OS ALEMÃO - 2




 


Os velhos levados presos por não falarem português


D
epois das férias, retornei a Jaguarão, onde havia nascido, onde estudava e onde morava com minha vó materna, a um passo do Uruguai. Não sei se cheguei a ter vontade de contar tudo, tudo o que eu tinha visto e feito; mas, por qualquer razão que na época não poderia adivinhar, acabei guardando tristemente comigo, em dificultoso segredo, cada alegria, cada descoberta, cada novidade de Santa Cruz.

                                  

Talvez achasse que não acreditariam em mim, talvez não quisesse me intrometer em assunto de gente grande.  De modo que nunca revelei nada, mesmo que fosse sobre as bolachinhas de mil formas, os bichinhos de marzipã e a ávore de Natal enfeitada com maçãs de verdade; eu nunca confessei palavra sobre os velhos levados presos rua afora ou os cânticos natalinos ou o bolo de chocolate de vovó Anna – eu, que ninguém sabia que havia viajado num  automóvel sobre trilhos, dormido em acolchoados  de pena de ganso e morado dentro de uma fábrica de balas!...

Em Jaguarão, os dois primeiros alemães que apareceram foram um fotógrafo e um dentista, prático licenciado. Depois, com seus barcos a vapor, com seus ternos elegantes e com suas manias de grandeza que acendiam de inveja os fazendeiros locais, chegaram meu pai e seus irmãos, trazendo rio acima cimento e ferro para a grande ponte, trilhos e dormentes para a ferrovia; as quais haveriam de unir Brasil e Uruguai e de marcar o início do longo e agoniado declínio da navegação fluvial e lacustre.


                


Eu ainda não era nascido, mas me lembro bem, porque está num conto meu.

Desde que chegaram os homens, desde que se abriram as picadas, desde que vieram os dormentes e trilhos as coisas foram mudando demais. Eram gentes de pêlo variado, de modos estranhos, de toda a laia e para todo o gasto; eram medidas e escavações, picaretas e pás, campo rasgado e mato derrubado; eram toras pesadas enchendo os iates, eram aquelas talas de ferro luzindo e depois enferrujando, enferrujando...


               


Foi o verão mais quente que já se teve; e foi o dia mais quente de todos os verões, aquele 1º de janeiro de l93l da inauguração da ponte: as pessoas debruçadas na amurada, olhando o rio bem de cima; a água limpa da estiagem passando em desordenados redemoinhos; embaixo, barcos enfeitados, as chatas, os iates que haviam carregado ferro e cimento, cimento e ferro, cimento e ferro, meses a fio, para a construção; e, bem embaixo, na sombra sob as alfândegas, o mormaço, a umidade, o entulho, o cheiro de bosta fresca...


                 



– continua                                                  Os Alemão - Sequência  01  02  03  04

© Aldyr Garcia Schlee
Imagens ©Coleção Azevedo Moura e AGS
publicado por ardotempo às 03:52 | Comentar | Adicionar