrica de corda, outra de calafeto alcatroado – instalou em Jaguarão um luxuoso hotel, com jardim francês e talheres de alpaca – e viu irem por água abaixo, na enchente de 42, os planos que tinha de colocar num único empreendimento toda a multiplicidade de suas idéias e toda a soma de seus recursos.


                  

A imagem que tenho dele, desde quando ainda não era meu pai – andando de prancha no rio, pilotando uma Harley-Davidson com side-car, posando ao lado de seu Essex – é de um herói de cinema, daqueles que vencem e vencem sempre sem que se lhes amarrote a roupa, sem que lhes caia o chapéu da cabeça; e que, se não vencem sempre, é como se não tivessem perdido, mas ganho.

É a mesma imagem do herói que vende seguros e volta de uma longa viagem cheio de presentes e põe o filho num avião  e segue com ele de trem e perde a baldeção mas arranja um impossível automóvel sobre trilhos para chegarem os dois a tempo de cantarem o Tannembaum, em torno da árvore com maçãs.

Meu pai nunca precisou me ensinar alemão para que eu vencesse o medo de não ser apenas brasileiro e um pouco uruguaio. Ele e seus irmãos nunca precisaram resgatar tesouros para se tornarem mais ricos, porque sempre fizeram eles mesmos os seus tesouros, desprezando e arriscando na aventura toda a riqueza. E eu, depois de tudo, nunca mais precisei saber nada além de estrelas, corações, anjos, flores e sereias...

Os irmãos de meu pai morreram. Meu pai também, depois de ainda ostentar aos oitenta anos seu cachimbo, seu Karmann-Ghia e seus novos projetos. Agora, já poucos se lembram de meu pai e de meus tios em Jaguarão; já ninguém sabe quem foram e o que fizeram aqueles surpreendentes e estranhos alemães que mudaram a fronteira. 

                   

Nas imediações de Coquimbo, cinco barcos corsários continuam afundados, cheios de baús com cinco mil barras de ouro de cinqüenta quilos cada uma – e mais ainda, diz-se, com uma encantada ânfora de prata, capaz de assegurar sorte e paz eternas a quem a encontrar. 

DAS ENDE

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© Aldyr Garcia Schlee
Imagens ©Coleção Azevedo Moura e AGS
  
publicado por ardotempo às 02:10 | Comentar | Adicionar