As bibliotecas têm fantasmas

Bibliomanias
 
José Mário Silva
 
As pessoas obcecadas por livros tendem a gostar de livros sobre outras pessoas obcecadas por livros. A bibliofilia não é apenas uma doença crónica; é também contagiosa. Ao lermos sobre as grandes bibliotecas pessoais – com dezenas ou centenas de milhares de volumes – aspiramos a uma igual desmesura, subitamente embaraçados com a pequenez, a desordem e as lacunas da dúzia e meia de estantes lá de casa. Melhor dito: as pessoas obcecadas por livros tendem a gostar de livros sobre outras pessoas ainda mais obcecadas por livros do que elas. E foi por isso que devorei de uma assentada o ensaio breve de Jacques Bonnet intitulado Des bibliothèques pleines de fantômes (Denoël, 2008, 138 páginas).
 
Editor, tradutor e autor de livros sobre pintura, Bonnet é um bibliómano que nos escancara a sua bibliomania, não escondendo um certo exibicionismo e uma certa ostentação (nalguns casos até uma certa vaidade), próprios de qualquer bibliómano que se preze. Por muito que mencione as bibliotecas dos outros, ele regressa sempre à sua, minuciosamente descrita em dezenas de páginas que chegam assemelhar-se a um catálogo bibliográfico. Através dos seus livros, é a sua vida, é a sua biografia que se desenha. Nada de muito espantoso, diga-se. Faz parte da natureza das bibliotecas tornarem-se um espelho do seu proprietário. E quem as saiba «descodificar com subtileza» encontrará nelas, mais ou menos escondida, "a natureza profunda do seu bibliotecário".
 
Ao recordar a forma como chegou a certos livros, Bonnet revela, de facto, alguns aspectos da sua personalidade, como a perseverança e a extrema atenção aos detalhes. Por exemplo, a abrir o ensaio, aborda o célebre episódio em que Fernando Pessoa se candidatou ao lugar de conservador-bibliotecário do museu Condes de Castro Guimarães, em Cascais, corria o ano de 1932. Como se sabe, o poeta dos heterónimos acabaria por ser recusado, em favor de um "pintor obscuro". Ao citar a carta de candidatura de Pessoa, com a sua "retórica insólita", Bonnet explica que a encontrou reproduzida na Fotobiografia de Maria José de Lencastre (Imprensa Nacional-Casa da Moeda), por si comprada em 1983, por 500 escudos, numa livraria de Coimbra, cidade em que se lembra de ter visto uma mulher a andar na rua com uma máquina de costura equilibrada sobre a cabeça.
 
Na linha do que sugeriram Borges e Bachelard, para Bonnet a biblioteca é o que mais se aproxima da ideia de paraíso terrestre. Ela é um "concentrado de tempo e de espaço", protege da "hostilidade exterior", como se fosse um útero, e confere "um sentimento de poder absoluto". Rodeado pelos seus livros, o bibliómano nunca se sente desamparado. Sabe que tem, sempre ao seu alcance, os instrumentos necessários para interpretar a realidade. E não lhe falem da Internet e suas infinitas reservas de informação. Por muito que se encontre por lá tudo o que se queira saber, quase instantaneamente, ela é "desprovida de fantasmas", diz Bonnet, falta-lhe a dimensão "divina".
 
A maior parte do ensaio centra-se nas alegrias e tormentos de quem possui uma biblioteca "monstruosa", com dezenas de milhares de livros. E não faltam histórias incríveis. Como a de Antoine-Marie-Henri Boulard (1754-1825), que encheu nove prédios, adquiridos expressamente para receberem os seus 600 mil livros – após a sua morte, ao venderem a colecção, os filhos inundaram o mercado, baixando durante muitos anos os preços nos alfarrabistas. Ou a de Charles-Valentin Alkan, pianista virtuoso que morreu esmagado por uma estante, em 1888, o que o habilita ao estatuto de "santo mártir" dos bibliófilos. Ou a daquele condenado à guilhotina que continuou a ler enquanto o conduziam ao cadafalso e, chegada a hora, marcou a página onde estava, antes de entregar o pescoço à lâmina.
 
Além de analisar as complexas questões logísticas e imobiliárias associadas às bibliotecas proliferantes, Bonnet dedica muito espaço ao bicudo problema da classificação e arrumação, multiplicando hipóteses, sistemas e estratégias. Eu, à minha reduzida escala, também conheço o dilema. Não sei, por exemplo, onde colocar, agora que acabei de o ler, este livrinho a abarrotar de livros (e de fantasmas) lá dentro.
 
 

 

José Mário Silva - Publicado no blog Bibliotecário de Babel 

Imagem: Natureza morta com crânio - Paul Cézanne, Pintura - óleo sobre tela, circa 1900

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publicado por ardotempo às 18:38 | Comentar | Adicionar